10 dezembro 2013

O sexto homem

 Cefas Carvalho

    Tirada a sorte nos palitinhos, ficou determinado que eu seria o sexto homem. Queria ter palavras para descrever o vazio que senti naquele momento, sensação, alias, que já estava me rondando desde que a noite começou a tomar o rumo estranho e desesperado que se contornava. Tirada a sorte, como já disse, o segundo homem deu-me um alegre tapa nas costas, e o terceiro homem me atirou à mão mais uma lata de cerveja, desta vez, bem gelada.
    - Por Deus, vai ser uma noite dos diabos – vibrava o segundo homem, esfregando as mãos suadas em asqueroso contentamento. O terceiro homem não se afastava do isopor com as cervejas, como se a qualquer descuido elas fossem fugir. Também murmurava cânticos bizarros de satisfação antecipada. Somente eu e o primeiro homem mantínhamos o silêncio. Ele fumando, olhando com paterna complacência a alegria barulhenta e vulgar dos outros. Eu, querendo não estar ali, querendo não estar vivo, e, principalmente, querendo não ter sido o sexto homem.
    Como tudo começara? Horas antes estávamos nós todos, uma vez encerrado nosso expediente como seguranças na casa de um poderoso político, discutindo o que iríamos fazer e como e onde gastaríamos nosso dinheiro. Não foi preciso muito debate para resolvermos comprar dezenas de latas de cerveja, uma caixa de isopor e sairmos rodando pela cidade na caminhonete do primeiro homem, que ate então não atendia por essa denominação, é preciso dize-lo. Procurávamos algo, isto é certo, mas nem eu nem os outros saberíamos precisar o quê, caso isso fosse indagado. Estávamos à caça de alegria? Mulheres? Prazer? Confusão? Brigas? Jogo? Não, eu não saberia dize-lo... talvez estivéssemos querendo fazer passar o tempo antes de cada um voltar à sua rotina, uns às esposas e ao jantar requentado; outros à solidão de um quarto de pensão. Quanto a mim, tanto fazia, eu não tinha para onde ir ou para quem retornar. No entanto, nem mesmo esse enorme nada que me tragava havia tempos, me deixava menos confortável com o que se seguiu e com o fato de que, tirada a maldita sorte, tivesse ficado estabelecido que eu seria o sexto homem.
    Voltando à ordem cronológica que por vezes me foge, de tanto rodar pela cidade, aportamos em um bar escuro e mal acabado do trecho da orla conhecido como “lado escuro”, pelos motivos evidentes. A dona do bar, uma idosa vulgar e exageradamente pintada, vestida como se tivesse trinta anos e o mesmo número de quilos a menos, parecia ter intima amizade com o terceiro homem. Em pouco tempo ela já estava na nossa mesa, contando piadas sujas e acariciando obscenamente o terceiro homem. Talvez minha insatisfação ficasse limitada a me desviar da saliva que a velha nos lançava enquanto falava, se uma mulher estranha não tivesse se aproximado da mesa. Ela cochichou algumas palavras no ouvido da mulher gorda, que, a princípio, fez uma expressão grave, mas depois começou a rir.
    A mulher, então. Talvez fosse bonita, embora sua beleza, se existisse realmente, estivesse visivelmente sendo apagada pela vida. Morena, de baixa estatura e cabelos incrivelmente lisos e negros, ela parecia estar aérea, talvez drogada. Apesar de seus trajes, uma mini-blusa negra e um curto short jeans deixarem à mostra seu corpo bem torneado, a primeira coisa que notei foram seus olhos. Eram olhos belos, sem dúvida, mas de um castanho opaco, que emoldurados por sobrancelhas finas e um nariz muito delgado, faziam com que seu olhar fosse o de uma pessoa morta. Eu ia comentar isso com o quinto homem quando a velha gorda gritou algo que eu não compreendi e o terceiro homem agarrou grosseiramente a moça, obrigando-a a sentar em seu colo, o que ele fez sem protesto, mas sem prazer.
    Eu não tinha bebido muito, todavia, mostrava uma imensa dificuldade em compreender tudo o que estava se passando. Enquanto o terceiro homem tentava desajeitadamente por a mão nos seios da mulher, que o afastava, ou fingia afastar, o primeiro homem, levantou-se para conversar com a dona do bar no balcão, contudo a gritaria na mesa me impedia de raciocinar. E logo outra lata de cerveja apareceu em minha mão.
