20 abril 2013

Cântico dos Cânticos

Cefas Carvalho

Para S...

Sim, você me beijou com os beijos da sua boca, pois meu amor é melhor que o vinho (palavras suas, não minhas)... E foi justamente o vinho que nos mergulhou no mar de sensações onde quase nos afogamos. Qual o vinho? Concha y Toro, tinto chileno, para ti que tanto sonhas em conhecer Santiago, capital do Chile, que tanto quer desbravar a América do Sul, que tanto planeja fazer amor comigo em um hotel em Buenos Aires depois de invadirmos casas de tango. Propus um coquetel, vodca com frutas, mas, recusaste tudo a não ser o vinho, logo o vinho que - três ou quatro taças depois - lhe faz falar rapida e demasiadamente, lhe faz revelar segredos...
Mas, falavas naquela noite não do vinho ou das viagens (planejadas ou meramente sonhadas), mas d´O cântico dos cânticos, o mais belo e mais perigoso dos livros biblicos, um bálsamo entre tantas regras, tanta violência e tantas contradições.
Você diz, entre risos maliciosos, que não é um texto religioso, mas que trata-se de um livro erótico (para desespero das beatas, dos devotos, dos evangélicos)... Mas, que tem nossa história a ver com dogmas, credos, doutrinas? Criamos nosso evangelho apócrifo de versículos sussurrados ao pé do ouvido e de ouvidos vermelhos graças a ação das línguas (não da língua dos anjos, que fique bem explicado. Que faríamos nós dois com a linguagem dos anjos? Nos caberia melhor a linguagem dos demônios, dos anjos caídos insatisfeitos com delícias limitadas e códigos de conduta sem sentido)...
Era uma noite de sexta-feira. Quando eu me preparava para adentrar a madrugada acompanhado da solidão e dos meus próprios demônios você me telefonou, avisando que voltara de viagem e que, apesar de cansada, não imaginava passar a noite de maneira nenhuma que não comigo. Disse que trouxera presentes e surpresas, sabia que a curiosidade era meu fraco.
Enquanto a esperava, abri a Biblia e ao me deter no nosso Cântico dos Canticos (ou Cantares de Salomão), voltei uma página para rever a marcação em laranja fosforescente que eu fizera em um trecho do Eclesiastes: Alegra-te, jovem, na tua juventude, e recreie-te o teu coração nos dias de tua mocidade... Claro que após tal oração, vem a fatura e o deus do antigo testamento, raivoso, vingativo, registra que ele próprio pedirá contas desta alegria e juventude, mas, a mim, isso não importava. Seu retorno era a única coisa que tinha valor naquela noite cinzenta e morna, noite de
Eu inocava espíritos quando percebi o ruído no meu celular. Era você, avisando que estava chegando, estacionava o carro na garagem do prédio. Voltei ao Cântico, sabia que você iria fechar o carro e, quatro passos depois, lembrando que esquecera algo importante dentro de veículo, retornaria a ele, e que o processo se repetiria mais duas vezes pelo menos, antes que você tomasse o elevador para - enfim - vir de encontro a meus braços. Leva-me tu; correremos após ti. O rei me introduziu nas suas câmaras; em ti nos regozijaremos e nos alegraremos; do teu amor nos lembraremos, mais do que do vinho; os retos te amam.
Cânticos 1:4... Introduzir, alegria, vinho... Como assim? Ah, regozijo, que seja eliminado todo regozijo que não venha do vinho e da sua consequência imediata, a alegria tramsutada em amor carnal (que mil demônios levem para longe todo amor que não seja carnal) Mais leitura: Já despi a minha roupa; como as tornarei a vestir? Já lavei os meus pés; como os tornarei a sujar? O meu amado pôs a sua mão pela fresta da porta, e as minhas entranhas estremeceram por amor dele. Cânticos 5:3-4... Decisão de fazer tais versos o lema da noite, não, uma vez despidas as roupas, nenhuma mais será vestida até o sol nasça... Havia que preparar o palco do espetáculo de desejo que se avizinhava... Assim, como ela, eu adorava velas, fumaças, incensos, luzes coloridas, velas, meia luz... Havia um pouco de tudo isso pelo apartamento, de maneira a iludir sentidos, brincar com sensações, gerar cegueiras e confusões olfativas, tudo em prol do amor carnal.
Até que a campanha tocou. Abri a porta com um rápido movimento na chave e te vi na minha frente. Devia estar segurando um CD, uma caixa de chocolate e um vinho tinto. Contudo, após o sorriso minha mente se viu possuída em devaneio de maneira que murmurei que entrasse. Você sorriu  e o Cântico dos Cânticos iria, enfim, ser declamado.



Imagem : Foto de Alexey Naumov

11 abril 2013

A última ceia

Cefas Carvalho
 
Da despedida ficou o lenço
Úmido, desbotado e tenso
Da partida, a mão em adeus
Destroçando sonhos teus...
Do amor, sobraram os retratos
Dos sonhos, os escombros
De nós dois, sobrou um só
(Amor...soterrado pelos fatos
Tudo tornou-se um dar de ombros
Tanto amor tornado pó...)
De um, os estilhaços
Da vida, um mar de sargaços
Do futuro, uma incerteza
A indiferença pôs a mesa
Servida a ceia para dois
(A última ceia...sem depois...)


Imagem: Foto de Henri Cartier Bresson

08 abril 2013

Paladar


Cefas Carvalho


A vida passou

en passant

Por mim

Deixando um gosto

De maçã

E de alecrim...






Imagem: "Maçãs", de Cezanne