23 dezembro 2011

O desespero diante da página em branco

Cefas Carvalho

Acordei antes das oito, segui os mesmos velhos rituais – o banho, fazer a barba, suco de laranja, cortar as unhas – e me lancei em frente à tela do computador (também ele cheio de rituais; inicializar, lançar sons, abrir “janelas”, comunicar que o antivírus está instalado...) na tentativa de escrever o texto que me fora pedido.
Na verdade, eu já o havia iniciado. Dispunha do primeiro parágrafo já pronto, o conceito já definido e os “ganchos” para unir começo e fim, como manda o manual de uma boa redáção, se é que existem regras para uma boa redação. Enfim, o texto era um feto já gerado, vivo, esperando apenas o mínimo necessário para crescer e vir ao mundo.
Contudo, a mente não produzia o alimento deste feto e os dedos tamborilavam a fórmica da mesa do computador, esperando a convocação para transformarem idéias em letras, palavras, frases, mas, era inútil.
Percebi que o branco da página do Word, no computador, é ainda mais solitária e assustadora que a papel de celulose. É um branco brilhoso, de onde irradia uma luz esquisita. Isso sem falar que, durante o “branco mental” é fácil recorrer à Internet, música, imagens, tudo que prejudica o oficio de escrever, enfim.
Mantive a calma, desliguei o computador e recorri a uma velha amiga, a folha de papel ofício A4, companheira de tantas noites febris nos tempos em que o computador parecia um devaneio dos filmes norte-americanos. Armado com a fiel escudeira que era a caneta Bic cor azul, tratei de macular o papel com rabiscos, na esperança de que, pela magia do contato da tinta da caneta no papel, as idéias transformassem em um texto. Mas, nada. Nada além de palavras soltas, frases desconexas, cubos desenhados em terceira dimensão e jogos da velha onde eu enfrentava a mim mesmo. Retomei ao truque velho de escrever o próprio nome, várias vezes: Cefas, Cefas, Cefas, depois a assinatura, tal qual no documento de identidade, e depois a forjar assinaturas. Amassei o papel e retomei à suposta seriedade para enfrentar a folha em branco.
Decidi recorrer à sabedoria alheia. Quem sabia se escrevendo pensamento e idéias de meus heróis, a inspiração não viria por osmose. Rabisquei sentenças de Shakespeare, frases de Platão, versos de Pessoa e, claro, máximas sarcásticas de Oscar Wilde. Por mim, perdi-me em letras de canções de rock até chegar a hai kais pavorosos da época em que eu tentava ser poeta. Voltei à página em branco – outra, claro – e recordei que, salvo engano, Rubem Braga havia escrito uma crônica sobre a mesma falta de inspiração.
Como seria com as outras pessoas? Outros sentiam o mesmo desepero que eu diante da folha em branco ou, diante disso, dariam uma gargalhada e se dedicariam a atividades tais como assistir um programa de TV ou ir a um shopping fazer compras?
Uma idéia me surgiu e quando lancei mão da caneta para, enfim, macular a folha em branco, parei como se acometido de uma idéia tresloucada. Havia uma vontade mórida em mim de que a folha continuasse branca – cor de pureza e da inocência – sem a intromissão da caneta, uma vez que a tinta fixada no papel se assemelhava a uma violência. Uma violência quase filosófica, posto que era irreversível (claro, é possível amassar ou queimar uma folha de papel, e uma borracha de qualidade pode apagar a tinta, mas, a folha branca original, jamais volta a ser o que era após a caneta trabalhar em sua superfície).
Debati-me uma vez mais na intenção de produzir alguma coisa, escrever nem que fosse apenas um parágrafo, quiçá uma frase, que sequer precisava ser genial, bastava apenas ter sentido.
Foi quando o texto desceu sobre mim como o Espírito Santo sobre um cristão devoto e a caneta – guiada pela mão direita nervosa – começou a trabalhar no papel...


