26 janeiro 2009

A flor e a pedra



Cefas Carvalho

Uma mulher como esta deve ter nome de flor, pensei, quando a vi pela primeira vez. Era o lançamento do livro de poesias de um amigo, e, entre o vinho e conversas tediosas, apercebi-me da mulher à minha frente.
Era linda, de pele leitosa e olhos indecisos entre o negro e o castanho. Cabelos negros presos em coque e um sorriso luminoso. Decidi que precisava conhecê-la e o destino conspirou a meu favor. Uma amiga em comum nos apresentou. Chamava-se Violeta. Contei a ela minha impressão sobre seu nome; ela riu e disse que queria ouvir mais sobre minhas primeiras impressões.
Jantamos no dia seguinte, e o vinho branco serviu como senha para que descobríssemos gostos em comum; livros, filmes, músicas, hábitos... Eu, artista plástico de relativo destaque – ou assim imaginava – ela, uma atriz e encenadora em ascensão, como vim a descobrir. Os muitos gostos em comum se tornaram cumplicidade e esta cumplicidade não tardou a se tornar amor.
Um amor que desaguou em casamento - no cartório e na igreja – e na benção de amigos e conhecidos. Nem mesmo os invejosos de plantão, eternamente alertas como Iago, conseguiram tirar um pedregulho do castelo onde erguemos nossa história de amor. O êxito emocional fez-se seguir pelo sucesso profissional; tive telas vendidas para a Holanda e a Itália; Violeta ganhou ovações e prêmios por uma ousada encenação de Medeia... Consideramos-nos preparados para conquistar o mundo. Quem ou o que poderia nos impedir? Éramos jovens, belos, inteligentes, ousados... e quando tínhamos alguma dúvida destas pretensas qualidades, os amigos e admiradores não demoravam a nos lembrar delas. Violeta era a flor, de nome e trato; eu, era a pedra, pela personalidade e firmeza em ações e opiniões. O casal perfeito, disseram. E cometemos o erro de acreditar cegamente nisso.
Não tardaram os conflitos que, como ondas noturnas, começaram a erosão no castelo do nosso amor. Ciúmes, quase sempre sem razões e intempestivos; intolerância, muitas vezes próxima da grosseria; ambos guardando rancores como quem guarda bijuterias em uma caixa. Minhas telas sofreram o efeito da crise; os temas se tornaram mais lúgubres, as cores, mais escuras. Violeta, por sua vez, desaguava nas personagens a raiva que carcomia seu coração. Atrasei a entrega de telas e diminui o ritmo de trabalho. Ela, chegava atrasada a ensaios e se tornava mais ríspida com os colegas de palco. Afinal, a maior parte do tempo era dedicada ao jogo das ofensas, da espera pela ironia para responder a uma ironia antes colocada à mesa. Os corações acelerados, a mão trêmula de medo ou ódio. E o castelo ruiu, como seria de se esperar. Os amigos, sem surpresa, testemunharam a flor se recolher ao seu jardim e a pedra rumar para a aridez do deserto.
Encontramos-nos três vezes Violeta e eu, após a separação. Ensaiamos retomar o casamento, trocamos mais frases ferinas, choramos um pouco, mas, por fim, decidimos manter-nos longe um do outro. O tempo curaria as dores, como costumam dizer e era, possivelmente, verdade.
Porém, a separação parece ter atraído a sorte contra nós. Meses depois, dirigindo com sono, voltando de uma apresentação de Macbeth, Violeta bateu o carro contra um caminhão na BR-101. Ficou meia hora sangrando presa às ferragens. Perdeu a perna direita. Estava fazendo fisioterapia e tentando se adaptar a uma prótese.
Quanto a mim? Cá estou em um restaurante, lembrando de tudo que relatei agora e esperando Violeta chegar. Ouvi sua voz atrás de mim, dizendo meu nome com suavidade. Senti sua mão em meu ombro esquerdo. Com um barulho estranho – a prótese, claro – ela sentou-se à minha frente. Talvez estivesse sorrindo. Talvez tivesse pintado novamente o cabelo. Esqueci de relatar somente este detalhe, sobre mim; uma semana depois do acidente de Violeta, senti uma imensa dor nos olhos, que tentei aplacar com colírios e soro biológico. Como a dor não passava e a vista começou a ficar enevoada, recorri a um oftalmologista para trocar os óculos. Descobri que havia contraído uma bactéria rara, similar ao glaucoma, e que estava ficando cego. Fui cirurgiado, na esperança de manter a visão, mas foi inútil. Como Édipo, como Borges, fiquei cego.
Eu e Violeta estamos aqui, rindo de nosso quinhão de sofrimento nesta vida. Um cego e uma aleijada, ela riu. Agora, não era o mundo que tínhamos para conquistar, mas sim, a vida cotidiana, como fazer um café ou fritar um ovo. Rimos disso e pedi que ela colocasse mais vinho em minha taça...

