26 abril 2010

Cachorro quente ou hot dog?


Cefas Carvalho

Receoso de ferir os brios patrióticos dos amigos e amigas do país de Mossoró, resisti bravamente a escrever o texto que se seguirá. Temia que ele colocasse mais lenha na centenária rixa entre natalenses e mossroenses, com os primeiros geralmente tecendo piadas ferinas e comentários maldosos a respeito do comportamento das gentes de Mossoró.
Contudo, durante recente confraternização cultural (e etílica) na 1ª Feirinha de Livros de Currais Novos, o comandante em chefe da Revista Papangu, Tulio Ratto, garantiu não somente a publicação de tal texto sem censuras como minha integridade física (tendo em vista a pouco hercúlea compleição física de Tulio, não estou certo que sua garantia de segurança me valerá de muita coisa...). Ainda assim ganhei coragem para escrever sobre uma aventura gastronômica que vivi na terra de Santa Luzia. Que os amigos Cid Augusto e Kydelmir Dantas, pacatos e bons companheiros, que viram gladiadores na hora de defender Mossoró, me perdoem.
Bem, vamos à história. O episódio aconteceu nos idos de 1992, quando eu acabava de ter o prazer de entrar na redação da Gazeta do Oeste, nos bons tempos em que Canindé Queiroz comandava uma equipe de até hoje bons amigos como Carlos Santos, Cesar Santos, Gutemberg Moura, Augusto Paiva, Emerson Linhares, e outros. Mas, deixemos de nostalgia. O fato é que eu acabava de chegar a Mossoró, cidade que conhecia apenas superficialmente, e ainda não havia me detido na vida cotidiana e nas particularidades mossoroenmses.
Na minha primeira semana, lanchava (e almoçava, diga-se) baurus no treiller de Titi, ao lado da Gazeta. Em uma bela tarde, o trailler se encontrava fechado e resolvi sair a esmo pelo centro à procura de uma lanchonete. Numa rua, cujo nome não recordo, lá perto do legendário Restaurante do Mathu, descobri uma lanchonetezinha. Estava vazia e parecia agradável, apesar de simples. Senti ao balcão caçando o cardápio ou coisa que o valasse. Inútil.
Por fim, surgiu da cozinha um rapaz resmungando um boa noite que mais parecia um convite para me retirar. Resolvi ficar, e perguntei se tinha algum salgado, tipo pastel ou empada. Secamente, ele respondeu que não. Perguntei então se tinha cachorro quente... O cidadão coçou a barba por fazer e disparou: “Amigo, você quer cachorro quente ou hot dog?”. Senti no momento um vazio mental, tal a irrealidade da pergunta.
“Mas, qual a diferença entre um e outro?”, perguntei, inocentemente. O cara me olhou como se eu fosse imbecil – talvez o fosse, naquele instante – e respondeu, todo senhor de sua secura: “Cachorro quente é com carne moída, hot dog é com salsicha!”. “Ah, é claro...”, concordei, como se respaldando uma verdade absoluta. Acostumado que era a comer os tradicionais cachorros-quentes com salsicha, à moda americana, lá no jurássico Passport, na Praça Cívica, em Natal, desde a mais tenra infância, deveria ter optado pelo que conhecia. Mas, a vontade de desbravar culinárias estrangeiras falou mais alto. “Me veja um cachorro quente aí”, pedi.
O camarada foi para a cozinha. Retornou logo trazendo em um prato azul, um pão cheio de carne e verduras, fumegante e cheiroso. Contudo, um detalhe: no prato, garfo e faca! Educadamente, peguei os talheres e coloquei-os no balcão. “Obrigado, mas não vou precisar”. O rapaz nada falou. Empolgado, com o aroma, puxei dois guardanapos de papel e avancei as mãos para o prato, dando início à minha tragédia. Mal levantei o pão á boca, o bicho começou a se liquefazer. Nervoso, inclinei o pão, derramando um caldo marrom em minha calça jeans. Ainda mais nervoso, coloquei o pão no prato e ele – já mais liquido do que sólido – praticamente se desmanchou. Olhei para a calça e parte da camisa, todas sujas e pensei em protestar, quando reparei na expressão impassível do cidadão, me olhando com a superioridade natural que um nativo de Mossoró encara forasteiros de culturas primitivas. Concluí que era inútil reclamar. O culpado, afinal de contas, era eu. Olhei para o cachorro quente que havia pedido, na verdade quase uma sopa, e não um sanduíche. Não havia como resistir àquele caldo onde boiavam pão molhado, carne, cebola, tomate e pimentão. Recolhido à minha insignificância, olhei com humildade para o sujeito, que esboçava um sutil sorriso nos cantos da boca e pedi: “Amigo, por favor, me veja garfo, faca e uma colher...”

(Publicado originalmente na Revista Papangu de 31 de agosto de 2006)

05 abril 2010

"Para o inferno"


Cefas Carvalho

Entrou no táxi apressado – os olhos injetados e doentios - e instalou-se no banco traseiro. O taxista, envolto em suor e tédio perguntou: “O senhor quer ir para onde?” "Para o inferno", respondeu o passageiro. O taxista virou-se. Percebeu no olhar do estranho passageiro - um homem maduro, corpulento e de modos sombrios - um desespero mesclado com uma inusitada serenidade. O homem sustentou o olhar do taxista e implorou: "Por favor, siga em frente". O taxista suspirou e obedeceu. Esperou que alguns segundos se passassem para perguntar novamente: "Para onde o senhor vai?". "Se eu soubesse...", suspirou o passageiro, para completar: "Quem sabe para onde vai? Você sabe para onde vai?". O taxista hesitou: "Eu vou para onde o senhor disser que iremos". "Se eu não sei para onde vou, como pode dizer isso?". "Preciso que o senhor diga para onde quer ir, ou vou ter que parar o carro para não gastar gasolina". "Eu entrei no seu táxi dizendo para onde queria ir: para o inferno.". "Não posso te levar para o inferno". "Então me leve para algum lugar parecido". O taxista hesitou novamente. Que lugar lhe assemelharia mais aos mundos infernais? Sua própria casa, com sua esposa que mal lhe dirigia a palavra havia anos e os filhos adolescentes que não o respeitavam? O clube no domingo com os amigos interesseiros e as brigas que fatalmente aconteciam? Os encontros semanais com o dono do táxi, que lhe cobrava impiedosamente o aluguel do veículo e sempre reclamava de alguma coisa? De repente todos os aspectos de sua vida lhe pareceram infernais, e em uma questão de segundos se perguntou se valia a pena estar vivo. Mais: se queria ainda continuar vivendo. Realmente vivera ao longo daqueles anos todos de necessidades e humilhações. Freou o carro, subitamente. "O que houve?", perguntou o passageiro. "Que houve?". "Não posso te levar para o inferno. Descobri que já vivo nele". "Então, faça o que tem que fazer". "É o que o senhor quer?". "Com certeza. Vamos, homem, resolva tudo por nós dois". O taxista então deu partida e rumou para a ponte quebrada e abandonada na zona noroeste da cidade. Sempre quis passar direto pelos cones que alertavam os motoristas do perigo. Sempre quis saber se a água do rio era realmente gelada e lodosa, como diziam. Sempre quis descansar de sua própria vida. Ainda que fosse no inferno.