01 dezembro 2009

Desabrochando


Cefas Carvalho

Ainda que não fosse religioso, lembrei do Eclesiastes naquela manhã chuvosa de agosto: Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de chorar e tempo de rir; tempo de abraçar e tempo de afastar-se. Na verdade, eu começara a refletir sobre a questão desde que os cabelos insistiam em partir e as dores nas pernas e nas costas ficavam mais constantes. Mas, o passar dos anos não me assustava: realizado profissionalmente, bem casado com Helena, pai de Amanda, uma filha linda e saudável, eu fizera do tempo um bom amigo.
Às voltas com a administração da minha empresa de informática, recebi – naquela manhã de forte chuva – um telefonema de Helena. Disse que tinha algo importante a me comunicar. Imaginei tratar-se de contas a pagar ou o pedido para levar algo para casa. Nada disso. Entre a satisfação e indisfarçável constrangimento, ela disse que Amanda menstruara pela primeira vez.
A primeira sensação foi de uma estranha angústia. Claro que eu sabia – posto que ela tinha treze anos – que tal dia chegaria. Contudo, uma vez acontecido o fato temos uma estranha sensação de surpresa, como se tal coisa jamais fosse acontecer. Tolice. Claro que aconteceria, e naquele instante eu percebia que o fato provocaria mudanças na vida de Amanda e, certamente, na minha.
O pensamento que me invadiu foi o óbvio: a minha menina estava se transformando em mulher. Não sem certa melancolia, lembrei de quando ela era um bebê, ninada em meus braços sob o encanto de velhas cantigas. Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega essa menina que tem medo de careta...
Recordei das fraldas sujas que troquei nela e das vezes que a levantei do chão, quando caía, no exercício penoso – e por fim bem sucedido – de andar sozinha. Como um filme, todas as cenas da menina que vi nascer e crescer passaram por mim como se em despedida. Afinal, a menina não existiria mais. Daria lugar a uma mulher – antes disso a uma adolescente, com suas espinhas, neuras, chiliques e caprichos - que teria de encontrar seu espaço em meio a um mundo de homens, como se diz.
Outra recordação: das aulas de biologia. Menarca era o nome da primeira menstruação, sim, o termo me vinha à cabeça como um chicote, a lembrar de tecnicidades, de ações hormonais, do sangue, enfim. Um sangue simbólico que levaria minha menina para sempre para as terras da memória e me daria alguém diferente em troca.
Fui tomar um café na copa enquanto meu cérebro funcionava febrilmente. Pouco ou nada eu havia conversado com Amanda, embora fôssemos tão próximos, sobre menstruação e a passagem da infância para a adolescência. Talvez eu acreditasse que era um assunto para ser trado com a mãe delas, em uma conversa de mulheres. Quem sabe meu subconsciente não quisesse esconder dela própria que minha menininha um dia cresceria. De qualquer maneira eu estava arrependido de jamais ter explorando o tema. Como fazê-lo a partir dali? Como adentrar no mundo secreto que Amanda e Helena viveriam a partir de então, um mundo feito de absorventes íntimos, olhares cúmplices, alterações de humor. Era como se Amanda estivesse definitivamente abandonando o universo que eu construíra para nós dois e adentrasse em um mundo onde qualquer coleguinha de colégio teria mais peso do que eu. Recordei dos estudos que fizera nos tempos de universidade, sobre como a sociedade ocidental estigmatiza a menstruação, principalmente a menarca. Tudo tratado com segredos, olhares fortuitos, termos grosseiros. Nada da suavidade de povos ditos selvagens, mas, que celebravam a passagem de fase da menina com dignidade e alegria.
Em seguida, comecei a me sentir ridículo. Claro que Amanda continuaria sendo a filha que sempre foi, com a diferença que estava crescendo. Comecei a imaginá-la como uma flor. Era uma flor, uma flor desabrochando: uma flor que, mais tarde, possibilitaria o nascimento dos frutos, frutos que seriam meus netos e então fui inebriado pela imagem de mim mesmo correndo no jardim com os netos.
Tomei, então, uma decisão. Saí do trabalho mais cedo, passei em um shopping e comprei uma caixa de bombons com licor e um buquê de rosas brancas. Celebraria com minha filha e com minha esposa a nova fase que aguardava a todos nós. Daria adeus a menina e daria um abraço na mulher que eu teria o prazer de ver surgir aos poucos.

26 outubro 2009

O dia em que Jesus não foi crucificado


Cefas Carvalho

Por pura coincidência, na semana passada acabei tendo como tema, em três conversas distintas, a encenação na Paixão de Cristo em Nova Jerusalém. Todas sobre como o espetáculo perdeu seu encanto com a modernidade e a “invasão” de atores globais nos papéis principais. Nada mais a ver com a coisa rústica que, dizem, existia nos anos oitenta. Hoje, me relataram, as fãs dão gritinhos enquanto Thiago Lacerda está sendo crucificado como Jesus e, sem resistir aos apupos, chega a sorrir e piscar o olho para as moçoilas em vez de sofrer e gritar Pai, por que me abandonaste?! Deve ser coisa do mundo globalizado.

Esses papos me recordaram histórias outras envolvendo encenações da paixão de Cristo. Uma delas, salvo engano, me foi relatada pelo amigo jornalista Rômulo Estânrley e ganhou manchetes de jornais à época, anos noventa. Macaíba realizava sua Paixão de Cristo habitual, os atores se empenhavam nos seus santos papéis, quando, re repente, o centurião começa a flagelar Cristo que segurava a pesada – mas de isopor, na peça, claro – cruz às costas. Eis que um sujeito que bebia suas canas desde manhã cedinho e já estava meio triscado, se emociona mais do que deveria e pula no meio dos atores com a peixeira levantada para o centurião: Aqui em Macaíba você não vai bater em Jesus, não, seu cabra safado!, e foi um tal de gente correr para todo lado. No frigir dos ovos, a intenção do bebum acabou se realizando: naquele ano, pelo menos em Macaíba, Jesus foi salvo da cruz.

Outra anedota do gênero, me foi contada há anos por uma amigo e teria acontecido num município da região Oeste deste Rio Grande do Norte. O dono de um circo mambembe resolveu montar uma paixão de Cristo no período de Páscoa. Colocou sua mulher como Maria Madalena, ele próprio no papel de Centurião e escolheu para Jesus o trapezista cabeludo que era o bonitão do circo. Pois, com o circo lotado, a trupe começou a encenar a paixão, quando, numa breve pausa, o dono do circo flagrou num canto escondido sua mulher aos beijos com o Jesus pé de lã. Possesso, resolveu se controlar e continuar o espetáculo. Contudo, quando chegou a cena de Jesus carregar a cruz sob o flagelo dos soldados romanos, a raiva bateu mais forte no marido traído e lapt lapt com o chicote nas costas do Jesus bonitão. Na terceira chibatada o Jesus olhou para trás nervoso, foi quando o cornudo não agüentou mais e gritou: Gosta de pegar mulher dos outros não, é, felá da puta, pois tome mais essa e essa!, e novamente foi gente para tudo que é lado com a confusão. Também neste espetáculo Jesus escapou da crucificação...

15 outubro 2009

A barata

Cefas Carvalho


O bicho, enorme, asqueroso, entre o preto e o marrom, passeava pela casa, imponente, como se fosse seu dono. Para não confessar a minha filha o medo que tenho de barata, disse a Sofia que a barata se chamava Kafka e que estava nos fazendo uma visita. Besteira, mamãe, você está falando isso para disfarçar seu medo!, respondeu, do alto da sabedoria que seus seis anos lhe davam. Irritada, decidi pegar a vassoura para matar a intrusa, mas, quando ela atravessou a sala rapidamente, pelo tapete, dei dois passos para trás e quase tropecei na mesa de jantar. Viu, mãe, você está morrendo de medo!, zombou Sofia. Desafiada e já nervosa – com a barata e com a petulância da menina – perguntei se ela não tinha medo. Respondeu que não. Então por que não mata você a barata?, provoquei. Primeiro porque matar insetos é tarefa das mães, não das filhas. Segundo, porque você disse que era uma visitante. Desisti da vassoura e bebi um copo d´água para me acalmar. Não sabia se repreendia minha filha ou se tentava achar a barata debaixo do sofá. Decidi pela segunda opção, mas, após afastar o sofá, virar o tapete e quase derrubar a cortina, não tive sucesso. Sentei no sofá, fora do lugar, e comecei a chorar, baixinho. Sofia veio em minha direção e me abraçou. Mamãe, eu retiro o que disse. Matar baratas não é tarefa para as mães, mas para os pais!, sorriu. Não segurei o choro e desabei a cabeça entre as mãos. Sofia alisou delicadamente meus cabelos. Mamãe, o papai vai voltar? Não, minha filha, ele foi de vez. Tem certeza, mãe? Tenho sim, filhinha. Então vamos nós duas matar esta barata, mãe. Como é mesmo o nome dela? Kafka!, sorri. Por que este nome estranho? É uma brincadeira com o escritor muito famoso que escreveu um livro sobre um homem que se transformava em uma barata gigante. Que coisa estranha, mãe! Um dia você me conta essa história? Conto sim, juro!, sorri, voltando a sentir a alma tranqüila. Neste momento, a barata saiu de trás da cortina, parando como que para nos olhar. Sofia correu para ela pelo lado esquerdo e ela, Kafka, sem alternativas, correu para a minha direção. Golpeei-a com a vassoura, uma, duas, três vezes até que vimos, eu e Sofia, os restos do inseto esmagado e um líquido esbranquiçado no tapete. Nojo? Que nada! Nos abraçamos, morrendo de rir de nós mesmas.