14 janeiro 2009

O envelope amarelo



Cefas Carvalho

Estava em casa assistindo televisão e bebendo café com leite quando ouviu o som da campainha. Pensou que era um dos filhos, sempre esquecem a chave!, ou o vizinho querendo emprestado alguma ferramenta, sempre o fazia! Pelo olho mágico não viu ninguém, e intrigado, abriu a porta. Percebeu em cima do tapete da entrada um envelope grande, amarelo. Pegou-o e entrou em casa. Que diabos será isso?, pensou, imaginando uma cobrança ou um engano. Nada estava escrito no envelope. E estava aberto. Com a mão, retirou de dentro uma série de folhas de papel grampeadas. Sentou-se para ler. Logo na primeira página, ficou intrigado. Viu o nome de Marcos Alexandre, seu amigo de infância, e em seguida, uma série de informações sobre ele: nome completo, identidade, CPF, data de nascimento, signo, ascendente, onde morava, nome dos filhos etc.
Na página seguinte, outra surpresa, esta maior: uma série de informações sobre a vida de seu amigo. Leu um pequeno trecho: “Apesar de casado com Iracema, Marcos mantém um relacionamento extraconjugal com Celeste, professora da rede pública de ensino e que mora no bairro das Quintas, há pelo menos cinco anos. Seus amigos sabem disso. Seus filhos também”. Ficou preocupado com o que leu. Seria uma brincadeira de mau gosto? Passou a página. Lá estava o nome de Carlos Buarque, companheiro de trabalho e de peladas no fim se semana. Na primeira página, a mesma coisa: informações básicas, número do RG, endereço, e-mail, número de contas de banco. Na página seguinte, informações mais bizarras: “Carlos, embora um pai de família considerado exemplar, assediou sexualmente a sobrinha de 15 anos, e há alguns anos, manteve um caso com uma garota de 14”. Respirou fundo. Aquilo estava muito estranho...
Continuou a passar as páginas. Leu então o nome de Raimundo Santarém. Tratava-se de um antigo desafeto com quem chegara a trocar desaforos havia alguns anos. Era um homem ranzinza e meticuloso, que gostava de esfregar sua verdade na cara dos outros. Com atenção, leu as informações básicas do inimigo, na verdade já as conhecia. Passando a página, deparou-se com mais uma surpresa: descobriu que o homem esnobe e orgulhoso de sua retidão, não apenas estava do SPC e Serasa, como ainda devia uma fortuna para bancos. Seu carro do ano, da qual se gabava, não passava de uma compra por leasing e estava prestes a ser tomado por um outro banco. Passava cheques sem fundo. Por três vezes, recorrera a agiotas. Era um fracassado, em termos financeiros.
Mais páginas. Descobriu o nome da secretária do escritório onde trabalhava, Clarissa Maciel, evangélica ferrenha, que tentava convencê-lo a aceitar a palavra de Deus, mas na igreja que ela frequentava, claro. Lendo, descobriu que ela fizera – já convertida - dois abortos de um homem casado com quem mantinha um envolvimento secreto. Também batia na mãe setuagenária, a quem mantinha em uma espécie de cárcere privado. Chegou à página de seu chefe, Patrício Guimarães, homem espirituoso e alegre, orgulhoso da vida que levava. Contudo, segundo o relatório detalhado, tentara o suicídio havia um ano, quando a mulher – que costumeiramente o traía, revelação que o surpreendera – o abandonara e aos filhos para viver com outro homem. Após ela ser rejeitada pelo amante, voltara para Patrício.