(Texto originalmente publicado na coletânea de crônicas "Travessa da Alfândega" - organizador: José Correia Torres Neto. Selo Caravela)

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23 novembro 2011

Morrer, talvez sonhar

Cefas Carvalho

Decidira morrer. Era simples assim. Não havia metáfora em sua decisão, nada de angústias existenciais, crises religiosas, nada de metafísica. Tampouco sofria com traumas de infância. Fora uma criança feliz na medida do possível. Não, também não havia um amor não correpondido, uma mulher fatal pela a qual valia a pena morrer.
Era uma decisão racional, portanto. Considerou que a vida já havia lhe dado tudo que poderia desejar e merecer e que tivera seu quinhão de alegria e dor em medidas exatas e que nada mais havia a fazer neste mundo (e na verdade, em nenhum outro, posto que desconfiasse com uma quase-certeza que nada havia além do pó deste mundo).
Tomada a decisão, se deteve na maneira de fazê-lo. Nada de decisões que resultassem em sangue e carne deformada como um tiro na boca ou no ouvido. Não queria ninguém limpando paredes cheias de seu sangue. Nada de posturas igualmente melodramáticas, como o enforcamento. Pensou no gás. Talvez na ingestão de um veneno indolor. Sonhava em morrer dormindo. Neste caso, a morte poderia chegar tal qual um sonho.
Indeciso, deixou que os dias passassem e, como já se acostumara a despedir-se deste – único – mundo, passou a ver as coisas com outros olhos, talvez mais complacentes, nostálgicos. De maneira que em uma ensolarada manhã de segunda-feira, em pleno centro da cidade, após ter tomado um café forte e com pouco açúcar, decidiu que não desejava mais morrer. Simples assim. Talvez a vida ainda tivesse o que lhe oferecer (de dor ou prazer) e sentiu-se subitamente forte para viver o tempo que lhe fosse dado.
Enebriado com a nova decisão, atravessou a rua rumo ao carro e não percebeu a caminhonete. Sentiu um impacto, ouviu um barulho estranho e alguns gritos (seus? De outros?) e o quebrar dos ossos das pernas. Percebeu que não conseguia movimentar a cabeça. Quero viver, balbuciou, inutilmente, mas já coneçando a sonhar.
Morreu a caminho do hospital.

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16 novembro 2011

Estrelas

Cefas Carvalho

Estrelas não brotam do chão
Estrelas não nascem em árvores
Estrelas enfeitam telas de Van Gogh
Estrelas são cadentes
Para se aninhar em seus cabelos...

Estrelas não desafiam a lei de Newton
Estrelas não colidem entre si
Estrelas abrilhantam cartões de natal
Estrelas são dementes
Quando refletidas em seus olhos...

Estrelas, em suave delírio, pousam
Em sua íris
Fazem de seu olhar, a Ursa menor
Alfa centauro, Cruzeiro do Sul...

Você estrelas...Cadente...Vaga...

Olhos de constelação

04 novembro 2011

No calor na batalha

Cefas Carvalho

Se a batalha se mostra lenta e bruta
E a vitória tão distante quanto o céu
Cabe o silêncio diante do escarcéu
E persistir quando nos cabe a luta

Se o inimigo invade o teu quartel
Se és forçado a ingerir cicuta
Não deixe que nenhum filho da puta
Te transforme em carrasco ou réu

É no calor da guerra tão renhida
Que surge o homem forte que devias
Ser. Que se perde em mornos dias...

Eis que a batalha não está perdida...
Defenda teus castelos de areia
Enquanto osangue corre em tuas veias

17 outubro 2011

Presente

Cefas Carvalho

Esqueça mimos, galanteios,
adornos, mimoseios
Esqueça mesuras, fricotes
badulaques,decotes
Esqueça carteiras, gravatas
cintos, bravatas
Esqueça o camafeu,
O afago, o bombom
Presenteie-me, amor meu
Com um Saramago,
Ou um Drummond...

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14 setembro 2011

Quarteto-ode (quase infantil) ao amor em terras lusitanas

Cefas Carvalho

Amar sem mágoas, ao som
Das águas do Tejo
Ouvindo fados...
Fadados a fazer amor...

Suores de vinho do Porto
Fadigado, morto
De amor, de desejo...
Tudo impresso no azulejo...

Navegar em um oceano
De saliva... Lábios
Em carne viva, na Alfama...
(Como quem ama...)