14 setembro 2009

Eu não danço


Cefas Carvalho

A festa estava um tédio, como era de se prever. Aniversário de uma prima distante, chata e prepotente. Eu me perguntava, enquanto bebia mais um uísque, porque não ia embora, quando a vi, sentada à mesa, próxima de mim, com duas amigas de cada lado. Como eu não a vira antes? Não era a mulher mais linda da festa, mas, ao contrário das outras, parecia brilhar, como as madonas das pinturas renascentistas, ofuscando quem lhe circundava. Mas, que fique registrado, seu brilho era sereno e discreto. Ela olhava como se, na verdade, não estivesse ali, mas eu algum lugar longínquo. Quando percebeu que eu a olhava, sorriu rapidamente e voltou a cabeça para o lado. Voltei à minha mesa, mas não desisti de encará-la, até que, munido com a coragem dos que sentem o coração acelerar, esperei que estivesse sozinha e a abordei:
- Boa noite. Quer dançar?
- Obrigada. Eu não danço.
- Não gosta de dançar?
- Eu disse que não danço... – sorriu.
- Se não sabe dançar, eu te ensino...
Ela lançou um olhar de carinhosa reprovação que me inibiu, e parei com a insistência. Perguntei seu nome, Laura, e disse o meu, Ricardo. Ela convidou-me para sentar a seu lado.
- Há algo em você que me encanta. Não me olhe como se eu fosse um conquistador barato. Estou falando a verdade. Talvez sejam seus olhos alheios a tudo...
- Eu não sou uma mulher comum
- Eu sei disso.
- Não, você não sabe de nada – sorriu. Conversamos sobre banalidades – o tempo chuvoso, o trânsito caótico da cidade – e sobre nossos gostos – cinema europeu, literatura, poesia. Recitei trechos de Zila Mamede e Florbela Espanca para ela, que cantarolou, com uma linda voz de soprano, pérolas de Janis Joplin.
Sim, eu estava encantado por ela e as horas se passaram sem que eu sentisse, até que a festa foi chegando ao fim. Convidei-a para bebermos um último drinque no balcão, mas ela recusou. Não posso sair daqui, sorriu.
- Mas, sua família pode nos observar daqui mesmo. Aceite meu convite.
Ela sorriu, passou a mão em meu rosto suavemente e virou a cabeça para o outro lado, onde sua irmã – a quem eu já tinha sido apresentado – olhou-a com um sorriso enigmático.
- Ricardo, eu tenho que ir...
- Podemos nos ver amanhã? Dê-me seu número de celular...
- Ricardo, há coisas que você tem que saber...
- Você é casada? Noiva? Tem namorado? Seu pai é violento? Ora, se não acontece nada disso e nem eu sou um Montecchio e nem você uma Capuletto, o que mais eu preciso saber? – brinquei. Ela riu, mas amargamente e baixou a cabeça.
- Margarete está chegando. Terei que ir... –suspirou. Olhei para o lado e vi a irmã empurrando uma cadeira de rodas e a colocando ao lado de Laura.
- Ricardo, você pode ajudar minha irmã a me colocar aqui.
Compreendi tudo em um instante. Também em um instante eu teria que tomar a minha decisão. Pedi licença para tomá-la no colo e colocá-la na cadeira de rodas.
- Agora eu poderia beber o drinque com você no balcão, se não fosse hora de ir, mas infelizmente, não dançaria.
- Pois eu dançaria com você assim mesmo.
- Vamos lá, seja um cavalheiro e empurre minha cadeira até o nosso carro.
Obedeci a ordem e fomos conversando até o estacionamento. Enquanto a mãe e a irmã se despediam da minha prima chata e família, ficamos fumando e conversando besteiras.
- Posso te deixar em casa – disse.
- Você não iria querer isso.
- Eu quero isso, sim.
- Você me deixaria por pena.
- Negativo. Farei isso porque estou me apaixonando por você.
Laura me olhou e ficou em silêncio. Quando a mãe a Margarete voltaram e a família se preparava para entrar no carro, notei que Laura conversava algo com elas. Após alguns segundos de visível tensão, percebi as três mulheres me olhando e me avaliando. Por fim, Margarete veio até mim.
- Laura quer que você a deixe em casa. Nós concordamos, embora isso não seja muito comum. Podem esticar a saída, claro, beber alguma coisa, jantar, mas tenha cuidado com ela, por favor...
- Pode ter certeza que cuidarei bem dela. E agradeço a confiança – respondi. Coloquei Laura no banco do passageiro, dobrei a cadeira de rodas para que coubesse no banco de trás e saímos.
- Viu como sou diferente das outras mulheres?...
- É sim, mas não pelas razões que está pensando.
Perguntei a ela onde queria ir, propus uma volta pela praia ou comermos uma massa em algum restaurante.
- Ricardo, se eu não fosse deficiente você me faria essas mesmas propostas?
- Claro – respondi.
- Então vamos fazer as duas coisas.
Passeamos pela orla, vimos a lua cheia e seu efeito na maré e depois comemos, não a massa, mas camarão em um restaurante simples e discreto.
Já rumo a casa dela, percebi uma névoa em seu olhar.
- Se eu não fosse deficiente, você me deixaria em casa agora?
Hesitei. Como não soubesse o que dizer, ela continuou:
- Esta noite está maravilhosa. Gostaria que continuasse assim.
- Qual a sua sugestão?
- Sou uma mulher adulta e sadia, com exceção das pernas, que não me mexem, tenho meus desejos e vontades. Você é um homem aparentemente adulto e sadio – riu – estamos nos conhecendo e temos a noite pela frente.
Não foi necessária mais nenhuma palavra. Conduzi o carro a um motel que havia ali perto.
Também não foram necessárias palavras de explicação. Claro que eu estava um pouco tenso, mas nada que o carinho e a excitação não suplantassem com sobras. Como se por instinto, como se tivesse feito tais coisas a vida inteira, levei-a de colo para a cama, depois a ajudei a tomar banho, abri um vinho e conversamos um pouco.
- Ricardo, me beije como nunca beijou mulher alguma em sua vida – pediu, de repente, deitando-se. Comecei beijando as pontas dos pés. Mandei às favas a razão, que insistia em me lembrar que ela nada sentia naquela parte do corpo. Afastei delicadamente suas pernas e mergulhei na flor cravada entre elas. Senti suas unhas em meus cabelos, primeiro afagando o couro cabeludo levemente... Depois senti os dedos com mais força, e, então, as horas viraram uma sucessão de prazeres. Desnecessário registrar que em nenhum momento ela me pareceu diferente de qualquer outra mulher. Minto. Na verdade ela era diferente das outras sim, de uma maneira que me seria difícil explicar, mas que meu coração já começava a compreender.
Acordamos às sete da manhã, tomamos café, um banho rápido e deixei-a em casa.
- Eu te vejo hoje?
- Com uma condição.
- Qual?
- Se você me levar em algum lugar para dançar.
- Pensei que não dançasse.
- Com você eu dançarei.
Beijei-a e empurrei a cadeira até o hall da casa, onde Margarete nos recebeu com um sorriso aliviado. Despedi-me delas e rumei para casa. Pensei que estaria cansado, mas não consegui dormir. Coloquei uma música animada no som – What a wonderful world, cantada por Sam Cooke – e comecei a dançar sozinho. Pensando em Laura.

10 agosto 2009

O verbo se fez carne


Cefas Carvalho

Tenho medo de objetos cortantes
Principalmente palavras
(Carito)


Com esses olhos negros de desespero você me olha como se eu fosse um objeto, não um pedaço de carne – o que seria vulgar, mas, instigante, afinal, sou mulher e mulheres gostam de olhos cobiçosos, meu bem – mas, pior, bem pior, como se eu fizesse parte da mobília – que você escolheu e comprou sozinho – desta maldita mobília escura e pesada, que não parece em nada comigo, com minha alegria, minha vontade de viver. Talvez os móveis pareçam com você, aliás, com sua alma, negra e cheia de poeira. Pensando bem, você me olha como se eu fosse uma louca, sim, eu sou louca, enlouquecida que fui pelas suas promessas, suas juras, pelos laços que você inventou para me amarrar, como um belo caçador que joga frutas no chão para atrair e aprisionar um pássaro raro. Sim, meu bem, eu era um pássaro, livre, liberta, com capacidade para voar, até que, de repente me vi presa em seus rancores, seus ciúmes, seus ódios... Por deus, não me olhe assim, odeio este olhar vazio... Mas, não quero recordar nossa triste história. Basta lembrar que, por você, abandonei meu trabalho, minha família, negligenciei meus amigos, amofinei meus gostos. Tive de guardar meus prazeres em uma gaveta e trancá-la, definitivamente. Minha vida passou a ser a sua vida. Meus prazeres, os seus. Eu ouvi a sua música, assisti os filmes que você amava, passei a comer - e a preparar – as comidas que você gostava. Não fale nada, não fale, sei que você vai dizer que não me pediu nada disso. Talvez não verbalmente, mas eu sentia em seus olhos – pesados, intensos - a pressão sobre mim, me induzindo a mudar, a deixar de ser eu mesma e me tornar algo como um fantoche. Não abra a boca, por todos os demônios, sei que você vai insistir que nunca me olhou desta forma, e que em seu olhar havia apenas admiração, contemplação e desejo. Você seria até capaz de dizer que fui eu quem insistiu na mudança, talvez para me aproximar do seu mundo, para mostrar que merecia sua companhia. Por que está se aproximando de mim, não chegue perto, não me toque. Eu sei que você não me toca há anos, provavelmente você não me ama mais. Como poderia? E quanto a mim? Você tem vontade de saber se ainda te amo? A resposta deveria ser um sonoro e poderoso não. Como eu poderia amá-lo? Talvez eu o amasse quando o via escrevendo seus livros, concentrado na escrivaninha, com a xícara de café ao lado e o cigarro repousado no cinzeiro exalando fumaça como um incenso... Sim, eu te amava então. E você, me amava naquela época? Por que não dizia que me amava? Por que ficava mudo, às vezes tão mudo quando hoje? Por que não me enlaçava – eu que achava seus braços tão fortes – e dizia que eu era a coisa mais importante de sua vida, mais que seus livros, suas músicas, seus projetos? Era só insegurança, meu bem, era só aquela bobagem de não se sentir amada, de pensar, tolamente, sei, que você não pensava mais em mim quando seus amigos e editores vinham para cá debater seus projetos e livros. Enquanto vocês fumavam e discutiam o futuro da arte, eu me trancava no banheiro para chorar, Primeiro passava um batom bem vermelho, que você odiava, depois maquiava os olhos e me punha a chorar, assistindo pelo espelho as lágrimas pintarem meu rosto de um preto meio aguado que lembra tristeza e decadência. Por deus, como eu te admirava, meu bem... Tenho que te dizer, mais uma vez, que eu menti, menti, sim, quando disse que não te amava, que tinha nojo de você e queria terminar tudo. E menti quando disse que sairia para me entregar ao primeiro homem que encontrasse na rua. Na verdade, fui para um bar, chorar e beber uma dose de uísque com vontade de morrer... depois fui para a casa da minha irmã e choramos juntas lembrando dos sonhos que tínhamos quando éramos crianças. Quando voltei para casa no dia seguinte, era para te abraçar, te pedir perdão e dizer que te amava. Não imaginei nunca que você estaria jogado no chão, imóvel, como morto. Primeiro achei que era uma brincadeira. Depois, que você tentou se matar por minha causa – é mesquinho dizer isso, mas uma parte de mim exultou, ficou lisonjeada – até que o médico explicou que você, ao subir a escada, escorregou no café que deve ter derramado – sempre desastrado... – e rolou degraus abaixo, quebrando a espinha dorsal em três pedaços. E como explicar a névoa que me passou pela mente quando ouvi que meu marido ficaria tetraplégico e mudo para sempre? Como saber se você ouve o que eu digo? Vamos, meu bem, fale alguma coisa... Vou limpar a baba que escorre de sua boca, não me olhe desse jeito. Um dia eu te amei. Talvez ainda te ame. Vamos, vou passar a toalha em você, pois a fisioterapeuta vai chegar em meia hora...

29 julho 2009

Beleza não põe mesa


Cefas Carvalho

Não, a estética convencional não me agrada e não pretendo ser escrava da beleza tradicional, esta beleza das estátuas gregas e dos astros e estrelas de cinema. Por esta razão, arranquei as unhas, sim, uma por uma, com uma tesourinha afiada... depois foram os dedos, não todos, claro, mas, arranquei fora o dedo mindinho da mão esquerda... Ora, por que se precisa do dedo mindinho, para quê ele é necessário. Cabelos? Arranquei os fios, primeiro um por um, depois, sem paciência, em chumaços, em tufos, mas ainda sobraram alguns fios desconectados entre si... Já disse que a beleza convencional não me atrai, e, por mim, pode ser destruída, como fiz com os lábios, primeiro, enchi-os de batom, depois com uma chave de fenda, despedacei-os, quero ver eles se abrirem para um sorriso sedutor, pois sim... Bem, depois lanhei as pernas, com a mesma chave de fenda, sim, passei a chave nas pernas como quem passa um giz em um quadro negro, com conhecimento e decisão. Para completar a obra, rasguei as roupas, fúteis, banais, tecido em farrapos... Repito que a beleza não me interessa, gosto do feio – que para mim é belo - do destroçado, do imperfeito, sempre fui assim, fazer o quê? Ora, mãe, não faça essa cara! Eu digo há anos que detesto bonecas, odeio bonecas!, e você ainda me compra esta Barbie!... Sinceramente, mãe! No ano que vem posso ganhar de presente de aniversário um Banco Imobiliário?

14 julho 2009

Ícaro


Cefas Carvalho

“One day I am going grow wings/ a chemical reaction”
(Thom Yorke, da banda Radiohead)


Era como um inseto, uma formiga, um besouro, andando pelas suas costas, na altura das costelas e subindo para os ombros. Pelo menos começou assim. Uma comichão nas costas, às vezes na pele, outras vezes como se fosse um formigamento nos ossos. No início desprezou a coceira, mas ela se tornou forte, imperiosa, quase insuportável. Desprezou o conselho da namorada - procure um médico, ela disse - e resolveu ignorar o desconforto, até que em uma tarde tediosa de julho, enquanto caminhava pela avenida principal da cidade, sentiu a dor nas costelas de forma lancinante. Contorcendo-se de joelhos, percebeu que as pessoas o olhavam com medo e fascínio, e em meio a tanta dor – como um punhal cravado em sua carne – sentiu que algo lhe brotava da pele. Olhou, aturdido, para trás e viu o imenso par de asas, viscosas e sangrentas, que lhe nascera. Percebeu tudo, então, e, entre as lágrimas da dor que não mais sentia, e uma saudade que já se anunciava, levantou vôo...