    - Eu também quero provar do doce – gritou o segundo homem. O quarto homem abriu a boca para falar algo, mas desistiu. O terceiro homem então empurrou violentamente a mulher do seu colo em direção do segundo homem. Este com menos rispidez que o terceiro, colocou-a por sua vez em seu colo.
    - Você gosta disso, não é, meu bem?... – riu o segundo homem, segurando o queixo dela.
    - Gosto – escutei seu murmúrio. Era a primeira palavra que ouvia dela. A voz também era de uma pessoa morta. O que estará acontecendo aqui? Perguntei a mim mesmo, enquanto abria outra lata de cerveja.
    Por fim, o primeiro homem retornou à mesa com um sorriso confiante de quem obtém uma vitória, e cochicha algo no ouvido do terceiro homem, que soltou um berro e deu um soco na própria perna.
    - Eu não acredito que você fez isso! – vibrou, voltando-se para o quarto homem, que assistia a tudo como a um filme.
    Levantei-me para mijar na areia, próximo ao mar, visto que não havia banheiro nas proximidades. O primeiro homem me acompanhou, provavelmente para também me contar a novidade que parecia alegrar a todos.
    - Rapaz, você não sabe o que eu consegui... – riu, enquanto também abria a braguilha. Continuei em silêncio.
    - Você sabe que aquela dona, além de ser gostosa, é puta, não é? – continuou - A dona do bar disse que ela estava precisando de dinheiro e que estava caçando clientes, aí perguntou se um de nós não queria fazer um programa com ela...
    - E então?...
    -  Então, mais por brincadeira que falando sério, eu respondi que saímos todos juntos para nos divertir, e que ou todos se divertiam ou nenhum. Para minha surpresa ela respondeu que a doida aceitaria sair com os seis...
    - Com nós seis? ... – repeti.
    - Isso mesmo, com nós seis – confirmou o primeiro homem rindo. Como eu me encastelei em silencio, ele continuou:
    - Vai me dizer que você nunca fez nenhuma putaria assim? ...
    - Já sim – defendi-me - Mas seis homens e uma mulher não...
    - Realmente seis homens em uma leva só é um exagero... mas, ela não é santa e muito menos nós... e para tudo tem a primeira vez na vida, não é? – riu, me dando um tapa nas costas. Lentamente, abotoei a braguilha e voltei para a mesa.
    O cenário me parecia assustador. Os cinco faziam uma espécie de roda onde a mulher de olhos mortos dançava desajeitadamente, levada pelo ritmo das palmas e certamente pelo desejo que aquilo acabasse logo. Alguns aproveitavam os movimentos da dança para apalparem-na, outros gritavam palavrões. Somente eu e o primeiro homem nos mantínhamos em silêncio. A dona do bar assistia a tudo do balcão com um olhar condescendente, mas preocupada, talvez, com a policia, ou com as conseqüências da brincadeira. Em poucos minutos a colocamos na caminhonete, ela dentro e os demais na carroceria e o primeiro homem dirigiu o veículo até um motel decadente ali próximo. Tudo foi feito muito rápida e profissionalmente. Entramos no motel, os sete, pedimos um quarto, o primeiro homem conduziu o carro até a garagem e saímos todos, entre certa inibição e uma excitação silenciosa.
    - Venha, é melhor você entrar logo – disse o primeiro homem, pegando-a pelo braço. Ele abriu a porta e induziu-a a entrar no quarto com ele. Passados alguns segundos, voltou-se à garagem, fechando a porta atrás de si.  Agora que estamos sozinhos, o negócio é o seguinte: proponho que entremos um por um no quarto, afinal, não será um bom negócio se formos com ela os seis ao mesmo temo, certo?
    Murmúrios de concordância foram ouvidos, embora eu tenha percebido que um e outro preferia algo mais pervertido. Como ninguém tinha muita idéia do que fazer, qualquer uma que fosse apresentada seria aceita.
    - Mas quem vai primeiro? – indagou o primeiro homem.