Meu Deus, de onde veio isso? - Indagou-se, já com um estranho contentamento. Pensou no que poderia fazer com tantas informações. Tinha consciência que saber das coisas era um trunfo em quaisquer circunstâncias. Percebeu que tinha a vida de muita gente – que gostava ou que odiava – em suas mãos. Não dizem que informação é tudo? - Divertiu-se. Continuou a ler. Descobriu coisas ocultas e estranhas sobre a vida dos vizinhos, da atendente da farmácia, do dono da padaria do bairro. Sentiu-se um deus. Parou de ler, encheu um copo de uísque e acendeu um cigarro. Não cabia em si de tanta euforia. O que posso fazer com tantas informações? - Pensou. Como tirar vantagem deste presente que o destino colocou em minhas mãos?
Alegre, percebeu que faltavam poucas páginas para terminar o relatório. Continuou a ler, esperançoso em saber mais informações sobre desafetos, amigos e conhecidos. Teve uma surpresa ao ler o nome de Eduardo Pinheiro. Era seu filho. Pulou a primeira página, com todas as informações de praxe, todas detalhadas e absolutamente corretas. Na página seguinte, sofreu um baque: descobriu que o filho o odiava, que cheirava pó havia meses, que fora ele – o filho amado – quem furtara produtos em um supermercado na rua vizinha.
Abatido, continuou a leitura. Chegou então ao nome de Laura Pinheiro, sua filha adolescente. Entre mentiras e intrigas, descobrira que ela fazia assaltos regulares à sua carteira. E ele que sempre pensara que as cédulas eram subtraídas pela esposa, para seus badulaques e futilidades. Mas, o pior estava por vir: descobriu, na leitura amarga, que Laura não era sua filha. Era o produto maldito de uma rápida traição da sua esposa.
Sabia o que viria nas últimas páginas do relato, agora macabro. Leu com alguma dor o nome de sua esposa, Lucia Bertioga Pinheiro. Bebeu de um gole o uísque e armou-se para a leitura que viria. Soube então que ela já o traíra algumas vezes, como descobrira amargamente na leitura anterior, que mantivera um caso com um amigo da família e pensava seriamente em abandoná-lo. Que ainda desprezava seu comodismo profissional, comentava com as amigas o esfriamento – quase morte – de sua vida sexual com o marido.
Correu para o banheiro. Ligou o chuveiro e deixou-se ficar na água gelada por imprecisos minutos, talvez horas. Cansado e com frio, desistiu do suplício. Enxugou-se, e ainda trancado no banheiro ouviu o barulho da chave girando na maçaneta da porta e o barulho do sapato da esposa. Pensou em matá-la e depois se matar. Cogitou gritar, quebrar a sala inteira. Primeiro iria olhá-la nos olhos, fingir não saber de nada, pressioná-la contra a parede. Saiu com a decisão de confrontar a mulher falsa com quem vivera ao longo dos anos.
Na sala, encarou-a. Surpreendeu-se com o olhar de fúria impresso em seu rosto.
- Quem é Vanda? – perguntou a esposa.
- Como assim?
- Já sei de tudo.
- Tudo o quê?...
- De você e Vanda. Sei que tem uma filha com ela. Cecília, não é mesmo?
Engoliu a seco. Tentou falar, a mulher não deixou.
- E o caso que teve com minha prima Janaína, foi bom? E ter transado com ela na nossa cama no reveillon do ano retrasado, foi bom, seu canalha?
Tentou se defender, mas não encontrava palavras no vazio imenso que se apossara dele. Sabia que era tudo verdade, não teria como contra-argumentar. Percebeu então na mão da mulher uma série de folhas de papel. E debaixo do seu braço esquerdo, um envelope amarelo...