23 junho 2009

Quando Piaf ressurgir das cinzas


Cefas Carvalho

Merda, borrei o olho!, murmurou, sentindo o lápis escorregar para a direita. Rápida e habilmente, consertou o traço preto embaixo da pálpebra. Terminado o desenho dos olhos, parte da maquiagem que mais lhe dava prazer, cuidou de passar o batom. Adorava o cheiro exalado pelos batons, principalmente os vermelhos, mas, não gostava do efeito que produziam em seus lábios. De batom, não se sentia uma mulher, ou mais mulher, ao contrário das amigas, mas, sim, como um palhaço triste que representa uma tragédia com ares de comédia.
Minha tragédia não é ter o corpo de um homem, mas, a alma de uma mulher, pensou. Talvez por esta razão, sentia-se sempre estranha com aquele vestido, os seios postiços – incômodos, pavorosos – a peruca ruiva, os olhos pintados, o batom ultrajante... Por mais de uma ocasião implorou para fazer seu show sem aquela fantasia. Mas, era inútil.
Jorge pensava que a insistência em se apresentar era pelo cachê. Que ele pensasse assim, afinal, o dinheiro quase sempre ia parar nas mãos dele. Mas, ela concordava em se fantasiar de mulher – mesmo sendo, em alma, uma mulher verdadeira – para poder cantar. Mais exatamente para poder interpretar as canções de Piaf.
Ele se apaixonou por mim quando me viu em uma boate cantando Je ne regrette rien, pensou, retocando o batom. Isso acontecera seis meses antes. A partir dali, mergulhou – com Jorge – em um universo de amor, sexo, bebida, drogas, violência física e humilhações, em doses cavalares. Já expulsara Jorge do apartamento milhares de vezes e, outras mil vezes telefonaram, em prantos, para que ele voltasse. Com Jorge, vivera céu e inferno, som e fúria, como jamais havia experimentado com homem algum.
Pensando nisso, estremeceu levemente e sorriu para si mesmo no espelho. Seu corpo soltava choques elétricos quando pensava em Jorge. E a lembrança dele se unia ao amor por Piaf... Cantarolou sua música preferida...
C'est sûr que j'en mourrais
Que j'en mourrais d'amour,
Mon amour, mon amour...

Assim como Piaf, se eu tivesse que morrer, seria de amor. Ela está enterrada em um cemitério chamado Pére Lachaise, em Paris, Recordou. Havia lido isso em alguma revista, e desde então, economizava dinheiro para ir à capital francesa e visitar o túmulo da cantora.
Foi quando lembrou - como uma pedra que lhe golpeasse a cabeça – que Jorge não estaria no apartamento quando retornasse. Havia ido embora, e, daquela vez, definitivamente, como mostrava a carta que mandara de muito longe. Voltara para a mulher e os três filhos, no interior onde nascera. Não iria mais a Paris, não conseguiria viajar sem ele.
Mas, não, não se arrependia de nada. Segurou a lágrima que iria, mais uma vez borrar a maquiagem, sorriu para sua face no espelho, levantou-se e foi para o lar onde não existia nenhum Jorge, onde não existia ninguém além dela mesma e de Piaf: o palco.
Si jamais tu partais,
Partais et me quittais
Me quittais pour toujours...

15 junho 2009

Loteria


Cefas Carvalho

O homem alto, corpulento, pesado como o tempo e levemente encurvado, pediu licença à senhora miúda que tentava - em vão – fechar uma sombrinha velha e postou-se na bancada lateral da casa lotérica. Tirou no bolso o papel da aposta e tentou se posicionar de forma que conseguisse enxergar o quadro de resultados. Estava ficando velho e seus olhos mais cansados.
Pediu licença ao homem – também corpulento, mas, baixo e com uns olhinhos de ave de rapina – que estava riscando um bilhete no balcão. O sujeito afastou, dando espaço, olhou para o outro e disparou:
- Vai conferir a posta, amigo? Fez uma fezinha, não? Eu também fiz a minha, está aqui, ó, na minha mão. Toda semana faço três apostas, sei que um dia vou ganhar. Quem espera sempre alcança. Não é assim que diz a Bíblia? E Deus sempre premia os persistentes. Por isso eu persisto, amigão. Já pensou se a gente ganha. A primeira coisa que faço é mandar meu chefe para o inferno... Isso para não dizer pior... Aí pego o dinheirão todo e compro uma ruma de mansões, umas coberturas... Podíamos fazer umas festas de arromba, já pensou, amigão... Tudo do bom e do melhor, churrasco, carne de primeira, caviar... Não sei nem qual é o gosto, mas faço questão de caviar... E enchemos a festa de mulheres, rapaz, porque, você sabe, mulher gosta de homem estribado, com dinheiro, aí começa a chover mulher... Já pensou uma piscina cheia de mulheres e um garçom servindo uísque para a gente... Rapaz, e podemos comprar um jatinho particular, já imaginou, viajar para todo canto na hora que a gente quer?... bla blá blá...
Enquanto o homem de olhos de ave de rapina falava sem parar, o outro conferiu rapidamente sua aposta e viu que não tinha vencido. Na verdade, não acertara nenhum dos cinco números sorteados. Murmurou um até logo para o outro, que não parava de falar e voltou para casa com a cabeça tonta... Mulheres, carros, piscinas, coberturas...
Entrou em casa e, de olhos baixos, aproximou-se da esposa.
- Então, homem. Conseguiu o dinheiro e comprou o leite?
Ele não respondeu. A mulher percebeu o peso que caía sobre ele e foi para a cozinha preparar a papa de farinha para os gêmeos, que logo iriam chorar de fome. Ele foi até o quarto, olhou os bebês no berço improvisado, lamentou não ter conseguido nem o emprego desejado e nem o empréstimo com o amigo e tirou o bolso o bilhete de loteria, amassando-o e jogando no chão, ao lado do berço. Sentindo o cheiro da papa quente de farinha, tentou não chorar.

03 junho 2009

Uma nação de cuspidores


Cefas Carvalho

Otorrinos e gastroenterogistas do Brasil, atenção! O brasileiro em geral tem seriíssimos problemas de salivação e glândulas! Pelo menos é minha humilde opinião, afinal, isso poderia explicar a paixão que o brasileiro tem pela cuspideira. É incrível como o brasileiro cospe! Em qualquer lugar que se vá, sempre vemos alguém pigarrear e, tchan!, cuspir no chão. O curioso é que os cuspidores não estão nem aí com a presença de testemunhas. Já presenciei sujeito abraçado à namorada virar a cabeça e, zás, cusparada no chão. Ela deve ter achado tão romântico... Mas, o pior é o cuspe a distância. O sujeito sequer observa se alguém está passando e puf! Lá vai o jato de cuspe meio metro à frente! Os passantes que se desviem do “atleta” (afinal, cuspe a distância é um esporte nacional). E que não se pense que cuspideira é questão de classe social. Vá em eventos sociais de “gente chique”, com “partidóns” e endinheirados... no estacionamento ou antes de entrar é a mesma cusparada. Deve ser, realmente, algo no metabolismo do brasileiro. Este escrevinhador já andou nas ruas de cidades como Londres, Paris e Lisboa e não viu ninguém cuspindo na rua. O europeu não junta saliva na boca? Não tem vontade/necessidade de cuspir? Não sei. O fato é que lá, no chamado Primeiro Mundo, não se cospe em público. Há quem diga que a questão é simples, sinal de falta de educação. Neste caso, somos uma nação de mal-educados incorrigíveis. Tanto que, em outro texto, já externei minha revolta em freqüentar banheiros químicos em eventos festivos realizados em Natal. Poucas horas após instalados, eles – pelo menos os masculinos – se tornam um amálgama de fezes, urina e papéis colocados estrategicamente para entupir o escoamento. Amigos garantem que trata-se de uma questão de Educação, um retrato do (baixo) nível do ensino nacional (seja público ou privado). Outros garantem que este tipo de educação começa em casa. Este escrevinhador não sabe e confessa já estar cansado de pensar sobre o tema. E, preciso pedir licença para cuspir. Na pia do banheiro do trabalho. Afinal, mesmo com um cesto de lixo a centímetros no meu pé direito, não preciso obrigar os colegas de redação a testemunharem minhas secreções. Com licença, e até a próxima.

PS: A foto que ilustra este post mostra o escritor marginal americano Charles Bukowski, mestre em produzir contos sobre excreções. Se não leu nada dele, sugiro começar pelos sensacionais "Crônica do amor louco" e "Mulheres".

20 maio 2009

A vida é doce


Cefas Carvalho

Comprou uma bala para a noiva. Era pródigo em presentes para Cândida. Desde o início do namoro, a mimava com bombons, chocolates recheados, trufas... Ela adorava profiteroles. Ele a levava para bomboniéres e cafés finos, onde se fartavam com guloseimas. Com a amada, a vida era doce. Estava apaixonado por ela, queria casar, ter filhos. Ela concordava, mas nunca com muito ânimo. Ele achava que era uma questão de tempo, e continuou a fartá-la com doces, biscoitos. Até que recebeu um envelope anônimo contendo fotos de Cândida aos beijos e abraços com um homem. A foto era recente, não havia dúvida. Ela usava um vestido que ela havia lhe dado semanas antes. Chegou sorrindo ao apartamento da noiva. Ela também o recebeu sorrindo. Ele anunciou que tinha um presente para ela. Quero agora, pediu Cândida. Ele o deu. Uma bala certeira bem no meio da testa.

11 maio 2009

O rio


Cefas Carvalho

(Baseado em história relatada por Victor Hugo Zamora)

Um rio há adormecido em cada infância,
rio seco ou de enchente, intempestivo
rio que não cresceu
(Zila Mamede
)

As nuvens anunciavam chuva, mas isso em nada abalava a felicidade do menino, que, de mão dada ao pai, chegava à margem do rio. Esperava o sol, mas, a verdade era que, estando ao lado do pai em um passeio como aquele, poderia desabar uma tempestade que não teria importância. Talvez seja até mais divertido se chover, pensou. Mas foi o sol quem deu as caras quando, enfim, chegaram à beira do rio.
Aos dez anos de idade, começava a descobrir o mundo. Pelo menos o mundo de verdade, não aquele de contos de fadas em que a mãe o trancafiava na mansão onde moravam. Começava a sentir-se um rapaz. Vontade de usar calças compridas. Uma colega de classe - Amélia – o olhava de forma estranha e pedia para lhe ensinar equações matemáticas...
Mas, nada em sua vida se comparava a um convite do pai para um passeio. Sentia o coração bater mais rápido quando o pai, com a voz grave, coçava barba e bigode e propunha saírem para algum lugar. Corria para o quarto, colocava um calção, uma camiseta branca, as sandálias de couro e se postava na porta de casa, à espera da figura grande e pesada que vestia o casaco, beijava a esposa – sua mãe – e oferecia a mão pesada para iniciarem o passeio.
Amava o pai. Mais que isso, o admirava, tanto pela sua proximidade como pela sua distância. O pai era escritor, militante cultural. Ensinava filosofia em diversas universidades, viajava muito, dando palestras. O filho sofria com os muitos dias de ausência do pai, mas ardia de orgulho em ver os livros com o nome do pai na lombada.
Naquela manhã de domingo, não havia mais distância. Apenas o sol perfeito, moderado, e o rio à frente dos dois. Sacaram do protetor as varas de pescar e após terem fixado os insetos mortos – coletados na véspera – nos anzóis, se posicionaram à beira de uma imensa árvore para esperar os peixes. Conversaram. O pai falava muito durante os passeios. Sobre tudo, sobre o céu e terra, sobre deus (ou a inexistência dele) e sobre os dinossauros (igualmente inexistentes, pelo menos na atualidade).
Contudo, naquela manhã o pai se mostrava mais silencioso, lacônico até. Certo, estava acostumado aos silêncios dele, do seu olhar distante, como se estivesse mentalmente escrevendo um livro ou formulando no espírito uma nova teoria filosófica. Mas, dificilmente o pai mantinha tanto silêncio durante um passeio. Por fim, pescaram um peixe, como sempre, no anzol do pai, como se os peixes adivinhassem... celebraram o feito e, como sempre faziam, o menino media com uma fita métrica, o tamanho do pescado. Vamos colocá-lo no cesto e levá-lo para a mãe?, perguntou o menino. Não. Este, vamos devolvê-lo ao rio, afirmou pesadamente o pai, atirando o peixe à água.
Resolveram mudar de posição e foram para outro lado do rio, de águas mais profundas e quentes. Antes disso, comeram sanduíches de frango e beberam suco de uva. O pai continuava estranhamente silencioso, embora perguntasse de quando em quando sobre seu desempenho na escola e suas leituras.
Uma leve chuva caiu, pintando o rio de borbulhas e atiçando os peixes, que fugiam dos anzóis. Quando a chuva se foi e o sol lentamente voltou, o pai propôs deixarem as varas de pesca à margem e entrar mais um pouco na água morna. Entraram no rio até a altura dos joelhos, e o menino podia sentir os peixes miúdos passando por entre suas pernas. O menino, olhava encantado para o horizonte e o pai, por trás dele, colocou a mão carinhosa e pesada em seu ombro.
- Meu filho, quando eu tinha a sua idade, pensava que o mundo era belo e grande. Sonhava em viajar, em conhecer pessoas e lugares, em aproveitar a vida. Não posso dizer que não fiz nada disso, mas, descobri que o mundo é o contrário do que eu pensava. O mundo é um lugar feio e sujo, meu filho. Sim, não faça esta cara. O mundo é governado por pessoas sem caráter, e são justamente elas que fazem as leis, que julgam as pessoas e que tem o poder de prender e soltar. O mundo é injusto, meu filho, não importa o que você faça, outras pessoas terão mais vantagens que você por relações familiares, de poder ou ainda mais espúrias. Sei que você não está entendendo muito do que digo, filho querido, mas, saiba que é verdade: este mundo não presta. Você pode passar uma vida lendo, obtendo conhecimentos, lutado para ser um humano em essência, mas de que vale isso em um mundo onde o ter vale mais que o ser. As pessoas te julgarão, como me julgam, pelo que tenho e pelo que conquistei de material. Sou um bom professor? Sou um homem inteligente? Talvez, mas só me aceitam em sociedade porque temos uma bela casa, porque temos um carro com motorista. A vida é assim, meu filho... isso porque ainda nem falei das infidelidades, das traições, das culpas, das omissões, dos interesses, das ganâncias, da estupidez, da sede de sangue que marca do gênero humano, da rede de intrigas e mentiras que rege este mundo... sim, meu filho, por que viver em um mundo como este? Que pai que ama o filho pode deixar que ele viva em um mundo como este? Um pai amoroso pode deixar que um filho querido enfrente tanta maldade, tanta dor?... É por esta razão que faço isso, meu filho, por amor demais a você, amor demais...
O menino parou de se debater e sua cabeça pendeu de vez. O pai pegou o corpo do menino no colo e, saindo da água, repousou-o na terra úmida perto de uma árvore. Sabia que tinha feito a coisa certa. Guardou as varas de pesca e olhou para o rio, tristemente.