Amores carnais
Em Estoril, em Cascais...
No Chiado, o último fado!
Do amor que morre em paz...

24 agosto 2011

Uma mulher com cabelos de fogo

Cefas Carvalho

Contava eu dezenove anos, se muito, mergulhado naquela idade contraditória quando às vezes acordamos sentindo que podemos mudar o mundo e no dia seguinte, dormimos como se fôssemos estrangeiros em nossa própria casa. No dia em questão, tratava-se de uma manhã ensolerada de quarta-feira daquelas que eu acreditava com todas as minhas forças que poderia incendiar o mundo. Havia conseguido um emprego em uma agência de publicidade dias antes, estava cursando filosofia na Universidade Federal e plenajando sair de casa (por mais que amasse meus pais, eles representavam o “sistema” e eu estava na fase ingênua e necessária de combater esse “sistema”) de maneira que caminhava na praça central com uma despreocupação arrogante e um sorriso de conquistador de impérios em meu rosto.
Foi quando parei para olhar a estátua central da praça que a vi, sentada em um banquinho no meio da praça, ao lado da fonte. Em principio chamou minha atenção porque tinha imensos cabelos vermelhos, quase que de fogo. Depois percebi seus muitos outros encantos; olhos imensos e melancólicos entre o preto e o castanho, um meio sorriso que poderia tanto felicidade como sofrimento.
Olhou-me de repente e me envergonheii de ter parado para observá-la. Decidi continuar o caminho, quando surpreendentemente ela me chamou.
- Ei, você tem um cigarro?
- Não fumo, lamento...
- Eu também não. Mas, agora, estou louca por um cigarro.
- Entendo...
- Não acontece com você, de querer fumar de repente, como se seus problemas fossem embora junto com a fumaça?...
- Acontece sim... – menti.
- Posso pedir um favor.
- Claro
- Me faça companhia durante meia hora. Somente trinta minutos.
Assustei-me com o pedido. Encantado por ela como eu estava, claro que ficaria com ela, trinta minutos, duas horas, o dia inteiro. Mas, não podia ignorar o insólito da situação. Lindas mulheres com cabelos de fogo não sentavam em bancos de praça e convidavam estranhos para ficar meia hora com elas.
Mas, sentei-me ao seu lado, com um pouco de receio, confesso. Ela pareceu ter lido meus pensamentos, pois sorriu de verdade e passou a mão em meu cabelo.
- Não se preocupe. Não sou uma louca, nem uma aventureira e nem vou te fazer mal algum. Quero apenas que fique ao meu lado durante o tempo em que te falei...
Ainda desnorteado, concordei. Tentei fazer algumas perguntas (nome, idade, onde morava) mas, com elegância e algum humor, ela conseguiu não responder nenhuma delas e decidiu contar uma história. Sobre uma menina que fugiu de casa e acabou em um lugar como uma floresta, onde teve de fugir de seres bestiais, como dragões, e espíritos maus. Uma história sem pé nem cabeça, mas contada com tanta suavidade que não teria como não me encantar.
- Agora é sua vez de contar uma história.
- Eu? Não sei contar histórias...
- Bobagem, todo mundo sabe contar histórias. Vamos lá, por favor.
Com algum custo, consegui me lembrar de um conto russo que havia lido havia tempos, sobre um senhor e um servo que viajavam na neve de trenó e percebiam que a relação de poderes se invertia com os problemas e privações. Embora imperfeita, ela adorou a história e me pediu outra. Respondo que só contaria uma nova história se ela dissesse seu nome.
- Não vale impor condições... – sorriu, melancolicamente – Mas, já que você quer assim... me chame de Moira.
- Moira... – repeti, inicindo uma nova história, desta vez bem humorada, sobre um homem pobre que pensa ter ganhado na loteria e imagina o que faria com a fortura a receber. Claro que ele não ganhou e a história termina com sua decepção e consciência de sua triste realidade. Moira riu e contou mais uma história, desta vez sobre um amor impossível na idade média. Eu já estava me acostumando com aquela troca de histórias e me perguntava sobre como manter aquele momento indefinidamente quando ela olhou para o relógio na praça. Havia passado a meia hora.
- Obrigado pela companhia, mas tenho que ir.
- Mas, não podemos ficar mais um pouco?... – pedi, quase implorando.
- Realmente tenho que ir – sorriu – Obrigada por me suportar neste tempo...
Preparei-me para dizer que, pelo contrário, fora a meia hora mais sublime da minha vida, mas tive medo de ser piegas e estragar tudo. Limitei a me perguntar se nos veríamos novamente.
- Quem sabe não nos encontramos por acaso neste mundo...
Propus trocarmos telefone, marcarmos tomar um café em algum lugar, mas, ela sorriu em negação: - É melhor, não. Nem queira saber porquê. Mas, saiba que esta hora que você passou comigo pode ter salvado a minha vida...
Arrumou a alça da bolsa no ombro e se foi, com o mesmo sorriso ambíguo que eu havia notado no início. Andava rapidamente com os cabelos de fogo balançando ao sabor do vento. Sentei-me no banco para pensar no que havia vivido quando reparei, ao lado da minha perna, uma lâmina pequena, como se tirada de um aparlho de barbear. Olhei ao longe, mas Moira já havia desaparecido do meu campo de visão. Guardei cuidadosamente a lâmina no bolso de minha jeans e levantei-me para tocar meu dia, com a imagem da linda menina de cabelos de fogo e a sensação de que, de alguma insólita maneira, eu havia, sim, salvo uma vida.