    - Vamos tirar a sorte nos palitinhos... – respondeu o terceiro homem.
    E foi assim que chegamos aos palitinhos, improvisados de uma caixa de fósforo do quinto homem. Quis o destino que o maior palito tenha sido pego pelo, agora sim, primeiro homem. O mesmo destino deixou os mais empolgados com a moça em segundo e terceiro lugar na fila. Os casados e nervosos amarguraram o quarto e o quinto lugar lugares na fila, enquanto para mim sobrou o palito mais curto. Eu era o ultimo, como sempre acontecia. Para descontrair o ambiente, passaram a brincar comigo, me chamando de “o sexto homem”. Como já disse, o vazio que se apossava de mim era do tamanho que eu não conseguia sentir tristeza, angustia ou qualquer coisa do gênero. Minha vontade era de que um meteoro caísse no motel e acabasse com tudo aquilo. Tirada a sorte, o entusiasmo vulgar voltou à cena.
    - Por Deus, vai ser uma noite dos diabos – repetiu o segundo homem. Sem falar nada o primeiro homem se afastou de nós e se dirigiu a porta do quarto. Abriu-a sem muita convicção do que estava fazendo e por fim fechou-a, deixando-nos na semi-escuridão e na angústia.
    - Será que ele vai demorar? – perguntou o quarto homem.
    - Uns dez minutos e ele já estará aqui – suspirou o segundo homem, visivelmente apreensivo.
    - Tudo isso?
    - Acha muito tempo? – perguntou o terceiro homem – pois eu consigo ficar até uma hora com uma mulher.
    - Se você ficar uma hora com essa mulher a gente só vai sair daqui de madrugada! – reclamou o quinto homem.
    - Eu não disse que vou ficar uma hora com essa mulher aí. Com ela vai ser oi, tudo bem, bimbo e tchau - sorriu. Todos rimos, mas sem achar graça. O quarto homem que não fumava, pediu um cigarro ao terceiro homem.
    - Qual é a média de duração de uma transa?
    - Depende da transa, porra!
    - Eu li em algum lugar que é de quinze minutos.
    - Bem, quinze minutos vezes seis dá noventa minutos, uma hora e meia...
    - Só que alguns de nós vão levar mais tempo que os outros, outros menos...
    - Será que ela vai agüentar?
    - Agüenta, rapaz, ela é profissional...
    - Eu sei, mas... 
    - É o trabalho dela, todo dia ela deve sair com sete, oito, nove...
    - Eu sei... – murmurou timidamente o quarto homem. Depois dessa conversa ficamos um longo tempo em silêncio, ouvindo os ruídos que provavelmente vinham da cozinha do motel e rezando para que o maldito tempo passasse logo.
    - Quinze minutos e nada...
    - Lá se foi a sua média...
    - Vamos dar a ele mais cinco minutos, e aí batemos na porta para apressá-lo.
    - Melhor não, ele pode ficar chateado – protestou o quinto homem. Quando já iniciava uma discussão sobre a idéia, a porta se abriu e saiu o primeiro homem.
    - O próximo! – gritou rindo. O segundo homem não esperou a segunda chamada e entrou apressadamente no quarto.
    - Parece que aquele não vê mulher faz um ano – gracejou o primeiro homem, que, excetuando os cabelos molhados, estava idêntico a quando entrou. Mas que bobagem, o que esperava eu? Quinze minutos com uma puta mudasse a vida de alguém?
    - Como foi? – perguntou o quarto homem, ansioso.
    - Como foi o quê?
    - Lá dentro?
    - Foi bom. Aliás, foi normal... – suspirou, acendendo um cigarro. Era como o fato de ter sido o primeiro lhe desse uma superioridade hierárquica sobre todos nós, detalhe que o nervosismo do quarto homem parecia realçar ainda mais. O primeiro homem se aproximou de mim.
    - Parece que ele está meio tenso, não? Será que a mulher dele não da conta do recado? – sorriu. Limitei-me a sorrir, e ele entendeu meu olhar.
    - Ou ele é quem não dá conta do recado?... Vai ser nervoso assim no inferno – continuou, aproximando-se do terceiro homem, que não tirava os olhos do relógio. De três em três minutos, ele informava a quanto tempo o segundo homem estava no quarto.
    - Dezoito minutos. – indignou-se – Se ele não acabar logo eu vou entrar na marra.