05 maio 2009

A ressurreição do mestre Coppola




Cefas Carvalho

Há tempos, vinha lendo nos blogs e sites especializados sobre o novo filme de Francis Ford Coppola, “Tetro”, que em breve chegará aos cinemas. Eis que dando uma espiada no blog Bazar, do amigo Alex de Souza, jornalista bom pra danado, deparo com o trailler do novo Coppola que o cidadão botou no seu blog. Após os dois minutos de cenas em p&b, cenografia caprichada, um clima nostálgico e as presenças de gente como o esquisito Vincent Gallo e a musa Maribel Verdu, fui tomado pela emoção. Será a ressurreição do velho Coppola? Sim, porque quando o vírus da cinefilia se apossou de mim nos anos 80, o homem era um mito. Havia feito “O poderoso chefão 1 e 2” (na época não havia o 3, que é de 1990) e “Apocalypse now”, filme que arrebatou minh´alma e, presumo eu, toda uma geração de cinéfilos. Ainda realizou uma obra como “A conversação”, filme denso e misterioso. Fez filmes de baixo orçamento que amo até hoje, como “Rumble fish” e “Outsiders”, além do lindo e pouco visto “No fundo do coração”. Mas aí veio a decadência: o irregular “Jardins de pedra”, o mediano “Cotton club” e o sofrível “Jack”. Certo, mesmo decadente, o homem realizou “Dracula de Bram Stoker”, um das coisas mais sensacionais que assisti numa sala de cinema, mas também cometeu um clipe imenso - e chato- para Michael Jackson. O horror, o horror... Mas eis que com “Tetro”, que conta a história de um rapaz que viaja para Buenos Aires para resgatar a história de sua família e a própria história, o Coppola dos velhos tempos pode renascer. Se até Mickey Rourke – deformado e ex-alcóolatra – tal qual fênix ressurgiu das cinzas com “O lutador”, porque não o bom e velho Coppola. Que os deuses do cinema abençoem a nova obra do velho mestre, que chega aos setenta anos.

13 abril 2009

Semana Santa



Cefas Carvalho


Sexta-feira da Paixão


Cristo morreu pelos meus pecados. É o que dizem. Sempre detestei esta afirmação, como detesto qualquer coisa que tenha a ver com o não-visível. Não quero que ninguém morra pelos meus pecados. Dos meus pecados cuido eu. E meu pecado maior naquela sexta-feira maldita foi ter deixado Clarissa ir embora. Ou será que eu quem a mandei embora? Talvez as duas coisas. Só recordo que a vi jogando algumas roupas na mochila velha e sair de casa batendo ruidosamente a porta. Ainda pensei em correr atrás dela, mas desisti. Fiquei em casa ouvindo CDs de blues e olhando com cara de idiota para o bacalhau dessalgado em cima da pia. Iríamos fazer um bacalhau a Gomes de Sá. Clarissa não comia carne nos dias da semana santa. Para mim isso era uma besteira, eu teria adorado preparar uma picanha mal passada naquela noite, mas a paixão por Clarissa me fazia respeitar suas opiniões, pelo menos algumas delas.
Pensei que Clarissa voltaria, mas, me enganei. Tomei alguns tranqulizantes para poder dormir, com o coração pesado de tristeza e paixão.

Sábado de Aleluia


Aleluia! Clarissa telefonou. Não falou praticamente nada, balbuciou meia dúvida de palavras. Mas, telefonou. Disse que estava tudo terminado e que na semana seguinte pegaria suas coisas no apartamento. Pensei em implorar para que voltasse, em sugerir que conversássemos, mas nada falei. Escutei o que ela falou até que pareceu que ela fosse chorar e ela então desligou o celular.
Resolvi ir uma igreja católica. Claro, desprezava o catolicismo, como a todas as demais religiões, mas senti vontade de ver os fiéis louvando a um ser superior. Contudo, quando estacionava o carro próximo a uma igreja, mudei de idéia repentinamente e decidi beber algo na praia. Olhar o mar costumava me acalmar. Bebi demais, contudo, e voltei para casa totalmente bêbado, arriscando bater o carro ou ser pego pela polícia dirigindo embriagado. Não aconteceu nem uma coisa nem outra. Talvez fosse melhor se eu tivesse morrido.

Domingo de Páscoa


Acordei de ressaca. Bebi quase um litro de água e tive de ver na geladeira os ovos de chocolate que Clarissa havia comprado para a gente. Estávamos juntos havia três anos e todo domingo de Páscoa ela me dava um ovo de chocolate. Como sabia que eu não compraria um para ela, tratava de se presentear com um ovo, quase sempre de chocolate branco. Joguei os dois ovos fora. Também atirei o bacalhau na lata de lixo. Em seguida, vomitei e, me sentindo menos enjoado, decidi recomeçar minha vida. Tomei um bom banho, recorri a um analgésico potente e me resolvi a sair da cidade. Joguei em uma mochila algumas roupas, laptop, escova de dentes e alguns livros. Iria para uma pousada litorânea para pensar na vida nova que teria de levar.
Estava abrindo a porta do carro quando o celular tocou. Clarissa, com voz lacrimosa, disse que queria conversar e retomar nosso casamento. Pediu desculpas e exigiu que eu as pedisse. Perguntou se eu não queria encontrá-la em um bar-restaurante onde costumávamos ir. Concordei. Subi ao apartamento para deixar a mochila e rumei para o supermercado mais próximo, para comprar dois ovos de chocolate...

31 março 2009

Homem que é homem mata pela honra



Cefas Carvalho

O sol castiga sem dó nem piedade minha carne durante esta jornada maldita que eu faço. De Santo Antão para Cruzeiro do Norte são três léguas, como bem sabe todo sertanejo que mora por estas bandas. De cavalo, a trote lento, dá coisa de uma hora de viagem. Tempo mais que suficiente para pensar. No bem e no mal. Quanto a mim, pois nesta vida que Deus me deu só posso responder por mim, só pensava no mal. Não poderia ser diferente, depois do que Tonha me fez. E do que Lázaro me fez também, verdade seja dita. Que o Cão leve os dois. Mas, entre o sim e o não, decidi não esperar nem o Cão nem Deus – amém – fazer justiça. Vou fazer justiça eu mesmo. Pois homem que é homem mata ou morre pela honra, como dizia meu pai, que foi morto por dois policiais em tocaia por causa de uma briga de bar. Perdeu a vida, mas não a honra. Homem é assim, e Tonha sabia que estava com um homem quando começou a namorar comigo naquela quermesse de São João, há uns dois anos. Ou três, não lembro. Quem lembra estas coisas de data é mulher. O que sei é que Tonha vai pagar com a vida o que fez comigo. Com homem, ainda mais sertanejo e filho de Chico Bebé, cabra macho morto na traição por polícia, como relatei, não se brinca. Muito menos um sujeito frouxo como Lázaro, que com aqueles óculos enormes na cara e aquele cabelo abestado repartido ao meio, nunca bebeu uma cana com a gente no bar de Biduca e nem vai com a macharada para a casa de Francisquinha, para o chamego com as meninas. Lázaro talvez nem homem macho seja, como diz Zé Amorim. Mas, me disseram que ele, há muito tempo, já se chegou em Tonha. Ela é que não quis. Não consigo tirar da cabeça o que o sarnento do Lázaro disse sobre minha Tonha. O que foi que ele disse mesmo? O difícil do lembrar é porque eu tinha bebido umas canas lá em Biduca. Mas, sei que Lázaro disse alguma coisa sobre minha Tonha. Que eu tinha que cuidar dela. Por que eu tinha que cuidar dela? O que ela estava fazendo para que eu cuidasse mais? Lázaro disse mais uma ruma de coisas, mas eu não lembro. Só recordo que não gostei e que saí de Biduca disposto a fazer justiça com minhas mãos. Com sangue. Repito: o sol me castiga e me faz suar feito um porco, mas não descanso nesta jornada rumo à casa de Tonha. Ela vai pagar pelo que me fez. Nem sei direito o que ela me fez, mas Lázaro disse. O que aquele excomungado havia dito? O ruim de beber cana e conversar é isso, que depois a gente não lembra direito o que os cabras falaram. E diziam que Lázaro nem macho é. Não sei e nem sei que quero saber. Só sei que nesta vida a honra vale mais que a vida. Lázaro vai pagar também. Ele e Tonha vão pagar pelo que fizeram a um cabra macho de verdade. Lázaro disse alguma coisa sobre Tonha precisar de mais atenção. Quem é aquele diabo para saber do que minha Tonha precisa ou não? Não sei porque não sangrei aquele afrescalhado na hora. Acho que levantei, dei boa noite e saí do bar de Biduca. Como bebi muito não lembro de tudo, mas penso que foi assim. E depois acordei na rede, na casa de mainha, com vontade de botar tudo para fora. Foi quando decidi ir a Cruzeiro do Norte para justiçar Tonha. Minha Tonha, de cabelos pretos feito a asa da graúna e pele cor de melaço de cana. Eu devia ter sangrado Lázaro. Homem que é homem mata pela honra. Chego, então a Cruzeiro do Norte, apeio do cavalo e passo no bar de seu Noronha. Ele oferece uma cana, mas eu peço só água bem gelada. Que eu tenho de ter com Tonha e quero estar bom para fazer o que tem de ser feito. Bebo a água, chupo umas siriguelas, vomito um pouco no banheiro e tomo o caminho da casa onde Tonha mora com os pais. Bato na porta. Dona Mariinha atende e sorri para mim, gritando Tonha, Tonha, seu noivo está aqui! Percebo que esqueci minha peixeira em Santo Antão. Esqueci também o que Lázaro disse de Tonha. Uns dizem que ele nem é macho. Tonha vem até a sala, com seu sorriso luminoso feito vaga lume, eu sorrio, pois não tem como não se abrir em riso vendo uma coisa mimosa e linda daquelas, e eu abro os braços para aconchegar minha Tonha em meu peito.

