28 agosto 2012

Perfis de Mulher: Dolores

Cefas Carvalho

Chamava-se Dolores. Como Dolores Duran, uma das heroínas de minha vida. Mas ela não conhecia Dolores Duran, não sabia nem quem era. Talvez sua mãe também não conhecesse a cantora e tivesse escolhido o nome por gosto, capricho ou influência, sabe-se lá. Mas, nada disso importa. Conheci Dolores em uma noite sem lua e sem estrelas, quase amaldiçoada, em um bar tipo inferninho nas Rocas. Surgiu na minha frente como quem vinha do nada – ou de algum dos quartos fétidos do bar onde as meninas operavam seus programas rápidos – e sorriu como se já me conhecesse havia muito. Também sorri e com um movimento sutil de cabeça convidei-a para sentar à mesa. Ela aceitou e bebeu da minha cerveja. Conversamos sobre a vida em geral e sobre nada em especial e pude perceber o quanto era estranhamente bela e triste. De uma beleza sofrida, claro, pele queimada, não de manhãs de praia, mas de quem veio do sol do interior. Cabelos maltratados, olheiras emoldurando um olhar castanho melancólico. Talvez meus amigos a achassem feia. Mas, aos meus olhos – também sofridos, admito – Dolores me pareceu bela como poucas.
Bastou meia hora para que eu me resolvesse a convidá-la para sair. Paguei sua saída do bar (exigência inegociável da dona do estabelecimento para quem quisesse sair com as meninas da casa) e fomos no meu carro para um motel em Mãe Luíza. Pedi cerveja, um jantar – ela estava morrendo de fome – e depois mergulhamos no mar sem fundo dos amores carnais envolvidos em dor e carência. No fim das contas e dos gozos, percebi que – como muitas vezes acontecia comigo – eu era um náufrago a me agarrar na bóia de amores circunstanciais e comprados. A diferença é que Dolores não parecia apenas estar trabalhando. Era como se ela também fosse uma náufraga.
No dia seguinte paguei o motel e deixei-a no inferninho onde morava. Trocamos números de celular e prometi telefonar e também voltar para outra noite juntos. Horas depois, já no trabalho, dei-me conta que Dolores em espanhol, significava “dores”. Os nomes femininos em língua espanhola muitas vezes evocam sentimentos: Dulce (Doce), Soledade (Saudade), Angustias, Martírio... e lembrei-me de um livro de Jack Kerouac – Tristessa – sobre uma jovem mexicana, igualmente bela e triste. Uma mulher chamada Tristeza..., pensei, com amargura, lembrando que a mulher sem destino e sem futuro que povoava meus pensamentos, ela mesma carregava no nome a antítese na alegria e da felicidade.
Voltei à minha vida normal, seja lá o que isso significasse, e confesso, esqueci-me de Dolores por alguns dias. Passada uma semana, porém, a lembrança dela me veio e me doeu na pele como uma agulha. Corri para as Rocas. Tudo continuava igual, o inferninho decadente, as mesas sujas, os sorrisos falsos das meninas... também Dolores estava lá e continuava igual. O mesmo olhar sofrido, a mesma atenção para comigo... era como se o tempo não se movesse naquele bar. Pedi uma cerveja, depois outra, depois uísque com coca para ambos e por fim acabamos em outro motel, novamente afogando nossas mágoas no corpo um do outro. Desta vez, contudo, consegui saber mais coisas sobre ela... já tinha sido casada duas vezes, tinha dois filhos, um de cada pai, era de Sousa, na Paraíba, mas com família em Pau dos Ferros... gostava de viajar e samba... Tinha estudado, fizera o segundo grau completo, gostava de escrever, chegara a sonhar, em certa altura imprecisa da vida, em ser professora numa cidadezinha do interior... Propus que viajássemos juntos. Para onde?, perguntou. Para lugar nenhum, respondi, na estrada decidimos... Pipa, João Pessoa, Recife, Tibau, Areia Branca... o vento seria nosso mapa. Com um sorriso triste ela concordou. Acordamos que faríamos a viagem no final de semana seguinte, quando eu prepararia tudo e ela inventaria uma desculpa para a dona do bar para não termos que pagar a saída. Vivi uma semana normal, mas algo excitante com a perspectiva da insólita viagem. Nada comuniquei aos amigos nem à família (como fazê-lo?). Na manhã de sábado, por fim, estacionei o carro em frente ao prédio abandonado nas Rocas onde havíamos combinado. Esperei durante quarenta minutos. Eu já me preparava para telefonar para ela quando aproximou-se do veículo uma mulher que eu conhecia do inferninho. Vinha me trazer um bilhete de Dolores, que fora embora com todos os seus pertences no dia anterior e nada dissera sobre seu destino: “Meu querido, descobri que sou dona das minhas dores e não quero dividi-las com você nem com ninguém. Não nasci para ser feliz. Melhor eu ir embora enquanto é tempo. Beijo. Dolores”. Guardei o bilhete no porta-luvas e peguei a estrada. Para onde? Quem sabia? Que importava?

22 agosto 2012

Perfis de mulher: Lana


Contendo nada menos que três obras primas, a trilogia chamada “Perfis de mulher” foi escrita pelo cearense José de Alecar e consiste em verdadeiras pérolas da literatura brasileira. Composta pelos romances “Diva”, “Lucíola” e “Senhora”, a série é subestimada e confundida com obras de menor cunho (como “Inocência” e “A moreninha”). Bem, como homenagem a Alencar e à  alma feminina, este espaço começa, a partir desta edição, a sequência “Perfis de mulher”, com textos já publicados neste blog (como o conto abaixo) e outros totalmente inéditos que virão. Confira agora o conto “Lana”.

