10 agosto 2009

O verbo se fez carne


Cefas Carvalho

Tenho medo de objetos cortantes
Principalmente palavras
(Carito)


Com esses olhos negros de desespero você me olha como se eu fosse um objeto, não um pedaço de carne – o que seria vulgar, mas, instigante, afinal, sou mulher e mulheres gostam de olhos cobiçosos, meu bem – mas, pior, bem pior, como se eu fizesse parte da mobília – que você escolheu e comprou sozinho – desta maldita mobília escura e pesada, que não parece em nada comigo, com minha alegria, minha vontade de viver. Talvez os móveis pareçam com você, aliás, com sua alma, negra e cheia de poeira. Pensando bem, você me olha como se eu fosse uma louca, sim, eu sou louca, enlouquecida que fui pelas suas promessas, suas juras, pelos laços que você inventou para me amarrar, como um belo caçador que joga frutas no chão para atrair e aprisionar um pássaro raro. Sim, meu bem, eu era um pássaro, livre, liberta, com capacidade para voar, até que, de repente me vi presa em seus rancores, seus ciúmes, seus ódios... Por deus, não me olhe assim, odeio este olhar vazio... Mas, não quero recordar nossa triste história. Basta lembrar que, por você, abandonei meu trabalho, minha família, negligenciei meus amigos, amofinei meus gostos. Tive de guardar meus prazeres em uma gaveta e trancá-la, definitivamente. Minha vida passou a ser a sua vida. Meus prazeres, os seus. Eu ouvi a sua música, assisti os filmes que você amava, passei a comer - e a preparar – as comidas que você gostava. Não fale nada, não fale, sei que você vai dizer que não me pediu nada disso. Talvez não verbalmente, mas eu sentia em seus olhos – pesados, intensos - a pressão sobre mim, me induzindo a mudar, a deixar de ser eu mesma e me tornar algo como um fantoche. Não abra a boca, por todos os demônios, sei que você vai insistir que nunca me olhou desta forma, e que em seu olhar havia apenas admiração, contemplação e desejo. Você seria até capaz de dizer que fui eu quem insistiu na mudança, talvez para me aproximar do seu mundo, para mostrar que merecia sua companhia. Por que está se aproximando de mim, não chegue perto, não me toque. Eu sei que você não me toca há anos, provavelmente você não me ama mais. Como poderia? E quanto a mim? Você tem vontade de saber se ainda te amo? A resposta deveria ser um sonoro e poderoso não. Como eu poderia amá-lo? Talvez eu o amasse quando o via escrevendo seus livros, concentrado na escrivaninha, com a xícara de café ao lado e o cigarro repousado no cinzeiro exalando fumaça como um incenso... Sim, eu te amava então. E você, me amava naquela época? Por que não dizia que me amava? Por que ficava mudo, às vezes tão mudo quando hoje? Por que não me enlaçava – eu que achava seus braços tão fortes – e dizia que eu era a coisa mais importante de sua vida, mais que seus livros, suas músicas, seus projetos? Era só insegurança, meu bem, era só aquela bobagem de não se sentir amada, de pensar, tolamente, sei, que você não pensava mais em mim quando seus amigos e editores vinham para cá debater seus projetos e livros. Enquanto vocês fumavam e discutiam o futuro da arte, eu me trancava no banheiro para chorar, Primeiro passava um batom bem vermelho, que você odiava, depois maquiava os olhos e me punha a chorar, assistindo pelo espelho as lágrimas pintarem meu rosto de um preto meio aguado que lembra tristeza e decadência. Por deus, como eu te admirava, meu bem... Tenho que te dizer, mais uma vez, que eu menti, menti, sim, quando disse que não te amava, que tinha nojo de você e queria terminar tudo. E menti quando disse que sairia para me entregar ao primeiro homem que encontrasse na rua. Na verdade, fui para um bar, chorar e beber uma dose de uísque com vontade de morrer... depois fui para a casa da minha irmã e choramos juntas lembrando dos sonhos que tínhamos quando éramos crianças. Quando voltei para casa no dia seguinte, era para te abraçar, te pedir perdão e dizer que te amava. Não imaginei nunca que você estaria jogado no chão, imóvel, como morto. Primeiro achei que era uma brincadeira. Depois, que você tentou se matar por minha causa – é mesquinho dizer isso, mas uma parte de mim exultou, ficou lisonjeada – até que o médico explicou que você, ao subir a escada, escorregou no café que deve ter derramado – sempre desastrado... – e rolou degraus abaixo, quebrando a espinha dorsal em três pedaços. E como explicar a névoa que me passou pela mente quando ouvi que meu marido ficaria tetraplégico e mudo para sempre? Como saber se você ouve o que eu digo? Vamos, meu bem, fale alguma coisa... Vou limpar a baba que escorre de sua boca, não me olhe desse jeito. Um dia eu te amei. Talvez ainda te ame. Vamos, vou passar a toalha em você, pois a fisioterapeuta vai chegar em meia hora...