27 março 2009

O mundo é grande



Cefas Carvalho



Era necessário acreditar nela – na amada – como em um deus. Munido de fé, e sem qualquer evidência de que esta fé tornaria sua vida melhor ou mais feliz. Na verdade, sempre fora assim, desde os primórdios da relação, quando ela entrou em sua vida e ele permitiu que a amada – com sua beleza, sua paixão e sua fome de viver – lhe guiasse a vida como quem cede o leme de um navio em meio a uma tempestade.
Contudo, como todo cristão-novo, como todo convertido após certo tempo sem milagres, ansiava por provas, por sinais. Sabia que não conseguiria mais acreditar nela – e nem na relação – sem evidências, ainda que fossem tênues como pistas de um crime quase perfeito. Mas, necessitava de material palpável para trabalhar. Cansara dos êxtases, das orações, das promessas de fé que não se transubstanciavam em pão e vinho.
Acordaram conversar em um restaurante discreto próximo a praia, onde já haviam trocado juras de amor eterno e também destilado ódio um pelo outro. Ele chegou primeiro, pontual que era, o que lhe deu tempo para rabiscar pensamentos em um guardanapo de papel. Estava convicto do que queria – o fim da relação – mas conhecia a si mesmo, ou passara a conhecer naqueles últimos três anos, para saber que bastaria a amada caminhar pelo corredor do restaurante em sua direção, para sua alma estremecer e ele não saber mais o que desejava da vida.
Era justamente esse o problema. Acreditava na amada como quem acredita em um deus – com fé, e somente – e amava aquela mulher como a um ídolo sagrado. A imagem dela o hipnotizava, sentia-se um seguidor de seus rituais, da seita que era inventara unicamente para os dois... contudo, sabia que era impossível viver assim. Mesmo os fiéis mais fanáticos, enfurnam-se na igreja, oram de joelhos, mas depois se recolhem ao cotidiano, dormir, comer, criar os filhos, colocar a comida do cachorro...
Sabia – com a consciência dos que já passaram pela roda da tortura – que quando a amada chegasse, as palavras duras morreriam ainda em sua garganta e que o perfume dela dissolveria no ar todo o fel que destilara. Terminariam a noite entre lençóis, envolvidos em batalhas de carne, e ela juraria amor eterno, para recomeçarem, então, o circulo de agonia e êxtase que viviam.
Olhou, pela janela do restaurante, para o céu lá fora, de um azul quase absurdo e cheio de nuvens, e suspirou, imaginando como o mundo era grande. Não com ela. Ao lado da amada o mundo era só os dois, como convém aos amores loucos e às paixões suicidas. Queria a paixão, queria o amor, mas também queria o mundo real, grande, difuso, incerto...
Pagou a água mineral, desligou o celular e saiu do restaurante, rumo ao mundo, que era grande e que estava à sua espera...

23 março 2009

A Biblia deveria ser proibida para menores


Cefas Carvalho

Faz algum tempo, escrevi crônica sobre as diferenças cerebrais entre homens e mulheres, fazendo uma analogia bem humorada entre humanos e primatas. Recebi críticas de um cidadão registrando que não existem comparações entre humanos – filhos de deus, disse ele – e animais irracionais. E recomendou que eu lesse a Bíblia. Dias depois, ao ler uma crônica erótica de minha autoria e saber que eu lancei uma plaquete intitulada “Sonetos eróticos e/ou pornográficos” uma amiga lamentou que eu gastasse tempo e energia louvando a devassidão e também recomendou que eu lesse mais a Bíblia.
Bem, resolvi seguir o conselho dos críticos. Não que eu não tivesse lido a Bíblia. Já a devorei de cabo a rabo por duas vezes (pulando os livros técnicos como Números, Deuteronômio), cada uma com um espírito diferente: na primeira vez, ainda crente na existência de um ser superior, li para ratificar essa certeza. Na segunda, já desconfiado que tal idéia poderia ser tão irreal como Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, ETs e Smurfs, li com olhos mais críticos, pinçando contradições e absurdos. Decidi nesta terceira lida, algo superficial e sem rigor cronológico, atentar para o pitoresco, o insólito, ou para ser mais grosseiro e exato, para a parte barra-pesada do livro sagrado do cristianismo.
Ou o leitor ainda acha que a Bíblia tem apenas ensinamentos edificantes e parábolas de Jesus? O livro está coalhado de episódios que nada ficam a dever ao Decamerão, de Boccaccio ou aos romances picantes de Fielding e Cleveland. Vamos, pois, aos trechos da Bíblia que poderiam – sob uma ótica moralista bem afeita aos cristãos – ser proibidos para menores de 18 anos. E que o leitor nem imagine Maria Madalena aqui. Ela é light para o padrão do Antigo Testamento.
Há alcoolismo: “Bebendo do vinho (Noé) embriagou-se e se pôs nu dentro de sua tenda” (Gênesis 9, 21). Há coito interrompido: “Sabia Onã que o filho não teria tido por seu e todas as vezes que possuía a mulher do seu irmão, deixava o sêmen cair na terra para não dar descendência a seu irmão” (Gênesis).
Bizarrices sexuais temos aos montes; adultério, incesto, ninfomania, satiríase, estupro etc. Quando Ló fugiu de Sodoma e Gomorra com as filhas para uma caverna, elas concluíram que não havia nenhum homem naquela terra com quem se unirem e continuarem a linhagem do pai. Decidiram digamos, deitar com o próprio pai para conservar sua descendência. Primeiro uma o embriagou com vinho e deitou-se com ele e na noite seguinte a irmã fez o mesmo. “E assim as duas filhas de Ló conceberam do próprio pai” (Gênesis 19, 30-35).
Mas, poucas histórias são tão insólitas (e lascivas) como a de Jacó, filho renegado de Isaac, que trabalhando com seu tio Labão resolveu casar-se com a prima Raquel, a quem amava. Contudo, na noite de núpcias, Labão entregou a Jacó não Raquel, mas sua outra filha, Lia. Jacó só percebeu a “pequena” diferença do dia seguinte, quando o casamento estava consumado. Labão concordou em também lhe entregar Raquel por esposa em troca de mais sete anos de trabalho. Assim foi feito e Jacó casou com a amada Raquel. Acontece que Raquel não engravidava, e Lia sim, de forma que Raquel deu sua escrava Bila para Jacó coabitar e ter um filho como se de Raquel. Mas, quando Lia pára de engravidar, recorre ao mesmo expediente e entrega sua escrava Zilpa para Jacó. Em suma: em uma década, Jacó teve 12 filhos com quatro mulheres diferentes e na mais perfeita harmonia (Gênesis caps 29 e 30).
Outro manancial de histórias eróticas e a do rei Davi e de seu filho Salomão. Que Davi era uma predador sexual parece evidente, tanto que apesar de já casado com Mical e Abigail, “tomou Davi mais concubinas e mulheres de Jerusalém, depois que veio de Hebron e nasceram mais filhos e filhas” (2º Samuel 5,13).
A epopéia erótica mais conhecida de Davi foi quando à noite, passeando pelo terraço do palácio, viu uma mulher tomando banho nua em outro terraço. Era Bate-Seba (Betesabá). Davi ordenou que a levassem ao palácio e a possui naquela mesma noite. Ela engravidou. O problema é que era casada com um bom soldado, Urias. Como solução para o problema, Davi mandou chamar Urias da guerra para que dormisse com a mulher e o filho passasse como do marido. Urias, em fidelidade à pátria e aos soldados que estava na batalha, recusou dormir com Bate-seba. Davi encontrou solução mais prática para o problema: manbdou Urias para a frente de batalha para deixar que fosse morto. Urias morreu em combate e Davi casou com a viúva (2º Samuel 11).
Antes de Salomão chegar ao poder, o filho rebelde de Davi, Absalão, proporcionou outra história picante: “Armaram para Abasalão uma tenda no eirado e ali, à vista de todo Israel, ele coabitou com as concubinas de seu pai” (2º Samuel 16,22). Cena de filme pornô...
Mas, vamos a Salomão, que no quesito se cercar de mulheres, dava de capote nos milionários e playboys de hoje. Diz 1º Reis, capítulo 11: “Ora, além da filha de faraó, amou Salomão muitas mulheres estrangeiras; moabitas, amonitas, edonitas, sidônias e hetéias. A estas, se apegou Salomão pelo amor. Tinha setecentas mulheres, princesas e trezentas concubinas...”
Mesmo com tanto tempo dedicado a mulheres ainda lhe sobravam algum para reinar e também para escrever. Foi Salomão o autor dos Salmos e do Eclesiastes, talvez os mais belos livros bíblicos. Ele também escreveu os “Cantares”, poema erótico encravado no meio da Bíblia. “Beija-me com os beijos de tua boca que melhor é teu amor do que o vinho”. “Leva-me à sala do banquete e o teu estandarte sobre mim é o amor”. “Já despi a minha túnica, hei de vesti-la outra vez?” e por aí vai.
Ah, e para finalizar este texto, uma curiosidade algo GLS, bem à moda do revisionismo feito pelos grupos gays (que sustentam que Zumbi e Shakespeare eram gays. Talvez o fossem, mas ter certeza, quem há de?). A relação do rei Davi, ainda guerreiro com Jônatas, filho do então rei Saul, era curiosa. Trechos suspeitos: “Acabando Davi de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a de Davi e Jônatas o amou como à sua própria alma” (1º Samuel 18, 1). “Jônatas fez jurar a Davi de novo pelo amor que este lhe tinha, porque Jônatas o amava com todo o amor da sua alma” (1º Samuel 20, 17). Quando Jônatas morreu, Davi se lamentou assim: “Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas, tu era amabilíssimo para comigo, excepcional era teu amor, ultrapassando o amor de mulheres” (2º Samuel 1, 26). "Brokeback mountain" perde para isso. Pensando bem, vou a ler a Biblia com mais assiduidade, como querem os críticos citados no primeiro parágrafo.