25 julho 2011

Era Poeta...

Era Poeta...de todas, a mais bela
De seus versos fiz meu pão e fiz meu vinho
Com régua e compasso fiz meu caminho
Da aquarela de teus olhos fiz minha tela

Era Poeta...envolta em seda e linho...
Ares de Safo, Cecília e Florbela...
Em devaneios, abri uma janela
E mergulhei em seu mar azul marinho

Mas, e agora? Tão pouca coisa aconteceu...
Sem poesia e tão mornos os dias passam
Não eras Julieta nem eu o seu Romeu

Onde irá levar-nos essa vida louca?
Se meus versos e seus versos não se enlaçam...
Se quero escrever sonetos em tua boca...

04 julho 2011

A Biblioteca Sagrada da Minha Mente

Cefas Carvalho

Por força de circunstancias que não pretendo relevar ao leitor curioso (que leitor não é curioso?) fiquei temporariamente afastado de minha Biblioteca. A princípio a separação dos meus livros me doeu na carne, acostumado que era a qualquer momento consultar algum deles ou simplesmente contemplá-los imperais, harmoniosos, arrumados verticalmente nas estantes de madeira.
Contudo, passados alguns dias longe da minha Biblioteca (sempre com B maiúsculo, como vaticinava mestre Borges, sábio maior desta entidade mágica e sagrada denominada biblioteca) a dor amainou. Não que a paixão (ou amor) pelos meus livros tivesse desaparecido com a, distância (como acorre com tantos amores ditos eternos...) mas sim pela descoberta, ou percepção (talvez revelação) que minha Biblioteca na verdade não é algo apertas físico, mas que existe prioritariamente em minha mente. Ela não precisa estar perto dos meus olhos para existir. Ela existe em mim. Pra levar o raciocínio metafisicamente mais longe, minha Biblioteca só existe porque eu existo; eu morrendo, a Biblioteca também não mais existirá.
De forma que a revelação fez com que eu veja e sinta meus livros a toda hora, estando em num há nova casa ou não. Consigo visualizar cada um dos meus... livros (leitor curioso, não importa o número de livros de uma Biblioteca, oito ou oitenta mil, o que importa é a relação - necessariamente doentia - entre o leitor-dono e a Biblioteca) O raciocínio apresentado entre os parênteses acima leva à constatação de que a minha Biblioteca só existe enquanto minha, posto que foi a aquisição particular de cada dos livros que a compõem que a torna uma Biblioteca. Ou seja, minha Biblioteca mãos alheias não passará de um amontoado de livros. Da mesma maneira que a Biblioteca de Câmara Cascudo só o era enquanto ele estava vivo e tomando viva a sua Biblioteca. Após sua morte, a Biblioteca de Câmara Cascudo passou a ser uma peça de museu, estática, pois que ninguém mais poderá acrescentar um livro nela. Idem com a biblioteca do felizmente ainda vivo José Mindlin. Sua Biblioteca só existe porque ele existe. A morte do primeiro acarretará na morte da Biblioteca enquanto ente sagrado, vivo, dinâmico.