    - Quando eu estiver lá dentro não quero que ninguém se atreva a entrar – resmungou o quinto homem, de cócoras junto ao carro.
    - Como ela é fodendo? - perguntou o quarto homem.
    - Ah, isso você vai saber em breve – riu, soltando fumaça na cara do interlocutor - Sabem de uma coisa? Vou tirar uma soneca no carro. Se acontecer algo de errado, me acordem – disse, entrando na pick-up. Passaram-se mais quatro minutos quando a porta do quarto se abriu.
    - Vinte e cinco minutos! – gritou o terceiro homem – Já não era sem tempo.
    - Pare de falar e entre logo para fazer o serviço – resmungou o segundo homem, que estava só de calça, com a camisa e os sapatos na mão. O quarto homem correu para ele:
    - E aí, como foi?
    - Uma foda e tanto, meu rapaz! Nem te conto – rosnou, subindo na carroceria da pick-up. – Quer dizer que o outro já pegou no sono? Também, depois dessa canseira...
    Enquanto o segundo homem se preparava para dormir entre cordas e panos sujos, o quarto homem se esgueirava para o meu lado, certamente desejoso de conversa. Mas tudo que eu queria era permanecer em silêncio.
    - Que azar o seu, ser o ultimo, hein?... – comentou.
    - Pois é – resmunguei.
    - Como será que ela vai estar depois de tudo, você sabe... depois de cinco?...
    - Nem imagino – rosnei, fazendo força para não visualizar nada.
    - E o próximo sou eu... – comentou, com uma expressão de horror.
    - Você não é obrigado a entrar – interveio o quinto homem – Se não quiser comer da fruta é só dar o lugar.
    - Quem disse que eu não quero? – irritou-se.
    - É que você parece meio nervoso...
    - Nervoso um caralho! – gritou, acordando o primeiro homem, que desceu do carro.
    - Parem de gritos, ou vamos ser expulsos daqui – irritou-sre... O quarto homem se encolheu em um canto e não falou mais nada. O quinto homem se aproximou de mim.
    - Se eu te confessar uma coisa você não vai rir de mim?
    - Não – respondi.
    - Sabe que eu não estou com a menor vontade de entrar... quero dizer; a coisa não vai ser tão divertida assim, entende?
    - Entendo – murmurei, enquanto voltava a pensar nos olhos dela, opacos, como se os globos oculares tivessem sido extirpados e, em seu lugar, bijuterias tivessem sido colocadas no lugar.
    Se aquela mulher não estava morta, certamente nós acabaríamos de fazer o serviço, pensei.
    - Vamos lá, você agora, rapaz! – bradou o primeiro homem ao ver o terceiro sair. O quarto homem andou lentamente para a porta, como quem vai para uma execução. Na verdade parecíamos estar numa espécie de corredor da morte. Empolgado, o terceiro homem queria conversa.
    - Nossa, essa foi das boas – comentou. Como o primeiro e o segundo homem estivessem cansados e loucos para que tudo aquilo acabasse, na da responderam. Eu e o quinto homem, apreensivos e sem disposição para descobrir por outrem o que veríamos em breve, evitamos qualquer dialogo. Porém, chegamos a prever que o quarto homem não ficaria sequer quinze minutos no quarto. Ledo engano. Quase meia hora e nem sinal dele.
    - Acho melhor vermos se está tudo bem, - sugeriu o terceiro homem.
    - E pensar que achávamos que ele não ficaria nem dez minutos... – comentou o quinto homem.
    - Essa demora não quer dizer nada. Ele pode muito bem estar tentando fazer a coisa desde que entrou – riu o segundo homem. Enquanto discutíamos a questão, o quarto homem finalmente saiu. Estava com o cabelo desgrenhado e uma expressão inescrutável, que tanto podia traduzir derrota como plena satisfação. Como ele não falasse nada, o terceiro homem perguntou:
    - E aí?
    - Tudo bem.
    - Que cheiro horrível! –reclamou o segundo homem – Você não tomou banho
    - Quer que eu chegue em casa com os cabelos molhados?
    - Melhor do que chegar com cheiro de puta.