02 março 2009

O carnaval da minha dor


Cefas Carvalho

O carnaval da minha dor começou em uma sexta-feira ensolarada como têm início os carnavais - sejam dolorosos ou não - em um ano qualquer e em uma cidade igualmente qualquer (o carnaval é igual em qualquer cidade quando o objetivo é sofrer, e não se alegrar. parafraseando Tolstói, todos os carnavais infelizes se parecem, os carnavais alegres é que são diferentes...)
Mas, voltemos à minha dor... toda ela gerada pela Colombina, posto que eu era, novamente, o Pierrô. Há quantos carnavais vivíamos esta história insana, excitante, mal contada?... Havia uma década, suponho. Eu não sabia nada sobre ela, apenas seu nome - Miriam - que ela revelou por um deslize enquanto fazíamos amor embaixo do palco das autoridades que assistiam ao desfile das escolas de samba na cidade de... deixemos para lá. E chamemos minha amada de Colombina, que é como sempre a chamei e como ela gosta de ser chamada (isso a excita, presumo).
O fato era que o que havia começado como uma fantasia (em todos os sentidos) passara a ser –pelo menos para mim – uma obsessão. Primeiro nos conhecemos, entre o confete, a serpentina, o álcool e o loló, como todos se conhecem durante a folia, entre a superficialidade e o desejo... depois o beijo, o desencontro e por fim o reencontro na noite de terça-feira e terminar a noite – e aquele carnaval – entre lençóis no meu quarto de hotel. Trocamos telefone, mas, para quê? Jamais nos telefonamos. A não ser na véspera do carnaval do ano seguinte, quando ela avisou que novamente se fantasiaria de Colombina e que queria me ver outra vez de Pierrô. Passamos o carnaval entre encontros e desencontros, ela com Arlequins, eu com Odaliscas... tentei brigar, mas ela só queria se divertir. Jurei que no carnaval seguinte não passaria mais por aquilo. Tolice. Uma semana antes da festa momesca, a Colombina me ligou dizendo em que cidade passaria o carnaval lá fui eu atrás dela, rumo a prazeres carnais rápidos e uma dose considerável de sofrimento. Identifiquei-me com a música... "Um pierrô apaixonado, que vivia só chorando, por causa de uma colombina acabou chorando, acabou chorando...” (Pierrô Apaixonado, de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres)
Lá pelo quatro ou quinto carnaval que passávamos da mesma maneira, encontrando e desencontrando entre ladeiras, becos e multidões, tomei coragem e a pedi em casamento. Ela riu, argumentando que eu sequer a conhecia e continuou sua caminhada de Colombina desvairada, à procura de outras bocas, outros braços, outros pierrôs... Mas, na quarta-feira de cinzas lá estava ela em meus braços... E eu tentando fazer com que nos víssemos em outro período que não no carnaval. Inútil. “Eu gosto das coisas assim...”, enfatizou, despindo suas roupas de Colombina. Enquanto ela pegava um táxi rumo ao aeroporto (já morávamos em cidades diferentes) "O pierrô apaixonado chora pelo amor da colombina..." (Pierrot, de Marcelo Camelo, da banda Los Hermanos).
Passam os meses e fevereiro se aproximou, como sempre, trazendo consigo o Carnaval. Não telefonei para a Colombina e tampouco ela me ligou. Fiquei em minha cidade, e vesti-me de Pierrô – pela última vez – para pular sozinho meu carnaval. Eis que então que, entre lágrimas e cerveja, vi a Colombina – sim, só podia ser ela, era seu andar, seu jeito de mover os braços, de balançar os cabelos, de rir ao vento... - aos beijos com um Arlequim. Olhei fixamente para ela. Ela me viu e não esboçou qualquer reação. Era uma Colombina, mas, seria a minha Colombina? Que importava? Que mais havia a fazer? Comprei outra latinha de Skol e me entreguei à multidão que entoava uma marchinha qualquer, que aos meus ouvidos soava como a marcha fúnebre: eu estava condenado a ficar apaixonado pela imagem (literal e simbólica) da Colombina até o fim dos carnavais, ainda que toda Colombina que cruzasse meu infeliz caminho não fosse a minha... “Quanto riso, ó, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão... O pierrô está chorando pelo amor da Colombina no meio da multidão...”

18 fevereiro 2009

A fonte dos desejos


Cefas Carvalho

Oscilando entre a incredulidade e a fé, ele chegou, após longa e tortuosa caminhada, à fonte dos desejos. Passara anos ouvindo falar da fonte milagrosa ao pé da montanha sagrada de M., da cidade igualmente mística de S. Homens enriqueceram após uma visita à fonte e molharem o rosto com sua água cristalina. Outros obtiveram sucesso profissional. Mulheres estéreis tiveram filhos. Dizem que um cego retomou a visão; um surdo ganhava a voz. Claro, como em toda questão de fé, não se tinha certeza em nada. Acreditar era tudo.
Suando, apesar do frio que fazia, entrou na fila para se molhar com a água sagrada. Chegada a sua vez, olhou para a pequena fonte circular, como um poço, e contemplou a água esverdeada que – diziam – obrava milagres. Com a mão em concha, apanhou uma porção d´água e molhou o rosto lentamente, como se fazendo uma oração. Fez o seu pedido.
Terminado o ritual, afastou-se da fonte, dando espaço para outros romeiros e caminhou a esmo, contemplando a beleza da montanha. Havia de esperar que seu desejo fosse realizado. Não sabia quando. Talvez a fonte não passasse de uma lenda, de mais uma ilusão dos crentes em algo além do visível.
Retornou a pousada e comeu um sanduíche de frango com cerveja. Voltaria para casa no dia seguinte e decidiu passar o restante da tarde caminhando pelos morros em volta da montanha.
Olhando o céu, de um azul desbotado, andou por uma trilha adornada por pedras cor de rosa, escorregadias. Subitamente, ao observar com atenção uma nuvem amarelada, escorregou em um punhado de folhas úmidas e despencou morro abaixo, caindo pesadamente em um emaranhado de raízes pontudas. A dor foi quem o avisou que uma delas transpassara sua carne - na altura do estômago – de um lado para outro. Cuspindo sangue e com a respiração ofegante, percebeu que estava morrendo, que não viveria mais sequer dez minutos e ardeu em felicidade em saber que seu desejo fora atendido: que alegria, vou morrer!, pensou. Desde tenra idade, queria morrer. Pensara em suicídio – lâmina nos pulsos, cabeça no forno, arma de fogo – mas a covardia era mais forte que a vontade de morrer. Queria um acidente, um acaso. Soube da fonte dos desejos e resolveu recorrer à sua suposta magia. Sorriu em sangue e morreu tranquilamente, lembrando da água esverdeada da fonte dos desejos.

11 fevereiro 2009

De aberrações e de (verdadeiros) monstros




Cefas Carvalho

Todo cinéfilo tem uma gama de filmes que se tornam míticos de tanto que os tentamos assistir, que os procuramos, que tentamos baixá-los na internet, algumas vezes sem êxito. Na banca 7º Arte, no camelódromo do centro de Natal, encontrei totalmente por acaso um destes filmes: “Freaks”, o clássico de Tod Browning que nestas plagas tropicais ganhou o nome de “Monstros”. Nada mais errôneo. “Freaks” é um termo da língua inglesa que pode ser traduzido como “aberrações” e se refere principalmente a pessoas que são diferentes do que se chama “normal”: anões, malformados geneticamente etc. Existe inclusive uma ciência que estuda as deformações, a teratologia. Confesso que tenho um fascino por isso, e desde a adolescência coleciono informações e fotos de “freaks” (Não por acaso, “O homem elefante”, de David Lynch, foi desde os quinze anos um dos meus filmes preferidos. E Lynch é fascinado por teratologia). Bem, vamos ao filme: a trama é simples ao extremo e serve de mero pretexto para o diretor expor suas aberrações humanas na tela. Sim, os “freaks” do filme são reais. Nada de maquiagem ou efeitos especiais. O filme é de 1932, não nos esqueçamos. Não havia noções de politicamente correto no mundo e os circos com aberrações humanas eram sucesso e aceitáveis socialmente. Portanto, os “astros” do filme são anões, mulheres com microcefalia e “freaks” que fizeram história como Johnny Eck, o “homem torso”, cujo corpo terminava abaixo do umbigo; Olga, a famosa mulher barbada; e Raduan, o “homem verme”, que não tinha braços e pernas, mas ainda assim se locomovia, acendia sozinho seu cigarro (cena mostrada no filme), falava três línguas, se casou e teve filhos. Com este “elenco” recrutado nos circos, Browning fez seu filme na qual em um circo itinerante, uma ambiciosa trapezista se casa com um anão para herdar a fortuna dele e isso provoca problemas que levarão a um fim trágico. O filme foi combatido, proibido, cortado e posteriormente tido como preconceituoso e arcaico, posto que Browning teria feito o mesmo que os donos de circo: exposto os freaks como meras atrações para lidar com a morbidez e curiosidade dos espectadores. Mas, há quem discorde. Todos eles são tratados com carinho pelo roteiro e pela direção, e no frigir dos ovos o filme gera efeito similar ao causado por “O homem elefante”. Passada a estranheza inicial (inevitável, claro) nos sentimos à vontade com os freaks e logo percebemos que os monstros reais do filme são os “normais” Cleópatra (a trapezista) e o amante dela, o mau caráter Hércules. Assim como no filme de Lynch, o monstro do filme não é John Merrick, o homem elefante, mas sim o dono do circo que o explora e o agride. Na minha modesta opinião, “Freaks” acaba sendo um libelo contra o preconceito. Até mesmo na cena final, na vingança contra Cleópatra, os “freaks” são mostrados com dignidade, como gente que pode se defender e responder aos insultos e mau tratamento. Gosto de filmes que questionem os padrões pré-estabelecidos da sociedade, como o da beleza estética. Passada uma hora de filme você terá asco pela bela, alta e loira Cleopatra e terá vontade de bater papo com a anãzinha Frieda, com sua dignidade e tolerância. E perceberá que o “homem pela metade” Johnny Eck é mais alegre, educado e bom de se conviver que os outros “homens normais” do circo. Duvida? Assista o filme.

04 fevereiro 2009

Fome



Cefas Carvalho

Matei meu pai. Comi carne humana.
Tremo de tanta felicidade.
(Pasolini em Pocilga)


Acordou com uma fome mitológica. Com os olhos ainda enevoados de sono, sem preocupações inúteis com um banho ou higiene bucal, abriu a geladeira e pegou uma caixa de leite integral, um melão e preparou um sanduíche de presunto. Arrumou-se rapidamente para não chegar atrasado ao trabalho e, sem esquecer de pegar uma maçã para comer enquanto descia as escadas, começou a fazer telefonemas pelo celular.
O escritório de publicidade onde trabalhava ficava a um quarteirão de onde morava, costumando demorar o tempo de uma caminhada de dez minutos para ir de um a outro. Contudo, naquela manhã cinzenta percebeu, ainda no meio do caminho, que continuava com fome. Deteve-se em uma padaria, comprou um pastel de queijo e sentiu o prazer de comer enquanto andava. Chegou à agência, limpando os restos da comida na barba e na gola da camisa.
Tentou afundar no trabalho, como sempre fazia, mergulhando em textos, imagens e conceitos, mas, em dado momento percebeu que uma estranha fome parecia roer seu estômago. Na copa da agência, tomou um café com bolachas cream cracker, mas constatou que este lanche só fizera a fome aumentar. Sentindo dores no estômago e fraqueza nos ossos, esperou pacientemente chegar a hora do almoço, quando desvencilhou-se nos companheiros de trabalho e se refugiou em um restaurante barato.
Fez um prato incomum – para seus padrões alimentares - com bife, arroz, feijão, macarrão, farofa e salada. Terminando o almoço, pediu um pão com manteiga e uma laranja. Depois, um pudim de leite, que considerou insosso, e duas xícaras de café. Levantou-se com a sensação de que tinha aplacado a fome de forma definitiva e que sequer agüentaria jantar mais tarde.
Engano. Mal deu dois passos na calçada, sob o sol causticante, percebeu, horrorizado, que a fome continuava. Pensou em procurar um médico, cogitou telefonar para a irmã, nutricionista. Ou simplesmente ir para casa dormir e acordar sem a sensação de fome. Contudo, não poderia se enganar, e, na pior das hipóteses, muito menos enganar a seu próprio corpo. A fome que lhe carcomia, apesar do que já havia comido até então, era real, dolorida.
Sem muitas alternativas e beirando o desespero, entrou em uma pastelaria e debastou três pastéis de carne, um de queijo e uma coxinha de frango, ajudado por dois copos de caldo de cana. Na saída, deliciou-se com um sorvete de baunilha. Caminhou alguns passos em direção a agência e teve de admitir para si mesmo: continuava faminto.
Cansou de lutar contra si mesmo e contra os instintos do seu corpo; resolveu assumir a fome, ainda que por alguns instantes de desespero e incredulidade e refugiou-se em uma conhecida churrascaria ali perto. Durante um par de horas, refastelou-se com picanha, maminha, frango, cupim, lingüiça, fraldinha, filé mignon; saboreou farofa, vinagrete e arroz; experimentou feijão verde, pediu batatas fritas, enfim, comeu em uma refeição o que normalmente levava dias para ingerir. Estranhamente, ao término da epopéia de carnes, sentia-se leve como um bailarino. Preciso ir ao médico urgentemente, pensou. Porém, ao contrário do que acontecera horas antes, sentia-se bem com seu corpo, como se o organismo e os alimentos (e a necessidade deles) tivessem chegado a um acordo de cavalheiros.
Ao sair do restaurante, percebeu que não conseguiria trabalhar. Telefonou para a empresa pretextando uma doença súbita e, alegremente, foi a um shopping. Ignorou as vitrines chamativas e os cinemas, que tanto amava. Ancorou na praça de alimentação e iniciou uma turnê pelos restaurantes: experimentou comida tailandesa (pato apimentado), saboreou sushis e sashimis, provou de tutu à mineira e baião de dois... comeu o que pode, enquanto o dinheiro lhe deu condições, até começar a usar o cartão de crédito. Olhou a própria barriga; ninguém jamais diria que ele tinha se alimentado tanto naquele dia. Também não sentia nenhuma vontade de ir ao banheiro. Teria se transformado em algo estranho? Seu corpo teria aprendido a processar a comida de forma diferente?
Saiu do shopping Center à noite e, com fome, não sentia nenhuma vontade de ir para casa. Subitamente, o estômago lhe doeu, como se recebesse um golpe de agulha. Havia uma pizzaria por perto, mas teve senso de perceber que seu corpo não queria massas ou queijos. Precisava de carne. Mas, ao pensar em retornar à churrascaria – com o pouco crédito que lhe sobrara nos cartões – sentia que comer mais picanha não o satisfaria. E a fome lhe golpeava como um soco. Sentou-se em um banco de praça escuro no parque, para apertar os braços contra a barriga. Foi quando percebeu o adolescente um pouco à sua frente. Olhava a estátua de Saturno com devoção, como um escultor estuda as formas da modelo que vai retratar. Não devia ter mais que dezessete anos e era branco e magro.
Aproximou-se do rapaz pedindo um cigarro. O jovem respondeu que não fumava. Ele iniciou uma conversa sobre a estátua e conseguiu atrais a atenção do rapaz. Propôs verem outra estátua – de Diana, deusa da caça – do outro lado do parque. Percebeu que estavam praticamente sozinhos naquele lado do gramado e que a escuridão deixava tudo na penumbra. Um pouco antes de chegarem à Diana, em, um trecho particularmente escuro, ele apontou para o jovem uma estrela que brilhava no céu. Quando o rapaz levantou ingenuamente a cabeça para ver, recebeu o golpe de canivete, no meio das costelas.
Ele rodou o canivete até formar um buraco oval na carne do menino. Depois golpeou-o várias vezes, no coração, no pescoço, na barriga. Com uma habilidade que lhe era desconhecida, começou a destripar a carne e se deliciar com seu calor e com o sangue grosso. Arrancou os olhos do rapaz e os comeu. Fez o mesmo com os dedos, o fígado e as coxas. Tentou comer uma orelha, mas a carne era muito dura.
Por fim, vendo a massa disforme de carne retalhada e tripas do que fora um jovem, limpou-se com a camisa, guardou o canivete no bolso e sentiu, pela primeira vez naquele dia feliz e maldito, que a fome havia, enfim, passado.
Foi para casa com a certeza que alguém o abordaria, que iriam prendê-lo. Nada. Protegido pela escuridão e pela indiferença dos outros, chegou ao seu apartamento cansado, mas satisfeito. Tomou um banho quente e deitou-se. Pensou vagamente na carne crua e no sangue que comera e bebera. E de como era bom deitar na cama com o estômago satisfeito.
Dormiu para uma noite sem sonhos.