Contemplando com os olhos sempre argutos da mente a minha Biblioteca, evoco livros que só existem como o são para mim. Como o exemplar de "O Jardim do Éden" de Hemingway, comprado em um sebo da avenida Ipiranga, quando eu morava em São Paulo no micro dos anos 90 Como não identificar o triângulo amoroso do livro com aqueles dias chuvosos e com a fumaça paulistana? Cada vez que leio o livro - e o fiz várias vezes - evoco aquele sebo (qual o seu nome? Não lembro...) e aquele período de minha vida.

Vejo com minha mente meu exemplar de "OS demônios de Loudun", de Huxley, comprado há meia década no Sebo Vermelho, de Abimael. Capa brega, livro quase caindo aos pedaços, mas cheio de marcações dos antigos donos e lido em uma época admirável da minha vida.

Vejo ainda outros livros. Possuo - três exemplares de “Dom Casmurro”, um deles, mais recente, de capa dura, mas para mim Capitu é mais Capitu e Bentinho mais Bentinho quando leio a edição da Ática em papel jornal comprada na livraria Universitária ainda nos anos 80, com papai ainda vivo. Salvo engano, compramos o livro, cujo nome me parecia enigmático, lanchamos na finada Lojas Brasileiras, fomos ao Café São Luiz, onde eu podia assistir a papai em ação com suas anedotas e gargalhadas e por fim, fomos para casa onde comecei a ler a obra prima machadiana. Claro que aos onze anos não entendi todas as nuances, mas o livro, de capa preta com um desenho multicolorido, ainda está nas minhas Bibliotecas (a real e a da minha mente).
Nesta Biblioteca da minha mente estão ate mesmo livros que já se foram É o caso de “O homem que olha”, de Moravia, que emprestei para meu amigo Cláudio em 1989 e ele perdeu em um bar durante uma bebedeira. Mas, para mim, o livro continua lá nas estantes ao lado de “1934” A romana e “A ciociara”. E se tiver que recuperá-lo, quero que seja da mesma edição da Nova Fronteira com a mesma capa azul e branca. Vejo também na minha estante o clássico hardcore “Albertine no inferno”, que está há um par de anos em poder da amiga jornalista Vilma Torres (desculpe a cobrança publica, mas para recuperar livros como no amor e na guerra vale tudo!) Ah, os livros emprestados que jamais voltaram para a Biblioteca... filhos queridos que se foram... que os amigos me perdoem, mas como alertou Cid Augusto em um artigo ladrão de livros vai para inferno...
Continuo de olhos fechados então e navego na minha Biblioteca sagrada, nas marcações que fiz com marca texto (geralmente cor laranja) nos endereços e telefones riscados nas páginas em branco dos livros, nas notas fiscais esquecidas dentro de exemplares. Velejo no mar dos poetas que admiro Pessoa, dos Anjos, Castro Alves... e me afogo nos versos das poetas por quem sou eternamente apaixonado (Cecília, Florbela, Zila, sempre elas ) e me perco nos braços e olhares de Capitu Oriane deGuermantes, Diadorin Lady Brett Ashley. Por fim me vejo da Biblioteca de Babel, hexagonal, sagrada, labiríntica, como escreveu Borges, que sem ver, a tudo via.
Acordo do sonho então, satisfeito como quem acorda de um noite amor carnal. Minha Biblioteca pode até ser incendiada, como aconteceu com a de Alexandria, mas jamais terá fim, por estar sempre dentro de mim. Em nome de Jorge Luis Borges amém!