    Enquanto o quarto homem, então preocupado, se cheirava para avaliar o perigo, o quinto homem entrou sem fazer alarde. Mais vinte minutos depois e chegaria então a minha vez. Eu sabia que se desistisse àquela altura do campeonato seria pior, portanto. Apesar do vazio e do desânimo tentei me convencer que em poucas horas aquele pesadelo terminaria. Todos voltariam a se ver somente dois dias depois, na segunda-feira e a vida recomeçaria sem que a noite que vivíamos fosse mais que uma vaga recordação.
    Os minutos passavam lentamente. Para os outros, a brincadeira já perdera a graça, queriam apenas que tudo acabasse para irmos embora. Se o preço a pagar pela minha desistência em ser o sexto homem não me parecesse tão alto, eu seria o primeiro a, mal saísse o quinto homem, chamar todos para irmos embora.No entanto, o quinto homem saiu do quarto por fim. Parecia que voltava de uma guerra, tal a velhice estampada em seus olhos. Curiosamente, era como se um monstro e não uma mulher, estivesse dentro do quarto, e entrar nele não significava usufruir de um prazer comprado, mas participar de uma guerra. Foi nesse pensamento que entrei, enfim, no quarto.
    Eu conhecia aquele motel. O quarto não passava de um quadrado de poucos metros todo pintado de branco, com uma cama barata em um canto e uma cômoda de madeira no outro. Em anexo, um banheiro mal azulejado e apertado se fazia ver logo da porta. Um quadro com o desenho de um casal fazendo sexo fora pregado acima da cama, porém mais do que excitar, o quadro desagradava.
    Mas, vamos à cena em si e não a descrição do cenário. Não consegui conter uma expressão de horror diante do que vi. A mulher, totalmente nua, estava deitada na cama com as pernas entreabertas, e me olhava sem me ver. Diria-se que tava morta, e só não cogitei que estivesse devido a seus olhos entreabertos e sua respiração pesada. Como se me fosse impossível desviar os olhos de tal visão, principiei em examina-la como um cientista o faria. Nu, seu corpo parecia bem menos interessante que vestido, e pude distinguir que além de marcas naturais como estrias e celulite, cicatrizes nas pernas que me pareceram marcas de faca. A cicatriz em linha reta entre a barriga e a região pubiana evidentemente era de uma cesariana recente. Sentei-me à cama para olha-la mais de perto: os seios eram impotentes, acusavam sua juventude, mas eram também marcados. Pernas e braços idem. Era como se tivesse rolado de uma ribanceira. Cheguei então no rosto, que eu já tinha estudado no bar. Me parecia um belo rosto, mas quem dissesse que ela era feia não estaria mentindo, absolutamente. A pele manchada, os lábios mal cuidados e os olhos vazios tornavam aquele rosto tão digno de repulsa quanto  de desejo quando visto de longe ou com olhos menos sensíveis.
    - Qual é o seu nome? – perguntei, baixinho, para não incomodá-la.
    - Por que você quer saber? Que interessa meu nome? – respondeu num fiapo de voz. Sentado na cama ao seu lado, eu não sabia sequer como tocá-la, quanto mais disposto a fazer o que eu deveria fazer. Reparei numa imensa mancha na cama entre suas pernas. Aquela visão foi suficiente para me fazer tomar uma decisão. Corri para o banheiro, onde vomitei. Puxei a descarga e fiquei sentado no vaso sanitário, à espera de que alguma coisa acontecesse. Por fim, ela se levantou e caminhou trôpega até o banheiro.
    - Você não vem? – perguntou.
    - Se incomoda que eu fique um pouco aqui?
    Ela deu os ombros, como se registrando que, para ela, pouco importava. Porém, antes de voltar para a cama perguntou:
     - Qual é o seu nome?
    - Eu não sou ninguém. Sou apenas o sexto homem – murmurei. Não sei se ela entendeu, ou sequer ouviu, mas arrastou-se novamente para a cama.
    - Não quer tomar um banho? – perguntei. Como não ouvi resposta, retornei para junto da cama. Repeti a pergunta.
    - Vou tomar um banho depois que você terminar em mim.
    - Escute, eu não vou fazer nada...
    - Você não vai...
    - Não fale nada, eu vou ficar aqui apenas mais uns quinze minutos, nós sairemos e tudo vai acabar, ok? Portanto, vá tomar um banho, é o melhor que você pode fazer.
