26 agosto 2008

Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres


Cefas Carvalho


Olhou-se no espelho, radiante de felicidade, e disse para si mesmo: “Hoje vou conseguir morrer!” Sentiu-se então mais leve com este pensamento, sem aquele peso nas costas que lhe parecia todo o peso do mundo. Coçou a barba cerrada que sujava seu rosto e pensou em raspá-la. Tolice, raciocinou, não fará diferença posto que hoje vou morrer. Pegou o barbeador manual na pia e suavemente passou pelo braço, passeando a lâmina, na sua pele. Mas não moveu a lâmina no sentido horizontal, o que cortaria suas veias. Não queria morrer sangrando em um banheiro de hotel e tinha dúvidas se a pequena lâmina conseguiria provocar um ferimento que o levasse a uma morte rápida e indolor. Sim, queria morrer, mas não desejava sofrimento. Já tivera seu quinhão de sofrimento na vida e não queria mais uma cota na hora sagrada em que decidira deixá-la.

Saiu do banheiro e atirou-se na cama. Era como se estivesse em casa, como se estivesse em um lugar familiar. Foi quando atinou que não se lembrava do nome do hotel onde estava. Procurou descobrir nos lençóis, nas fronhas, em um possível cardápio em cima do frigobar. Nada. Não se importou mais com isso. Queria apenas pensar em morrer. Pensou em se atirar pela janela, mas o que menos desejava era alarde e espalhafato. Pensava também que tal tipo de morte atrapalharia muitas pessoas, talvez interrompesse o trânsito lá embaixo e não queria que isso acontecesse. Também imaginou com horror que a queda livre, ainda que brutal, talvez não o matasse, e sim apenas o deixasse tetraplégico. Seria pior que a morte. Começou a idealizar outro tipo de suicídio, quando percebeu que não sabia em que andar se encontrava. Na verdade, não recordava de ter entrado no hotel ou de ter preenchido a ficha na recepção. Pensou em abrir a janela para respirar ar puro e calcular onde estava, mas por alguma estranha razão desistiu da idéia. Também desprezou a idéia de telefonar para a recepção ou descer. Por alguma razão, tinha a certeza de que deveria permanecer naquele quarto e levar a cabo a decisão de simplesmente morrer. Foi quando observou, em cima da mesa ao lado da cama, um revólver calibre 38, velho e funcional. Jamais usara uma arma na vida, mas quando pegou o revólver experimentou uma sensação de familiaridade, como se já tivesse vivido aquela cena.

Acariciou a arma como quem faz carinho em um gato e conferiu se estava carregada. Tinha uma bala apenas, mais que suficiente para sua empreitada. Conferiu o cão da arma, engatilhou a bala e instalou o dedo indicador da mão direita no gatilho. Levou o revólver à têmpora, onde, sempre lera sobre isso, não havia a menor possibilidade escapar vivo uma vez atirando. Olhou em volta na tentativa derradeira de encontrar algo, um objeto, uma cor, um símbolo, que lhe parecesse familiar ou que fizesse lembrar algo. Inútil. Tudo lhe parecia inócuo e distante. Queria morrer e sabia que aquela era a hora. Pressionou o gatilho e ouviu dentro de sua cabeça, como um trovão, o barulho demente do tiro. Morri, pensou, tremendo de felicidade.

De repente, abriu os olhos. Sentiu o buraco em sua cabeça e a bala presa na parede. No mais, tudo continuava silencioso e deserto. Estava em pé, consciente e sem sentir dor. Aliás, não sentia qualquer sensação. Pegou um canivete do bolso e talhou um corte na mão esquerda. O sangue, ou um líquido parecido com ele, escorreu, mas não sentiu qualquer dor. Sabia que poderia retalhar dedo por dedo da mão que não sentiria rigorosamente nada. Descobriu então, entre o horror e o conformismo: já estava morto havia tempo. Só não havia percebido isso...