06 janeiro 2009

A menina do cemitério


Cefas Carvalho


Essa história aconteceu há pouco tempo, mas, somente agora, ganhei forças para contá-la.
Nascido em Pendências, mas órfão de pai e mãe desde a infância, fui criado em Natal, mais exatamente em uma tranqüila rua do Alecrim por minha tia Lucia e por seu marido, que eu chamava de Tio Baltasar. Ele, coitado, morreu de cirrose no dia do meu aniversário de quinze anos. Minha tia passou a ser minha única referência afetiva e vice-versa. Jamais tive o que me queixar dela ou da vida. Fui bem criado, estudei em ótimas escolas, entrei na universidade e por fim formei-me em Educação Física.
Incentivado por tia Lucia, fui fazer um curso de um mês em Recife sobre técnicas desportivas. Foi na capital pernambucana, porém, que recebi a noticia que tia Lucia havia morrido, vítima de infarto. Confesso que viajei chorando durante as quatro horas de ônibus que separam Recife de Natal.
No enterro, no Cemitério do Alecrim, poucos parentes, uma e outra amiga e eu, me sentindo pela primeira vez sozinho no mundo. Após todos irem embora, ainda fiquei um bom tempo a olhar para os túmulos e mausoléus, até que o zelador gentilmente me mandou embora, advertindo que era hora de fechar.
No dia seguinte voltei ao cemitério. Depositei mais flores no túmulo de minha tia. Sem que ninguém me visse – era proibido fumar ali, me dissera o zelador – acendi um cigarro a vagar pelas ruas no cemitério. Tantos anos morando no Alecrim e eu jamais entrara ali até então, afinal, meu tio fora enterrado no interior e nenhum conhecido ou amigo jamais fora sepultado naquele solo.
Na segunda semana sem tia Lucia, trabalhando em uma escola apenas de manhã e com a tarde e noite livres, passei a dedicar mais tempo a pensar na morte em si do que na perda específica da minha tia. Não sentia vontade de sair ou beber com os amigos, e tampouco estava atrás de companhia feminina, posto que havia terminado um longo namoro havia alguns meses. Também comecei a ir três vezes por semana ao cemitério, ambiente que me parecia cada vez mais familiar. Fiz amizade com o zelador, os funcionários. Conheci a administradora do local, dona Lenilde. O cemitério tem o poder de convidar à reflexão e mais que morbidez a visão de tantas pessoas que se foram me trazia uma estranha espécie de paz, em lugar de repulsa ou morbidez.
Em uma dessas tardes, passeava pelos túmulos, contemplando alguns imponentes, como o de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, quando de repente avistei uma jovem na minha frente, a me olhar como se eu estivesse fazendo algo errado.
- Estou observando você há alguns dias...-sorriu
- É, eu estou vindo aqui com freqüência respondi, atordoado com a abordagem.
- Eu também gosto muito daqui. É calmo, tranqüilo, tão diferente do mundo...
- Você mora aqui no Alecrim?
- Exatamente.
- Qual seu nome?
- Aurélia – sorriu. Um sorriso doce, sereno. Reparei então na menina, de longos cabelos castanhos se derramando pelo vestido azul claro. Os olhos, imensos, vivos, fixos em mim. Deveria ter entre dezoito e vinte anos. Bela como poucas eu tinha visto.