Cefas Carvalho

Chamava-se Lana, como na canção de Roy Orbison. Ela era bela e triste, como todas as canções do Roy. Conheci-a em um bar, lugar sagrado onde geralmente conhecemos as pessoas importantes que marcam a nossa vida. É tolice tentar descrevê-la. Bem sei que não tinha uma beleza convencional, tampouco era dona de imensos olhos azuis, como nos clichês românticos. Era bela e normal. Estava sozinha na mesa, iluminando o local com seus olhos melancólicos e oblíquos, como diria Machado de Assis de sua Capitu. Ganhei coragem para abordá-la e me convidei para sentar à sua mesa. Ela concordou, disse como se chamava – Lana... – e conversamos sobre tudo e sobre nada... Compartilhamos nossas tristezas, rimos das nossas parcas alegrias nesta vida, descobrimos que ambos estávamos sozinhos e à deriva, tanto naquela noite como na própria vida, e por fim convidei-a para passar a noite no meu apartamento. Compramos uma garrafa de vinho tinto barato, pegamos um táxi e nos trancamos em nosso pequeno universo. Foi uma noite inesquecível, com Lana em meus braços...daquelas noites que não deveriam terminar nunca. Terminados os jogos amorosos, cogitei pedir seu número de telefone e perguntar onde ela morava, e talvez jurar aos seus pés que queria vê-la mais mil vezes, mas considerei que, quando acordássemos, pela manhã, eu faria tudo isso e muito mais. Dormi o sono dos justos e dos exaustos de tanto amar. Acordei com uma leve ressaca por volta das onze e, quando dei por mim, percebi que Lana não estava mais no quarto. Não estava mais no apartamento, havia ido embora. Dando uma geral pela casa, percebi que tudo estava em ordem, ela não levara nada, mas também não deixara nada. Talvez, só, ainda mais tristeza dentro de mim. Recordei, mais melancólico do que nunca da canção de Roy : Oh beautiful Lana...

Imagem: Egon Schiele

07 agosto 2012

Deixem o Tom fumar em paz!


Cefas Carvalho

Torturar, fatiar, eletrocutar, agredir, esfaquear, esbofetear, trair, carbonizar, pode! Fumar não pode. Esta é a conclusão a que este escrevinhador forçosamente chegou ao ler em um site uma informação bizarra: o desenho animado de Tom e Jerry, que fez a minha alegria na infância e a de onze em cada dez crianças de várias gerações, vem sendo duramente criticado na Inglaterra depois que um espectador telefonou para o Ofcom (órgão regulador da programação de TV no país) reclamando que o gato Tom costuma fumar, e isso representava um péssimo exemplo para as crianças.
Efetivamente no episódio “Texas Tom”, o gato azarado tenta impressionar uma gatinha enrolando um cigarro, acendendo-o e fumando-o com uma mão. No outro episódio, o “Tennis Chumps”, o adversário de Tom fuma um grande charuto. Resultado: em boletim publicado em seu website, a Ofcom apontou preocupações de que fumar na televisão possa influenciar a esse hábito. A empresa que licencia o desenho concordou em editar algumas cenas de fumo de Tom e Jerry. Quem diria, Tom e Jerry censurados e com cenas cortadas em um país democrático e em pleno século 21!
Mas, o curioso é perceber que o mesmo espectador que tanto se ofendeu com o cigarro do felino não se importou com toda a violência do desenho. Sim, pois Tom e Jerry, ao lado do Papa Léguas, é um manual quase didático de como impingir dor e sofrimento a um inimigo. Já assisti a Tom ser retalhado, esquartejado, torrado, agredido com bigornas, ter os dentes quebrados um a um, sempre pelo rato Jerry que o faz com um sádico sorriso e sem nenhum resquício de culpa. O curioso é que eu não lembrava de ter assistido aos episódios que Tom fuma cigarros. Devo ter assistido, mas nem por isso comecei a fumar.
Da mesma forma, também adorava Tom e Jerry nem por isso retalhei ou carbonizei minhas irmãs e meus amigos. Ah, e também ouvi muito heavy metal quando adolescente, em especial Iron Maiden e Metallica, meus preferidos nesta seara. A obra prima do Iron Maiden é “666-the number of the beast” (666 – o número da besta), que evidentemente fala sobre o demônio, ou como queria mestre Guimarães Rosa, o cramulhão, o capiroto, o tinhoso. Bem, o fato é que embora ouvisse a música com razoável freqüência, nem por isso adentrei nos caminhos de adoração do demo.
O politicamente correto é positivo porque luta pela cidadania e defende os direitos das minorias, mas tem lá seus exageros. Desenho animado não influencia criança alguma. Nem os mais violentos tipo Papa Léguas, nem os alucinados tipo Pokemon e nem os edificantes e mimosos como Bambi, Cinderela ou Pocahontas. Criança alguma fica boazinha ou adentra os caminhos da maldade com base em desenhos animados. Em suma, nenhum fumante que eu conheço, começou a fumar porque assistiu Tom ou qualquer outro personagem de desenho animado fumando, muito menos porque viu fumantes em filmes (passei boa parte da adolescência vendo Humphrey Bogart, Clark Gable e Bette Davis fumando centenas de cigarros nos clássicos americanos e nunca fui fumante). Animação só diverte, mesmo com excessos. Discutir a qualidade dos desenhos é outra coisa. E neste aspecto, convenhamos que Tom e Jerry são dos melhores. Deixem o pobre Tom fumar em paz!