(Texto publicado originalmente na Revista Papangu em maio de 2006)

21 junho 2011

Afrodite

Cefas Carvalho

Para meu deleite e minha desgraça, devo dizer que, sim, eu me lembro bem de tudo. Começou em uma tarde cinzenta de agosto, quando, desgostoso com a vida e com mim mesmo, procurei refúgio nas areias da Praia do Meio, sentado próximo à estátua de Iemanjá. Foi quando a percebi, olhar pedido no horizonte, sentada a alguns metros de mim, também na areia.
Estava com os joelhos à barriga e os braços segurando os joelhos. Olhava o horizonte com o mesmo desespero que eu julgava existir no meu olhar. Foi o que me atraiu, a princípio. Segundos depois, percebi o quanto era linda, com os cabelos castanhos, imensos, caindo sobre o rosto de menina em um corpo de mulher, para usar de um clichê. Subitamente, uniu os braços em concha e abaixou a cabeça, como se chorando. Movido tanto por compaixão como pela atração que senti, aproximei-me dela, e, ganhando coragem, perguntei:
- Algum problema?
- Muitos problemas... – respondeu, levantando a cabeça. Não chorava, mas parecia desesperada. Sentei-me ao lado dela.
- Qual o seu nome? – indaguei.
- Não me lembro – respondeu
- Como assim? – estranhei.
- Não lembro meu nome. Não lembro onde moro... não lembro de nada...
Parecia estranho, mas pelo seus olhos percebia-se que ela não estava brincando. Uma linda menina que perdeu a memória, pensei.
- Você não tem uma carteira, identidade, um celular, nada que possa dar uma pista...
- Tenho apenas a roupa do corpo. E não tenho uma só lembrança de absolutamente nada. Não sei se moro com meus pais, se sou casada, menina de rua... É como se eu tivesse acordado aqui na Praia do Meio.
- Vamos brincar de detetives... sorri – Se você sabe o nome desta praia e chegou sem ajuda até aqui é porque mora em Natal. Se você fosse casada, teria uma aliança na mão esquerda ou pelo menos uma marca e não estou vendo nada disso – analisei, pegando suavemente sal mão – Quanto a ser menina de rua, esqueça. Pelas roupas, percebe-se, você é de classe média.
- Você é mesmo um detetive... – divertiu-se, rindo pela primeira vez desde que a abordei. Contudo, a situação não convidava a risos. Urgia decidir o que fazer com aquela menina desmemoriada. Procurar a polícia? Leva-la aos jornais?
- Que tal rodarmos pela cidade para ver se você se lembra de algum lugar. Talvez a visão de um local que lhe seja importante faça sua memória voltar.
Hesitante, mas sem muitas opções, ela aceitou a insólita proposta, que, não nego, também tinha como objetivo, além da ajuda, fazer com que passássemos mais tempo juntos. Desnecessário registrar que eu estava mais que atraído pela bela desconhecida. Estava me apaixonando rapidamente. Olhei o relógio: eram treze e meia, e às catorze horas eu deveria estar na agência de propaganda onde trabalhava como arte-finalista. Não hesitei em tomar uma decisão: telefonei para a agência dizendo que desmaiei na rua e que amigos estavam me levando para um hospital.
- Você não consegue nem lembrar seu nome? Cláudia? Vanda? Tatiana? Maria? Eduarda?
Ela riu, para, segundos depois, deixar uma névoa escura atravessar sua expressão: - parece engraçado, mas não consigo lembrar mesmo... – e começou a chorar. Colhi seu rosto em meu ombro – Tenho que inventar um jeito de te chamar. Enquanto você não lembra seu verdadeiro nome, vou te chamar de Afrodite, está certo?
- Afrodite... – repetiu
- A deusa grega da beleza. Afinal, você parece tão bela quanto ela...
Envergonhada, baixou os olhos. Parecia sorrir, apesar da sua situação. Mas eu não queria que se entristecesse. Puxei-a pela mão.
- Vamos para Ponta Negra. Talvez algo por lá clareie a situação.
Sentados na areia, ficamos conversando horas a fio. Isto é, tentamos um arremedo de conversa, posto ser virtualmente impossível conversar com quem não tem o que contar. Mas ela sabia, sabe-se lá como, algumas piadas sujas, e afirmava amar algumas músicas clássicas, embora não soubesse o nome delas, apenas assobia-las.