- Bem, vou te deixar na sua caminhada. Até logo – sorriu, se afastando. Tentei falar algo para impedi-la de ir, mas as palavras não saíram. Pensei em rodar pelas ruas do cemitério, que afinal não era tão grande assim, mas desisti. Voltei para casa com uma sensação estranha, de quem deixou para trás algo importante.
Passei boa parte da noite pensando na menina. Aurélia, lembrei do nome.
No dia seguinte, retornei ao cemitério. Talvez nem tanto para prantear sobre o túmulo de tia Lucia, mas para procurar Aurélia. Não foi difícil encontra-la. Passeava entre os túmulos, como se o local fosse um parque, não um cemitério.
- Boa tarde.
- Boa tarde, Aurélia.
- Lembra meu nome...
- Claro. Como poderia esquecer? – sorri. Ela perguntou o meu – Carlos – o que não fizera no dia anterior.
- Gosto daqui – comentou com ar triste – Acho que já me acostumei
- Qual a sua idade?
- Quantos anos você me dá
- Vamos ver...dezoito?
- Errou...- disse, após certa hesitação. Eu estava certo que ela tinha dezoito.
- Vou tentar novamente...dezenove?
- Errou de novo. Mas desista, não vou dizer minha idade...
- Está bem, você manda.
- Vamos passear pelo cemitério? – indagou. Eu já o fizera tantas vezes sozinho naqueles dias tristes...Que bom seria faze-lo com uma mulher linda pela qual eu estava fascinado.
Pelas ruas do local, contemplamos os imponentes mausoléus familiares, vimos os túmulos dos judeus, com inscrições em hebraico...Aurélia me levou também para os túmulos dos três soldados ingleses que morreram no oceano, em 1944, durante a 2º Guerra Mundial e que foram sepultados em solo natalense.
- Todos os anos as famílias e oficiais ingleses vem aqui no cemitério rezar pelas almas deles e limpar os túmulos. Pode observar que são dos mais conservados deste cemitério... – explicou. Fiquei impressionado com seu conhecimento do local. Algo mórbido, sem dúvida, mas todo mundo tinha algo de louco. Das mulheres que eu conhecera até então quantas não tinham hábitos mais estranhos que os de Aurélia?
Por fim, andando por uma rua solitária, entre túmulos mal conservados, paramos subitamente, como se tivéssemos combinado. Olhei-a com atenção, enquanto sentia meu coração disparar.
- O que foi? - perguntou
- Você é muito linda... – respondi. Não precisamos de mais nada para nos enlaçarmos em um beijo. Assim ficamos por um bom tempo, sem palavras. Apenas os lábios e os braços em movimento.
- Está na hora de eu ir... – comentou, vendo que já estava anoitecendo
- Eu te deixo em casa
- Negativo. Você vai, e eu fico. Depois vou para casa.
- Por que isso?
- Eu quero assim.
- Mas eu quero te ver.
- Você vai me ver. Mas, aqui.
- Por que? Não consigo entender.
- Não precisa entender, basta concordar. Amanhã á tarde aqui mesmo, está bem, meu amor?
Como resistir? Concordei com aquela maluquice. Fui para casa meio apaixonado meio aborrecido. Por um lado, estava enfeitiçado por aquela mulher, por aqueles beijos...Por outro pensava se ela não queria me fazer de palhaço. Teria ela se comportado da mesma forma com outros homens? Seria uma tara dela querer se encontrar apenas no cemitério?