20 agosto 2008

Coração: jogo de dados


Cefas Carvalho



Sentia o coração apertado, como se uma mão forte e impiedosa o esmagasse. Além de oprimido, o coração, acelerava como se na expectativa que algo fosse acontecer. Mas, sabiam ele e seu coração, que nada aconteceria naquele momento. Estava triste e só, como deveria ser. Dúvidas, tinha muitas: se deveria ter feito o que fez, arriscar a felicidade como quem aposta fichas em um jogo de dados... Certezas eram poucas. Entre elas, a de que não deveria escrever poesia, muito menos mostrá-las aos amigos. Divulgá-las, seria um pecado mortal. Apesar do que todos pensavam, não se deve escrever poesia quando se está muito triste. O fundo do poço não é amigo dos bons versos. Também decidiu não desfilar sua dor como quem passeia com uma roupa nova em uma passarela. Sua dor seria confinada ao quadrado sujo de uma solitária mesa de bar ou ao retângulo de uma folha de papel ofício branca, pronta a receber rabiscos, planos, idéias, frases soltas e desconexas... Aos garçons dos bares, aos amigos – falsos, em profusão, e verdadeiros – aos filhos e patentes, apenas sorrisos polidos e levemente melancólicos. Para não enlouquecer, escreveria. Como um louco, como se fosse morrer se não o fizesse. Escreveria de tudo: contos, crônicas, roteiros de viagens imaginárias, tabelas de campeonatos de futebol igualmente imaginários, desejava apenas ver a tinta azul da caneta correndo sobre o papel... desenharia cubos, rabiscaria plantas de casas, traçaria anjos e demônios... havia quem procurasse - quando da tristeza – o auxílio dos entorpecentes e outros prazeres fáceis. Preferia se afundar no trabalho e nas palavras, as queria em profusão, em excesso. No fio da navalha onde caminhava, entre a serenidade e o desespero, sabia que a verborragia poderia lhe salvar, ou, na pior das hipóteses, servir como ungüento.
Poderia escrever uma carta de amor. Para ela. Poderia escrever seu nome mil e uma vezes...
Poderia começar a escrever um romance, sobre um amor destinado a correr o mundo e a conquistá-lo, mas que se perdeu na vala fácil dos ciúmes e do cotidiano.
E foi isso que fez.

14 agosto 2008

Lana


Cefas Carvalho


Chamava-se Lana, como na canção de Roy Orbison. Ela era bela e triste, como todas as canções do Roy. Conheci-a em um bar, lugar sagrado onde geralmente conhecemos as pessoas importantes que marcam a nossa vida. É tolice tentar descrevê-la. Bem sei que não tinha uma beleza convencional, tampouco era dona de imensos olhos azuis, como nos clichês românticos. Era bela e normal. Estava sozinha na mesa, iluminando o local com seus olhos melancólicos e oblíquos, como diria Machado de Assis de sua Capitu. Ganhei coragem para abordá-la e me convidei para sentar à sua mesa. Ela concordou, disse como se chamava – Lana... – e conversamos sobre tudo e sobre nada... Compartilhamos nossas tristezas, rimos das nossas parcas alegrias nesta vida, descobrimos que ambos estávamos sozinhos e à deriva, tanto naquela noite como na própria vida, e por fim convidei-a para passar a noite no meu apartamento. Compramos uma garrafa de vinho tinto barato, pegamos um táxi e nos trancamos em nosso pequeno universo. Foi uma noite inesquecível, com Lana em meus braços...daquelas noites que não deveriam terminar nunca. Terminados os jogos amorosos, cogitei pedir seu número de telefone e perguntar onde ela morava, e talvez jurar aos seus pés que queria vê-la mais mil vezes, mas considerei que quando acordássemos, pela manhã, eu faria tudo isso e muito mais. Dormi o sono dos justos e dos exaustos de tanto amar. Acordei com uma leve ressaca por volta das onze e quando dei por mim, percebi que Lana não estava mais no quarto. Não estava mais no apartamento, havia ido embora. Dando uma geral pela casa, percebi que tudo estava em ordem, ela não levara nada, mas também não deixara nada. Talvez só ainda mais tristeza dentro de mim. Recordei, mais melancólico do que nunca da canção de Roy Orbison: Oh beautiful Lana...