    Em silencio, ela ao banheiro. Ouvi o barulho da água do chuveiro caindo no chão. No quarto, como um detetive, comecei a rastrear os vestígios deixados pelos meus companheiros: toalhas molhadas, restos de cigarro, poças de cuspe no chão. Atiradas a esmo, via-se quatro camisinhas usadas. Como o cesto de lixo estava vazio, conclui que um deles não efetuara a coisa, ou o fizera sem camisinha. Mas de nada importava isso. Eu queria apenas que o tempo passasse e fôssemos embora, rezar para que o dia seguinte chegasse logo e fosse possível esquecer aquela noite.
    Peguei uma água mineral no frigobar. Ela enfim saiu, enrolada na toalha. Caminhava com dificuldade.
    - Você bebeu alguma coisa aqui?
    - Me deram cerveja.
    - Quer água?
    - Não.
    Acabei a minha água mineral e joguei a garrafa de plástico no chão. Não sentia a menor vontade de conversar, mas o imenso vazio fazia com que o silêncio fosse ainda pior.
    - Bebeu muito antes de vir pra cá?
    - Um pouco.
    - E fumou alguma coisa? Um baseado?
    - Só bolinha.
    Voltei ao silêncio. Olhei o relógio. Dezenove minutos se passaram desde minha entrada. Mandei que ela vestisse as roupas, o que fez mecanicamente. Desarrumei o cabelo e tirei a camisa de dentro da calça, para dar impressão que tinha acontecido algo. Por fim, ganhei coragem e abri a porta.
    - Até que enfim, porra, já não era hora! – gritou o segundo homem, mal botei a cabeça para fora. Os outros exclamaram coisas semelhantes. Ela veio atrás de mim, de cabeça baixa, andado com dificuldade. Notei que ninguém queria olha-la fixamente nos olhos.
    - Ela vai atrás com vocês – sentenciou o primeiro homem.
     - Negativo! – protestei – Ela veio na frente e vai voltar na frente. Vamos fazer as coisas do modo correto.
    Talvez surpreso por alguém ter questionado sua autoridade natural, o primeiro homem hesitou. Por fim, concordou.
    - Vamos fazer as coisas do modo correto – repetiu.
    Ao contrário do que aconteceu na viagem rumo ao motel, o segundo homem não quis ir na frente. Ninguém queria ir acompanhá-la na frente junto com o primeiro homem. Todos foram atrás, na carroceria. Ninguém falou nada na viagem de volta à praia. Era um silêncio cúmplice dos que cometiam crime e sabem que quanto menos se fala sobre ele, melhor. Até chegarmos à praia, ainda mais deserta do que antes. Já era madrugada. Apenas dois quiosques estavam abertos, e neles poucas putas atrás de clientes e uns adolescentes enchendo a cara. O primeiro homem parou a pick-up em frente ao bar da velha gorda, que já estava recolhendo as mesas e cadeiras. Vestida, a mulherzinha havia recuperado se não a beleza, mas pelo menos um pouco de  dignidade. Pude observar o primeiro homem estendendo notas para ela.
    - Essa noite foi dos diabos! – comentou o segundo homem, bocejando barulhentamente. Observei a mulher afastar-se do carro com o dinheiro na mão e aproximar-se da velha.
    - Foi um dinheiro justo que ela ganhou, afinal não é qualquer uma que topa sair com seis... – comentou o primeiro homem – A dona do bar disse que ela precisava do dinheiro para comprar o leite para os filhos – explicou, como se procurando justificativas para a atitude dela. A noite estava quase no fim, mas eu iria sentir qualquer coisa próxima da paz quando me afastasse dali e não pudesse ver mais aquela mulher, seus olhos opacos e suas pernas manchadas.
    O primeiro homem deu partida no veículo. Quando já estávamos a alguns metros do bar, olhei para trás. Um carro parado no mesmo local onde estávamos havia poucos segundos, e pude observar a velha gorda debruçada na janela, palestrando com motorista, como se empenhada em uma negociação. Um pouco atrás dela, a mulher estava parada, imóvel, como se esperando o resultado da conversa. Claro que eu não podia distinguir seus olhos, mas meu deus, eu tinha certeza que eles estavam ainda mais mortos do que antes.