26 janeiro 2009

A flor e a pedra



Cefas Carvalho

Uma mulher como esta deve ter nome de flor, pensei, quando a vi pela primeira vez. Era o lançamento do livro de poesias de um amigo, e, entre o vinho e conversas tediosas, apercebi-me da mulher à minha frente.
Era linda, de pele leitosa e olhos indecisos entre o negro e o castanho. Cabelos negros presos em coque e um sorriso luminoso. Decidi que precisava conhecê-la e o destino conspirou a meu favor. Uma amiga em comum nos apresentou. Chamava-se Violeta. Contei a ela minha impressão sobre seu nome; ela riu e disse que queria ouvir mais sobre minhas primeiras impressões.
Jantamos no dia seguinte, e o vinho branco serviu como senha para que descobríssemos gostos em comum; livros, filmes, músicas, hábitos... Eu, artista plástico de relativo destaque – ou assim imaginava – ela, uma atriz e encenadora em ascensão, como vim a descobrir. Os muitos gostos em comum se tornaram cumplicidade e esta cumplicidade não tardou a se tornar amor.
Um amor que desaguou em casamento - no cartório e na igreja – e na benção de amigos e conhecidos. Nem mesmo os invejosos de plantão, eternamente alertas como Iago, conseguiram tirar um pedregulho do castelo onde erguemos nossa história de amor. O êxito emocional fez-se seguir pelo sucesso profissional; tive telas vendidas para a Holanda e a Itália; Violeta ganhou ovações e prêmios por uma ousada encenação de Medeia... Consideramos-nos preparados para conquistar o mundo. Quem ou o que poderia nos impedir? Éramos jovens, belos, inteligentes, ousados... e quando tínhamos alguma dúvida destas pretensas qualidades, os amigos e admiradores não demoravam a nos lembrar delas. Violeta era a flor, de nome e trato; eu, era a pedra, pela personalidade e firmeza em ações e opiniões. O casal perfeito, disseram. E cometemos o erro de acreditar cegamente nisso.
Não tardaram os conflitos que, como ondas noturnas, começaram a erosão no castelo do nosso amor. Ciúmes, quase sempre sem razões e intempestivos; intolerância, muitas vezes próxima da grosseria; ambos guardando rancores como quem guarda bijuterias em uma caixa. Minhas telas sofreram o efeito da crise; os temas se tornaram mais lúgubres, as cores, mais escuras. Violeta, por sua vez, desaguava nas personagens a raiva que carcomia seu coração. Atrasei a entrega de telas e diminui o ritmo de trabalho. Ela, chegava atrasada a ensaios e se tornava mais ríspida com os colegas de palco. Afinal, a maior parte do tempo era dedicada ao jogo das ofensas, da espera pela ironia para responder a uma ironia antes colocada à mesa. Os corações acelerados, a mão trêmula de medo ou ódio. E o castelo ruiu, como seria de se esperar. Os amigos, sem surpresa, testemunharam a flor se recolher ao seu jardim e a pedra rumar para a aridez do deserto.
Encontramos-nos três vezes Violeta e eu, após a separação. Ensaiamos retomar o casamento, trocamos mais frases ferinas, choramos um pouco, mas, por fim, decidimos manter-nos longe um do outro. O tempo curaria as dores, como costumam dizer e era, possivelmente, verdade.
Porém, a separação parece ter atraído a sorte contra nós. Meses depois, dirigindo com sono, voltando de uma apresentação de Macbeth, Violeta bateu o carro contra um caminhão na BR-101. Ficou meia hora sangrando presa às ferragens. Perdeu a perna direita. Estava fazendo fisioterapia e tentando se adaptar a uma prótese.
Quanto a mim? Cá estou em um restaurante, lembrando de tudo que relatei agora e esperando Violeta chegar. Ouvi sua voz atrás de mim, dizendo meu nome com suavidade. Senti sua mão em meu ombro esquerdo. Com um barulho estranho – a prótese, claro – ela sentou-se à minha frente. Talvez estivesse sorrindo. Talvez tivesse pintado novamente o cabelo. Esqueci de relatar somente este detalhe, sobre mim; uma semana depois do acidente de Violeta, senti uma imensa dor nos olhos, que tentei aplacar com colírios e soro biológico. Como a dor não passava e a vista começou a ficar enevoada, recorri a um oftalmologista para trocar os óculos. Descobri que havia contraído uma bactéria rara, similar ao glaucoma, e que estava ficando cego. Fui cirurgiado, na esperança de manter a visão, mas foi inútil. Como Édipo, como Borges, fiquei cego.
Eu e Violeta estamos aqui, rindo de nosso quinhão de sofrimento nesta vida. Um cego e uma aleijada, ela riu. Agora, não era o mundo que tínhamos para conquistar, mas sim, a vida cotidiana, como fazer um café ou fritar um ovo. Rimos disso e pedi que ela colocasse mais vinho em minha taça...

14 janeiro 2009

O envelope amarelo



Cefas Carvalho

Estava em casa assistindo televisão e bebendo café com leite quando ouviu o som da campainha. Pensou que era um dos filhos, sempre esquecem a chave!, ou o vizinho querendo emprestado alguma ferramenta, sempre o fazia! Pelo olho mágico não viu ninguém, e intrigado, abriu a porta. Percebeu em cima do tapete da entrada um envelope grande, amarelo. Pegou-o e entrou em casa. Que diabos será isso?, pensou, imaginando uma cobrança ou um engano. Nada estava escrito no envelope. E estava aberto. Com a mão, retirou de dentro uma série de folhas de papel grampeadas. Sentou-se para ler. Logo na primeira página, ficou intrigado. Viu o nome de Marcos Alexandre, seu amigo de infância, e em seguida, uma série de informações sobre ele: nome completo, identidade, CPF, data de nascimento, signo, ascendente, onde morava, nome dos filhos etc.
Na página seguinte, outra surpresa, esta maior: uma série de informações sobre a vida de seu amigo. Leu um pequeno trecho: “Apesar de casado com Iracema, Marcos mantém um relacionamento extraconjugal com Celeste, professora da rede pública de ensino e que mora no bairro das Quintas, há pelo menos cinco anos. Seus amigos sabem disso. Seus filhos também”. Ficou preocupado com o que leu. Seria uma brincadeira de mau gosto? Passou a página. Lá estava o nome de Carlos Buarque, companheiro de trabalho e de peladas no fim se semana. Na primeira página, a mesma coisa: informações básicas, número do RG, endereço, e-mail, número de contas de banco. Na página seguinte, informações mais bizarras: “Carlos, embora um pai de família considerado exemplar, assediou sexualmente a sobrinha de 15 anos, e há alguns anos, manteve um caso com uma garota de 14”. Respirou fundo. Aquilo estava muito estranho...
Continuou a passar as páginas. Leu então o nome de Raimundo Santarém. Tratava-se de um antigo desafeto com quem chegara a trocar desaforos havia alguns anos. Era um homem ranzinza e meticuloso, que gostava de esfregar sua verdade na cara dos outros. Com atenção, leu as informações básicas do inimigo, na verdade já as conhecia. Passando a página, deparou-se com mais uma surpresa: descobriu que o homem esnobe e orgulhoso de sua retidão, não apenas estava do SPC e Serasa, como ainda devia uma fortuna para bancos. Seu carro do ano, da qual se gabava, não passava de uma compra por leasing e estava prestes a ser tomado por um outro banco. Passava cheques sem fundo. Por três vezes, recorrera a agiotas. Era um fracassado, em termos financeiros.
Mais páginas. Descobriu o nome da secretária do escritório onde trabalhava, Clarissa Maciel, evangélica ferrenha, que tentava convencê-lo a aceitar a palavra de Deus, mas na igreja que ela frequentava, claro. Lendo, descobriu que ela fizera – já convertida - dois abortos de um homem casado com quem mantinha um envolvimento secreto. Também batia na mãe setuagenária, a quem mantinha em uma espécie de cárcere privado. Chegou à página de seu chefe, Patrício Guimarães, homem espirituoso e alegre, orgulhoso da vida que levava. Contudo, segundo o relatório detalhado, tentara o suicídio havia um ano, quando a mulher – que costumeiramente o traía, revelação que o surpreendera – o abandonara e aos filhos para viver com outro homem. Após ela ser rejeitada pelo amante, voltara para Patrício.
Meu Deus, de onde veio isso? - Indagou-se, já com um estranho contentamento. Pensou no que poderia fazer com tantas informações. Tinha consciência que saber das coisas era um trunfo em quaisquer circunstâncias. Percebeu que tinha a vida de muita gente – que gostava ou que odiava – em suas mãos. Não dizem que informação é tudo? - Divertiu-se. Continuou a ler. Descobriu coisas ocultas e estranhas sobre a vida dos vizinhos, da atendente da farmácia, do dono da padaria do bairro. Sentiu-se um deus. Parou de ler, encheu um copo de uísque e acendeu um cigarro. Não cabia em si de tanta euforia. O que posso fazer com tantas informações? - Pensou. Como tirar vantagem deste presente que o destino colocou em minhas mãos?
Alegre, percebeu que faltavam poucas páginas para terminar o relatório. Continuou a ler, esperançoso em saber mais informações sobre desafetos, amigos e conhecidos. Teve uma surpresa ao ler o nome de Eduardo Pinheiro. Era seu filho. Pulou a primeira página, com todas as informações de praxe, todas detalhadas e absolutamente corretas. Na página seguinte, sofreu um baque: descobriu que o filho o odiava, que cheirava pó havia meses, que fora ele – o filho amado – quem furtara produtos em um supermercado na rua vizinha.
Abatido, continuou a leitura. Chegou então ao nome de Laura Pinheiro, sua filha adolescente. Entre mentiras e intrigas, descobrira que ela fazia assaltos regulares à sua carteira. E ele que sempre pensara que as cédulas eram subtraídas pela esposa, para seus badulaques e futilidades. Mas, o pior estava por vir: descobriu, na leitura amarga, que Laura não era sua filha. Era o produto maldito de uma rápida traição da sua esposa.
Sabia o que viria nas últimas páginas do relato, agora macabro. Leu com alguma dor o nome de sua esposa, Lucia Bertioga Pinheiro. Bebeu de um gole o uísque e armou-se para a leitura que viria. Soube então que ela já o traíra algumas vezes, como descobrira amargamente na leitura anterior, que mantivera um caso com um amigo da família e pensava seriamente em abandoná-lo. Que ainda desprezava seu comodismo profissional, comentava com as amigas o esfriamento – quase morte – de sua vida sexual com o marido.
Correu para o banheiro. Ligou o chuveiro e deixou-se ficar na água gelada por imprecisos minutos, talvez horas. Cansado e com frio, desistiu do suplício. Enxugou-se, e ainda trancado no banheiro ouviu o barulho da chave girando na maçaneta da porta e o barulho do sapato da esposa. Pensou em matá-la e depois se matar. Cogitou gritar, quebrar a sala inteira. Primeiro iria olhá-la nos olhos, fingir não saber de nada, pressioná-la contra a parede. Saiu com a decisão de confrontar a mulher falsa com quem vivera ao longo dos anos.
Na sala, encarou-a. Surpreendeu-se com o olhar de fúria impresso em seu rosto.
- Quem é Vanda? – perguntou a esposa.
- Como assim?
- Já sei de tudo.
- Tudo o quê?...
- De você e Vanda. Sei que tem uma filha com ela. Cecília, não é mesmo?
Engoliu a seco. Tentou falar, a mulher não deixou.
- E o caso que teve com minha prima Janaína, foi bom? E ter transado com ela na nossa cama no reveillon do ano retrasado, foi bom, seu canalha?
Tentou se defender, mas não encontrava palavras no vazio imenso que se apossara dele. Sabia que era tudo verdade, não teria como contra-argumentar. Percebeu então na mão da mulher uma série de folhas de papel. E debaixo do seu braço esquerdo, um envelope amarelo...

