21 novembro 2008

À flor da pele



Cefas Carvalho

Quando menina, mirrada, magrinha, um toco assim de gente, caiu feio na terra empedrada, quando brincava de pique-esconde com os moleques na rua. Foi para casa choramingando, cheia de arranhões e ferimentos pincelados com sangue. A mãe, enternecida, passou mertiolate nos braços e pernas da menina e advertiu-a que ela sentiria dor por alguns dias. Mas, a dor que sentiu era quase uma cócega agradável. Depois, divertiu-se arrancando as cascas das feridas mal cicatrizadas, testemunhando um fio de sangue brotar novamente e também um líquido amarelado.
Caiu outras vezes, brincando, correndo, jogando handebol, arranhou-se, e cada vez que via o sangue jorrar da carne lacerada sentia, além da dor imediata, uma estranha satisfação. Começou a brincar com as feridas como outras meninas brincavam com bonecas. Tornou-se íntima de seu próprio sangue e de sua carne sempre aberta, sempre mutilada. Percebeu que tinha de esconder este estranho comportamento da família.
Mais crescida, encontrou um novo prazer em se depilar com a pinça. A sensação dos fios saindo de sua epiderme lhe proporcionava tal prazer que ela se descobriu enquanto mulher – sensações de gozo e um formigamento no sexo – quando arrancava pêlos das sobrancelhas, braços, pernas e virilha. Não queria o puxão rápido, indolor. Desejava a agulhada dolorida, o arrepio da dor mais lenta.
Na adolescência, tornou-se uma moça estudiosa, quieta e enigmática. Enquanto as amigas investiam em decotes e biquínis, ela escondia o corpo o máximo possível. Ao despir-se, contemplava no corpo as marcas do prazer que arrancava de todas as maneiras: arranhando-se com chaves, lanhando as pernas com canivete, roendo as unhas eternamente em sangue... No dia em que fez dezoito anos, tendo recusado todos os presentes e mimos dos pais, precisou ir ao dentista. Precisando ter um dente obturado, decidiu que queria fazê-lo sem anestesia. O dentista recusou-se e, em casa, ela descobriu novo prazer trincando os dentes com um garfo até ver o sangue escorrer pelas gengivas.
Incentivada pelos pais e pelas amigas, começou a sair mais, para, supostamente, divertir-se. Em uma boate, enquanto as colegas dançavam, ela percebeu um rapaz brincando com a ponta de um cigarro em sua própria mão. Sentiu uma vontade desenfreada de beijar e cheirar aquela mão de carne queimada e não tardou a travar contato com o rapaz. Ele mostrou como fazia aquilo, na verdade uma maneira banal de sentir dor e controlá-la, e ela pediu que ele fizesse tal brincadeira com ela. Não na boate, ele respondeu. Onde você quiser, ela sorriu. Horas depois perdia a virgindade e aliou o prazer sexual com a descoberta da carne queimada pela brasa do cigarro. Começou a fumar. Comprou charutos e percebeu que a brasa do charuto beijando sua coxa lhe proporcionava sensações mais agudas que os beijos do namorado. Terminou o namoro e procurou novas sensações; arranhar-se com facas de pão, arrancar fios de cabelo com os dedos, morder os cantos da boca de forma a destilar sangue... iniciou uma frase extremamente criativa quando a maneiras de se mutilar e descobriu que seu prazer era inconciliável com a vida familiar. Em meio a constantes atritos com os pais, passou a gerenciar uma loja de tatuagens e decidiu morar sozinha.