De qualquer maneira, no dia seguinte lá estava eu no cemitério. Estava acontecendo um sepultamento, portanto, de início não consegui encontra-la com o fluxo de pessoas. Por fim, na rua colada ao muro da rua Rafael Fernandes, bem próxima ao mausoléu da Liga Operária Norte-riograndense, encontrei a minha Aurélia.
Durante duas horas praticamente só nos beijamos e trocamos palavras de carinho. Mas, eu estava decidido a dar um rumo novo à nossa história.
- Vamos ao cinema,
- Não quero.
- Para onde você quer ir? Basta dizer que iremos.
- Quero ficar aqui mesmo
- Mas Aurélia...
Ela começou a lacrimar... – Quero que goste de mim do jeito que sou... – murmurou.
Como não ceder? Ficamos lá, entre os túmulos e fugindo do olhar desconfiado e vigilante do zelador. Ao ir embora –sozinho – pensei em ficar de tocaia na porta do cemitério e segui-la quando saísse, mas fiquem temerosos de ser flagrado e envergonhado de minha baixeza, fui para casa. Passamos a nos encontrar no cemitério. Em duas semanas, foram pelo menos seis encontros. Era estranho, admito, e parece absurdo, mas eu estava feliz, e quando se está feliz, tudo parece normal. Imaginei que ela tivesse vergonha de sua família, com um pai alcoólatra ou coisa parecida. Poderia ser também que fosse muito humilde e não quisesse que eu visse onde morava. Seja como for, decidi que enquanto eu estivesse me sentindo bem com a situação, não forçaria a barra. Um dia ela vai querer ir a um cinema, à praia, e então poderemos viver como um casal normal, pensei.
Contudo, em uma tarde algo nublada, fui ao cemitério e Aurélia não apareceu no local combinado, em frente ao túmulo de João Câmara. Esperei por uma, duas, três horas, até o cemitério fechar, e nada. Andei a esmo pelas ruas em volta do cemitério, entrei em bares, procurei em paradas de ônibus e nada. Voltei para casa com uma tristeza sólida sobre a minha cabeça.
No dia seguinte, lá estava eu de volta ao cemitério. Andei pelas ruas e nada. Até que, próximo à capela, encostei-me em um tumulo deteriorado e coloquei as mãos nos olhos. Fui despertado deste breve transe por um funcionário do cemitério, um rapaz alto que eu sempre via mas jamais havia trocado duas palavras. – Tudo bem com o senhor? – perguntou.
- Mais ou menos – respondi.
- Eu posso ajudar em alguma coisa?
- Na verdade, não. Estou esperando uma menina...
- Se é para visitar algum túmulo, eu até posso ajudar a encontra-la. Se for para namorar, como tantos aqui tentam fazer, o zelador não vai gostar nada disso.
- Bem, eu fico até sem jeito, mas é quase isso... – confessei. Ansioso para contar minha história insólita para alguém, resolvi fazer daquele trabalhador meu cúmplice. Relatei minha história com detalhes, e no fim, olhei-o como se pedindo uma solução.
- Eu moro aqui na Ary Parreiras desde moleque e conheço quase todo mundo por aqui. Qual é o nome da menina? Se ela morar por essas bandas eu devo conhecer.
- O nome dela é Aurélia. Aurélia Galvão Barreto, se não me engano.
- Aurélia Galvão Barreto? – assustou-se - Você está maluco, homem?
- Por quê?
- Olhe para o seu lado, homem e deixe fazer brincadeiras para me apavorar - Você está encostado justamente no túmulo de Aurélia Galvão Barreto. Ela morreu em 1932, aos dezoito anos, em um incêndio aqui mesmo no Alecrim...