06 janeiro 2009

A menina do cemitério


Cefas Carvalho


Essa história aconteceu há pouco tempo, mas, somente agora, ganhei forças para contá-la.
Nascido em Pendências, mas órfão de pai e mãe desde a infância, fui criado em Natal, mais exatamente em uma tranqüila rua do Alecrim por minha tia Lucia e por seu marido, que eu chamava de Tio Baltasar. Ele, coitado, morreu de cirrose no dia do meu aniversário de quinze anos. Minha tia passou a ser minha única referência afetiva e vice-versa. Jamais tive o que me queixar dela ou da vida. Fui bem criado, estudei em ótimas escolas, entrei na universidade e por fim formei-me em Educação Física.
Incentivado por tia Lucia, fui fazer um curso de um mês em Recife sobre técnicas desportivas. Foi na capital pernambucana, porém, que recebi a noticia que tia Lucia havia morrido, vítima de infarto. Confesso que viajei chorando durante as quatro horas de ônibus que separam Recife de Natal.
No enterro, no Cemitério do Alecrim, poucos parentes, uma e outra amiga e eu, me sentindo pela primeira vez sozinho no mundo. Após todos irem embora, ainda fiquei um bom tempo a olhar para os túmulos e mausoléus, até que o zelador gentilmente me mandou embora, advertindo que era hora de fechar.
No dia seguinte voltei ao cemitério. Depositei mais flores no túmulo de minha tia. Sem que ninguém me visse – era proibido fumar ali, me dissera o zelador – acendi um cigarro a vagar pelas ruas no cemitério. Tantos anos morando no Alecrim e eu jamais entrara ali até então, afinal, meu tio fora enterrado no interior e nenhum conhecido ou amigo jamais fora sepultado naquele solo.
Na segunda semana sem tia Lucia, trabalhando em uma escola apenas de manhã e com a tarde e noite livres, passei a dedicar mais tempo a pensar na morte em si do que na perda específica da minha tia. Não sentia vontade de sair ou beber com os amigos, e tampouco estava atrás de companhia feminina, posto que havia terminado um longo namoro havia alguns meses. Também comecei a ir três vezes por semana ao cemitério, ambiente que me parecia cada vez mais familiar. Fiz amizade com o zelador, os funcionários. Conheci a administradora do local, dona Lenilde. O cemitério tem o poder de convidar à reflexão e mais que morbidez a visão de tantas pessoas que se foram me trazia uma estranha espécie de paz, em lugar de repulsa ou morbidez.
Em uma dessas tardes, passeava pelos túmulos, contemplando alguns imponentes, como o de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, quando de repente avistei uma jovem na minha frente, a me olhar como se eu estivesse fazendo algo errado.
- Estou observando você há alguns dias...-sorriu
- É, eu estou vindo aqui com freqüência respondi, atordoado com a abordagem.
- Eu também gosto muito daqui. É calmo, tranqüilo, tão diferente do mundo...
- Você mora aqui no Alecrim?
- Exatamente.
- Qual seu nome?
- Aurélia – sorriu. Um sorriso doce, sereno. Reparei então na menina, de longos cabelos castanhos se derramando pelo vestido azul claro. Os olhos, imensos, vivos, fixos em mim. Deveria ter entre dezoito e vinte anos. Bela como poucas eu tinha visto.
- Bem, vou te deixar na sua caminhada. Até logo – sorriu, se afastando. Tentei falar algo para impedi-la de ir, mas as palavras não saíram. Pensei em rodar pelas ruas do cemitério, que afinal não era tão grande assim, mas desisti. Voltei para casa com uma sensação estranha, de quem deixou para trás algo importante.
Passei boa parte da noite pensando na menina. Aurélia, lembrei do nome.
No dia seguinte, retornei ao cemitério. Talvez nem tanto para prantear sobre o túmulo de tia Lucia, mas para procurar Aurélia. Não foi difícil encontra-la. Passeava entre os túmulos, como se o local fosse um parque, não um cemitério.
- Boa tarde.
- Boa tarde, Aurélia.
- Lembra meu nome...
- Claro. Como poderia esquecer? – sorri. Ela perguntou o meu – Carlos – o que não fizera no dia anterior.
- Gosto daqui – comentou com ar triste – Acho que já me acostumei
- Qual a sua idade?
- Quantos anos você me dá
- Vamos ver...dezoito?
- Errou...- disse, após certa hesitação. Eu estava certo que ela tinha dezoito.
- Vou tentar novamente...dezenove?
- Errou de novo. Mas desista, não vou dizer minha idade...
- Está bem, você manda.
- Vamos passear pelo cemitério? – indagou. Eu já o fizera tantas vezes sozinho naqueles dias tristes...Que bom seria faze-lo com uma mulher linda pela qual eu estava fascinado.
Pelas ruas do local, contemplamos os imponentes mausoléus familiares, vimos os túmulos dos judeus, com inscrições em hebraico...Aurélia me levou também para os túmulos dos três soldados ingleses que morreram no oceano, em 1944, durante a 2º Guerra Mundial e que foram sepultados em solo natalense.
- Todos os anos as famílias e oficiais ingleses vem aqui no cemitério rezar pelas almas deles e limpar os túmulos. Pode observar que são dos mais conservados deste cemitério... – explicou. Fiquei impressionado com seu conhecimento do local. Algo mórbido, sem dúvida, mas todo mundo tinha algo de louco. Das mulheres que eu conhecera até então quantas não tinham hábitos mais estranhos que os de Aurélia?
Por fim, andando por uma rua solitária, entre túmulos mal conservados, paramos subitamente, como se tivéssemos combinado. Olhei-a com atenção, enquanto sentia meu coração disparar.
- O que foi? - perguntou
- Você é muito linda... – respondi. Não precisamos de mais nada para nos enlaçarmos em um beijo. Assim ficamos por um bom tempo, sem palavras. Apenas os lábios e os braços em movimento.
- Está na hora de eu ir... – comentou, vendo que já estava anoitecendo
- Eu te deixo em casa
- Negativo. Você vai, e eu fico. Depois vou para casa.
- Por que isso?
- Eu quero assim.
- Mas eu quero te ver.
- Você vai me ver. Mas, aqui.
- Por que? Não consigo entender.
- Não precisa entender, basta concordar. Amanhã á tarde aqui mesmo, está bem, meu amor?
Como resistir? Concordei com aquela maluquice. Fui para casa meio apaixonado meio aborrecido. Por um lado, estava enfeitiçado por aquela mulher, por aqueles beijos...Por outro pensava se ela não queria me fazer de palhaço. Teria ela se comportado da mesma forma com outros homens? Seria uma tara dela querer se encontrar apenas no cemitério?
De qualquer maneira, no dia seguinte lá estava eu no cemitério. Estava acontecendo um sepultamento, portanto, de início não consegui encontra-la com o fluxo de pessoas. Por fim, na rua colada ao muro da rua Rafael Fernandes, bem próxima ao mausoléu da Liga Operária Norte-riograndense, encontrei a minha Aurélia.
Durante duas horas praticamente só nos beijamos e trocamos palavras de carinho. Mas, eu estava decidido a dar um rumo novo à nossa história.
- Vamos ao cinema,
- Não quero.
- Para onde você quer ir? Basta dizer que iremos.
- Quero ficar aqui mesmo
- Mas Aurélia...
Ela começou a lacrimar... – Quero que goste de mim do jeito que sou... – murmurou.
Como não ceder? Ficamos lá, entre os túmulos e fugindo do olhar desconfiado e vigilante do zelador. Ao ir embora –sozinho – pensei em ficar de tocaia na porta do cemitério e segui-la quando saísse, mas fiquem temerosos de ser flagrado e envergonhado de minha baixeza, fui para casa. Passamos a nos encontrar no cemitério. Em duas semanas, foram pelo menos seis encontros. Era estranho, admito, e parece absurdo, mas eu estava feliz, e quando se está feliz, tudo parece normal. Imaginei que ela tivesse vergonha de sua família, com um pai alcoólatra ou coisa parecida. Poderia ser também que fosse muito humilde e não quisesse que eu visse onde morava. Seja como for, decidi que enquanto eu estivesse me sentindo bem com a situação, não forçaria a barra. Um dia ela vai querer ir a um cinema, à praia, e então poderemos viver como um casal normal, pensei.
Contudo, em uma tarde algo nublada, fui ao cemitério e Aurélia não apareceu no local combinado, em frente ao túmulo de João Câmara. Esperei por uma, duas, três horas, até o cemitério fechar, e nada. Andei a esmo pelas ruas em volta do cemitério, entrei em bares, procurei em paradas de ônibus e nada. Voltei para casa com uma tristeza sólida sobre a minha cabeça.
No dia seguinte, lá estava eu de volta ao cemitério. Andei pelas ruas e nada. Até que, próximo à capela, encostei-me em um tumulo deteriorado e coloquei as mãos nos olhos. Fui despertado deste breve transe por um funcionário do cemitério, um rapaz alto que eu sempre via mas jamais havia trocado duas palavras. – Tudo bem com o senhor? – perguntou.
- Mais ou menos – respondi.
- Eu posso ajudar em alguma coisa?
- Na verdade, não. Estou esperando uma menina...
- Se é para visitar algum túmulo, eu até posso ajudar a encontra-la. Se for para namorar, como tantos aqui tentam fazer, o zelador não vai gostar nada disso.
- Bem, eu fico até sem jeito, mas é quase isso... – confessei. Ansioso para contar minha história insólita para alguém, resolvi fazer daquele trabalhador meu cúmplice. Relatei minha história com detalhes, e no fim, olhei-o como se pedindo uma solução.
- Eu moro aqui na Ary Parreiras desde moleque e conheço quase todo mundo por aqui. Qual é o nome da menina? Se ela morar por essas bandas eu devo conhecer.
- O nome dela é Aurélia. Aurélia Galvão Barreto, se não me engano.
- Aurélia Galvão Barreto? – assustou-se - Você está maluco, homem?
- Por quê?
- Olhe para o seu lado, homem e deixe fazer brincadeiras para me apavorar - Você está encostado justamente no túmulo de Aurélia Galvão Barreto. Ela morreu em 1932, aos dezoito anos, em um incêndio aqui mesmo no Alecrim...