Trabalhando em meio à carne sendo queimada e colorida, descobriu novos prazeres com agulhas, tintas, ferramentas e brocas, e á noite, conciliava namoros ocasionais que pouco ou nada lhe acrescentavam, e bastante solidão, assistindo a filmes e comendo pipoca, em meio a brincadeiras com lâminas e facas de cozinha.
Em uma manhã cinzenta, não desejava conversar com os colegas de trabalho e deixou-os no restaurante habitual preferindo refugiar-se em um bar estranho, sujo, quase em frente ao trabalho. Lá, almoçando um bife mal passado com arroz e fritas, observou à mesa em frente um homem que tomava uma cerveja e com uma pequena chave de fenda, arrancava a frio as unhas da mão esquerda, em um ritual estranho e, para ela, fascinante. Inventou um pretexto para entrar em contato com ele, e como esperava, foi convidada para sentar-se à mesa.
Olhou-o de perto com a devida atenção. Era bem mais velho que ela, talvez beirando os cinqüenta anos, tinha uma barba mal feita e olhos amarelos, adoentados, mas que guardavam malicia e algo de mal. Tinha ares de pirata e latrocida. Seu mau hálito, ela o sentiu assim que ele perguntou seu nome e disse que ela era linda, como se querendo queimar etapas para seu evidente desejo. Ela teria nojo dele não fosse a visão inebriante das suas unhas em sangue, dos dedos calosos em uma mão marcada e forte, de estivador, de assassino.
Na gangorra entre o asco e a excitação, deixou-se levar para um quarto de hotel decadente onde, encantada, descobriu nele marcas e cicatrizes em todo o corpo. Amou o latrocida de olhos cerrados, sentindo em suas costas os nacos de unhas arrancadas. Pediu que ele puxasse seus cabelos, que a esbofeteasse, que apertasse seu pescoço... sentiu prazer como nunca; descobriu que podia – e devia – aplicar a dor e a mutilação ao amor físico. Perguntou a ele, enquanto se vestiam, não seu nome, informação que não lhe interessava, mas, porque arrancava as unhas até o sangue. Porque gosto, respondeu, com um sorriso maníaco. Sentir dor é bom, concluiu.
À noite, em casa, não conseguiu assistir a filmes, comer pipoca ou conversar com as amigas pelo telefone. Munida de compressas de gelo e mercúrio cromo, lembrou da tarde que tivera, das unhas arrancadas daquele homem pavoroso que a encantara. Olhou no espelho imenso que mantinha na parede junto à cama as muitas cicatrizes em seu corpo nu. Cicatrizes que como palavras, como frases, contavam a história de seu corpo, de sua vida.
Decidiu, no dia seguinte, procurar no mesmo restaurante barato onde almoçara, o homem estranho que se mutilava. Se não o encontrasse, perguntaria, iria atrás de seu paradeiro. Continuava com nojo dele, mas não podia mentir para si mesma; ele lhe dera o que ela desejava.
Afinal de contas, pensou, sorrindo, sentir dor é bom!...