05 janeiro 2009

Dolores


Cefas Carvalho

Chamava-se Dolores. Como Dolores Duran, uma das heroínas de minha vida. Mas ela não conhecia Dolores Duran, não sabia nem quem era. Talvez sua mãe também não conhecesse a cantora e tivesse escolhido o nome por gosto, capricho ou influência, sabe-se lá. Mas, nada disso importa. Conheci Dolores em uma noite sem lua e sem estrelas, quase amaldiçoada, em um bar tipo inferninho nas Rocas. Surgiu na minha frente como quem vinha do nada – ou de algum dos quartos fétidos do bar onde as meninas operavam seus programas rápidos – e sorriu como se já me conhecesse havia muito. Também sorri e com um movimento sutil de cabeça convidei-a para sentar à mesa. Ela aceitou e bebeu da minha cerveja. Conversamos sobre a vida em geral e sobre nada em especial e pude perceber o quanto era estranhamente bela e triste. De uma beleza sofrida, claro, pele queimada, não de manhãs de praia, mas de quem veio do sol do interior. Cabelos maltratados, olheiras emoldurando um olhar castanho melancólico. Talvez meus amigos a achassem feia. Mas, aos meus olhos – também sofridos, admito – Dolores me pareceu bela como poucas.
Bastou meia hora para que eu me resolvesse a convidá-la para sair. Paguei sua saída do bar (exigência inegociável da dona do estabelecimento para quem quisesse sair com as meninas da casa) e fomos no meu carro para um motel em Mãe Luíza. Pedi cerveja, um jantar – ela estava morrendo de fome – e depois mergulhamos no mar sem fundo dos amores carnais envolvidos em dor e carência. No fim das contas e dos gozos, percebi que – como muitas vezes acontecia comigo – eu era um náufrago a me agarrar na bóia de amores circunstanciais e comprados. A diferença é que Dolores não parecia apenas estar trabalhando. Era como se ela também fosse uma náufraga.
No dia seguinte paguei o motel e deixei-a no inferninho onde morava. Trocamos números de celular e prometi telefonar e também voltar para outra noite juntos. Horas depois, já no trabalho, dei-me conta que Dolores em espanhol, significava “dores”. Os nomes femininos em língua espanhola muitas vezes evocam sentimentos: Dulce (Doce), Soledade (Saudade), Angustias, Martírio... e lembrei-me de um livro de Jack Kerouac – Tristessa – sobre uma jovem mexicana, igualmente bela e triste. Uma mulher chamada Tristeza..., pensei, com amargura, lembrando que a mulher sem destino e sem futuro que povoava meus pensamentos, ela mesma carregava no nome a antítese na alegria e da felicidade.
Voltei à minha vida normal, seja lá o que isso significasse, e confesso, esqueci-me de Dolores por alguns dias. Passada uma semana, porém, a lembrança dela me veio e me doeu na pele como uma agulha. Corri para as Rocas. Tudo continuava igual, o inferninho decadente, as mesas sujas, os sorrisos falsos das meninas... também Dolores estava lá e continuava igual. O mesmo olhar sofrido, a mesma atenção para comigo... era como se o tempo não se movesse naquele bar. Pedi uma cerveja, depois outra, depois uísque com coca para ambos e por fim acabamos em outro motel, novamente afogando nossas mágoas no corpo um do outro. Desta vez, contudo, consegui saber mais coisas sobre ela... já tinha sido casada duas vezes, tinha dois filhos, um de cada pai, era de Sousa, na Paraíba, mas com família em Pau dos Ferros... gostava de viajar e samba... Tinha estudado, fizera o segundo grau completo, gostava de escrever, chegara a sonhar, em certa altura imprecisa da vida, em ser professora numa cidadezinha do interior... Propus que viajássemos juntos. Para onde?, perguntou. Para lugar nenhum, respondi, na estrada decidimos... Pipa, João Pessoa, Recife, Tibau, Areia Branca... o vento seria nosso mapa. Com um sorriso triste ela concordou. Acordamos que faríamos a viagem no final de semana seguinte, quando eu prepararia tudo e ela inventaria uma desculpa para a dona do bar para não termos que pagar a saída. Vivi uma semana normal, mas algo excitante com a perspectiva da insólita viagem. Nada comuniquei aos amigos nem à família (como fazê-lo?). Na manhã de sábado, por fim, estacionei o carro em frente ao prédio abandonado nas Rocas onde havíamos combinado. Esperei durante quarenta minutos. Eu já me preparava para telefonar para ela quando aproximou-se do veículo uma mulher que eu conhecia do inferninho. Vinha me trazer um bilhete de Dolores, que fora embora com todos os seus pertences no dia anterior e nada dissera sobre seu destino: “Meu querido, descobri que sou dona das minhas dores e não quero dividi-las com você nem com ninguém. Não nasci para ser feliz. Melhor eu ir embora enquanto é tempo. Beijo. Dolores”. Guardei o bilhete no porta-luvas e peguei a estrada. Para onde? Quem sabia? Que importava?