Imagem: Munch

29 outubro 2013

Ilha


















Cefas Carvalho



Uma ilha para mim

e nada mais



Longe dos cães, do caos

Das  novenas, dos castiçais



Em Pasárgada, Atlântida, Xangri-lá

Em sonhos, profundezas abissais



Sem deuses, responsos, missais



Uma ilha – deserta- para mim

e nada mais




Imagem: Claude Monet

26 setembro 2013

Combustão

Cefas Carvalho
 
Que chama é essa
que inflama e alastra...
Consome e não aquece?
Que estremece
as pilastras...
Que acende a fogueira
onde o cordeiro
é imolado...
Sem o profano
e sem o sagrado
nem divinos,
nem pagãos...
O derradeiro
unguento derramado
Destilado
em teus vãos..
.


Imagem: Óleo de Christan Schloe

15 agosto 2013

Admirável Mundo Novo!

Cefas Carvalho

Café sem cafeína. Casamento sem amor. Cerveja sem álcool. Sexo sem tesão. Feijoada sem toucinho. Refrigerante sem açúcar. Bronzeamento artificial. Churrasco sem gordura. Cigarro sem nicotina. Hambúrguer de soja. Miojo lámen. Faroeste sem tiroteio. Aromatizantes, eufemismos, conservantes, photoshop, silicone, adoçantes, maquiagem, botox, enchimentos, filtros, meios-termos, isso faz mal... não era bem assim... você entendeu errado... olhe o colesterol... 



Imagem: Clement Michele 
 

30 julho 2013

Tormenta


















Cefas Carvalho

Desejo meu
corpo violentado
pela tempestade

Mutilado por temporais
chuvas torrenciais...

Quero minh´alma
Afogada
Pelo dilúvio de Noé
(embriagada de
vinho tinto)

Misturada com azeite
Manjericão, orégano...

Quero que a tormenta
Afogue-me, me jogue
Aos leões pela manhã

Ser devorado com mel
Com ameixas, hortelã...

...