05 novembro 2008

A Ilha do Fim do Mundo


Cefas Carvalho

Começou como uma brincadeira.
Abrindo o mapa mundi para planejarmos nossa viagem a Lisboa, imaginamos uma outra viagem, esta, para algum lugar distante, perdido, algo como o fim do mundo.
Entre vinhos e queijos, sonhos e risos, elegemos a Escócia como o nosso fim do mundo particular e ideal. Razões para isso não faltavam: a Escócia ficava próxima a Londres, metrópole que conhecíamos e que serviria como ponto de apoio para a aventura. Também porque queríamos um fim do mundo estruturado, confortável, preferencialmente com clima frio. Também favorecia o fato da Escócia ter algo de mágico... talvez pelos castelos, pelo Lago Ness e seu lendário monstro...
Do sonho, passamos ao mapeamento, à prática: descobrimos ilhas isoladas ao oeste da Escócia, bem distantes de Glasgow e Edinburgh. Nomes como Ilha de Berneray, Ilha de Skye, Castlebay e Benbecula começaram a fazer parte do nosso imaginário. Eu e Clarissa pesquisamos itinerários, pousadas idílicas, preços de passagens aéreas e férreas, cotação da libra. Pela Internet sondamos instalações, preços... logo a viagem algo irreal para a Ilha do Fim do Mundo ganhou mais espaço em nossos corações e mentes do que a viagem real, a ser empreendida para Lisboa. O que poderia frear nosso sonho? Éramos jovens, ambos com a idade de Cristo quando morreu, não tínhamos filhos e estávamos profissional e financeiramente estruturados. Queríamos conquistar o mundo, e certamente riríamos de quem nos dissesse que o mundo não existia apenas para ser conquistado por nós.
Viajamos a Lisboa, como tinha de ser. O que relatar da viagem às terras portuguesas? É certo que conhecemos a linda capital lusitana, que andamos de mãos dadas pela Avenida da Liberdade até desembocar no Tejo, que experimentamos todas as delícias de bacalhau disponíveis nos restaurantes e bares e que fizemos amor na mais linda das pousadas de Coimbra, olhando o sol nascer. Mas, também trocamos ofensas muitas e diversos espinhos verbais.Maculamos o Castelo de São Jorge com uma briga estúpida e que beirou a violência física e encharcamos a bela cidade do Porto com os ciúmes dela e com minha intolerância.
Retornamos ao Brasil decididos não apenas a nunca mais viajar juntos, como a terminarmos nosso relacionamento. Não havíamos sequer desarrumado as malas da viagem com os presentes para amigos e parentes quando me vi obrigado a, com o coração comprimido, a arrumar minhas malas com roupas e coisas básicas. Foram dois dias em um hotel, imaginando o que fazer da vida e procurando um apartamento para alugar. Até que Clarissa me telefonou, propondo um encontro. Marcamos em um restaurante oriental perto da praia, onde costumávamos ir com freqüência.
Quando eu a vi, no restaurante, mais linda do que nunca e com os olhos ainda soltando faíscas, apesar da vermelhidão e do cansaço, pensei em me ajoelhar aos seus pés e implorar para que voltássemos. Não foi necessário. Serenamente, ela propôs que puséssemos uma pedra no passado recente e que retomássemos nosso casamento, mais que isso, nossa história de amor.
Na mesma noite peguei minhas coisas no hotel e rumamos para uma pousada em uma praia num município litorâneo próximo. Jurei para ela, mas, principalmente para mim mesmo, que jamais a deixaria novamente.
Retomamos o casamento, o cotidiano e também os sonhos. Voltamos ao mapa da Escócia. Encontramos mais cidadezinhas com nomes estranhos, próximas da Islândia e do Pólo Norte. Começamos a comprar libras e a economizar dinheiro. Passamos a trabalhar e a fazer planos unicamente em prol da viagem para a Ilha do Fim do Mundo. Clarissa sugeriu que, se nos apaixonássemos pelo lugar, fizéssemos planos de morar lá definitivamente. Talvez comprar uma pousada. E vivermos de amor, cerveja preta, rosbife, livros e músicas. O que mais da vida eu poderia pedir?
Tudo isso que relato aconteceu há alguns anos. Hoje, moro em Ullapool, uma cidadezinha bem ao norte da Escócia, como se saída de um conto de fadas. Trabalho em um pub local, servindo cervejas. Todos são educados e gentis comigo e me chamam de The solitary man, por razões que o apelido, em inglês, explica por si só e que sintetiza minha vida e o que ela será para sempre.
Quanto a Clarissa? Morreu em um acidente de trânsito na avenida principal da cidade. Voltava para casa com uma pizza e duas garrafas de vinho no banco de trás do carro e nossas passagens para Londres e conexão para Glasgow no porta luvas do carro. Era o nosso sonho materializado, porém, destruído pela precipitação de um motorista de caminhão que tentou uma ultrapassagem arriscada e desnecessária. Ele fugiu sem prestar socorro, após o acidente. Espero sinceramente que tenha ido para o inferno e que lá permaneça por várias eternidades. Meu consolo é que Clarissa não sofreu, tendo morrido na hora e, segundo a médica que atendeu, com um estranho sorriso nos lábios. Após a tragédia, queimei uma das passagens aéreas juntamente com os mapas, guias de viagens e informações sobre a Escócia. Em seguida, vendi tudo que tinha e rumei para as terras frias – onde estou até hoje – para conhecer a Ilha do Fim do Mundo, ver seus lagos, seus castelos, suas montanhas, por mim e por Clarissa. Coisa que faço todo dia. Até a hora sagrada em que terei de morrer, aqui nesta Ilha do Fim do Mundo onde encontro Clarissa todos os dias e de onde não sairei jamais...