Ilustração: "Naufrágio", de William Turner

13 junho 2013

A Bela da tarde

Cefas Carvalho

Como se flutuasse, em vez de pisar no chão rude do bar, Ela andou em minha direção com o meio sorriso habitual e os olhinhos misteriosos que pareciam sempre fechados. Sentou-se à minha frente murmurando um boa tarde quase imperceptível. Havia cortado o cabelo, sim, eu percebera, estava naquele momento com um corte estilo chanel, com pontas em forma de onda se adiantando para a frente. Parecia uma francesa, não obstante a pele morena. Tamborilou os dedos na mesa – sinalizando que estava mais nervosa do que gostaria – e perguntou como eu estava. Bem, respondi apenas, também sorrindo.
Ela sorria como se jamais tivesse sorrido antes daquele jeito para ninguém, para pessoa alguma. Mas, Ele sabia que ela já mostrara seus encantos para outros homens, tinha consciência de que sua natureza – feita para amar – fazia com que corpo e alma conspirassem em encontrar amor. Talvez isso fosse o que mais o atraía Nela.
Ela começou a falar do dia, da vida. Relatou alguns problemas, contou algumas banalidades. Falou sobre o tempo, chuvoso. Entre uma conversa e outra, sorria, como se fosse devorá-lo.
Ele sabia que iriam para a cama e sabia que ela não apenas sabia disso mas que era seu desejo maior, mas, fazia parte da mágica não conversarem sobre o assunto e, mais que isso, se comportarem como amigos que há muito não se viam ou como quem acabasse de se conhecer. Ele propôs um vinho tinto, mas Ela preferiu cerveja, menos sofisticada e mais parecida com o espírito Dela naquela tarde.
Ela a chamava de Bela da tarde, pela razão simples – e nada poética – de que como ela trabalhava pela manhã e à noite, tinha apenas a parte da tarde para os encontros amorosos. Ele, morava em outra cidade, também não poderia se estender até a chegada do luar. De maneira que fizeram das tardes seu ninho de amor.
Sabiam que, se desejassem, poderiam iniciar um relacionamento (eram ambos solteiros), mas, por razões além da razão, gostavam que fosse daquela forma e sem dizer uma palavra sobre o tema, haviam convencionado que seria daquele jeito – sempre às tardes, sempre de maneira suave e fortuita – até que um dos dois se cansasse do jogo.
Ele sabia que a prova maior, se não de amor, mas de algum tipo especial de afeto, que ela lhe dava, era o fato de permitir que ele lesse suas poesias e contos. Professora por ofício, possuía uma alma de poeta que lhe consumia as estranhas, por vezes. Lendo as poesias Dela, ele percebia quantos vulcões aparentemente extintos estavam pestes a entrar em erupção naquela alma. Alguns versos chegavam a assustá-lo, mas, quando levantava os olhos das folhas de papel ofício e se deparava com aquele rosto suave, se perguntava o quanto é possível alma e corpo ilustrarem tantas diferenças.
Ela segurou a mão dele e confessou que  sentiu saudades. Por que não me telefonou, para que nos encontrássemos?ele perguntou. Não era o momento. Preferi esperar a tarde de hoje, na data que havíamos marcado. Ela sorriu novamente e Ele pensou em pedi-la em casamento. Ela sabia que, por alguma razão, jamais ficariam  realmente juntos, mas, também tinha certeza que da forma que viviam, jamais se separariam.
Quer beber outra cerveja?, perguntou Ele. Não. Quero agora ser a sua Bela da tarde, respondeu, com um sorriso de carne. Ele suspirou, oscilando entre o desejo que lhe queimava como um carvão em brasa e uma pontada de dor, que sempre sentia quando se preparavam para os jogos amorosos, talvez por  saber que, depois, se separariam.
Pagou a conta, levantou-se e estendeu a mão para Ela, que a segurou com força. Sorriram um para o outro e saíram lentamente do bar.


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Imagem: Modigliani
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