Desta forma o tempo foi passando e subitamente, atentei que já anoitecia. - Que tal irmos para o Natal Shopping? – propus.
Pegamos um ônibus e o vento no rosto a fez sorrir melancolicamente.
- Não me lembro de já ter feito este passeio, mas esta sensação de liberdade, me é familiar...
Bebemos alguns chopes. Ela quis uma caipirinha. Quando dei por mim já eram quase dez da noite. O shopping iria fechar e teríamos de fazer alguma coisa.
- Quer recorrer à policia? – perguntei.
- Quero ficar com você... – respondeu – mas sei que você deve ter que ir para casa...
- Eu adoraria leva-Ia para casa, mas meus pais são complicados...
- Não tem problema, eu me viro...
Claro que eu jamais a deixaria sozinha naquelas circunstâncias e armado de toda a coragem, propus passarmos a noite em um hotel na Cidade Alta. Para minha surpresa ela concordou com a idéia. Após telefonar para meus pais e informa-los que eu dormiria na casa de um amigo, rumamos para o centro. Tentei leva-la para o Beco da Lama ou para o bar Amarelinho, para mais uma cerveja, mas ela argumentou que estava cansada. Fomos para o hotel, velho, decadente, mas barato e estranhamente luminoso.
Uma vez no quarto, eu não sabia exatamente o que fazer. Afrodite foi quem quebrou o gelo. - Estou louca para tomar banho... -sorriu. Depois que ela saiu do banheiro, foi minha vez de entrar debaixo do chuveiro. Nervoso, saí de toalha e a flagrei também enrolada na toalha penteando os cabelos.
- Encontrei um pente na escrivaninha...
- Que bom... - comentei, sentando ao lado dela na cama de casal. Preocupado, tentei explicar para ela como seria nossa noite. - Eu posso improvisar estes lençóis no chão para que você durma na cama.
- Por que isso?
- Não quero que você pense que eu me aproveitaria de você.
- E se eu me aproveitar de você?... - riu, encostando os lábios em minha orelha. Fechei os olhos, e senti sua boca na minha, depois sua língua caçando a minha... deitamos, na cama e minha deusa fez jus ao apelido que eu lhe dera...
No dia seguinte, despertamos juntos, e se durante alguns segundos vivi o torpor de quem acredita estar em um sonho - aquela mulher linda e nua deitada ao meu lado – logo me lembrei da situação insólita que vivíamos.
- Lembrou de alguma coisa?
- Só da noite de ontem... - sorriu - E do que fizemos durante o dia. Quanto ao resto, não me lembro nem do meu nome...
Continuávamos na mesma, então e decidi tirar outro dia de folga para curtir à cidade ao lado dela e à noite leva-Ia ou à Polícia ou a algum jornal. Passei no banco, tirei quase todo o dinheiro da minha conta e iniciei nosso programa: Redinha, depois Litoral Sul, Pirangi, Pium... Éramos um casal em lua de mel, enfim. Por volta das cinco da tarde, fomos à última etapa do passeio, o rio Potengi, assistir ao por do sol. Em frente ao espelho d'água, ficamos olhando o horizonte, quando ela confessou que uma tristeza imensa a invadira.
- Por quê? - perguntei
- Não sei, mas é como se não fôssemos nos ver mais... - murmurou.
De repente, um estranho vento se fez presente, nos encharcando de poeira. Tirei os óculos para tentar tirar os ciscos nos olhos, operação que não durou dez segundos, se muito. Quando recoloquei os óculos, percebi que estava só. Olhei para todos os lados, e nada. Onde estava Afrodite? Era como se ninguém tivesse estado comigo. Perplexo, olhei para a lagoa. Sua superfície estava limpa, contudo, bem à frente da margem me pareceu ter visto uma leve movimentação, como se alguém estivesse nadando, suavemente, por baixo da água. Tolice minha, pensei. Procurei Afrodite nas imediações, perguntei por ela em bares e lanchonetes próximas. Inútil. Minha Afrodite havia desaparecido tão misteriosamente quanto havia surgido em minha vida. Teria se jogado, sem barulho, sem alarde, nas águas poéticas do Potengi? Seria uma sereia retomando ao lar? Um anjo que retomara para o firmamento? Ou tudo não passara de minha imaginação? Jamais o saberei. De qualquer maneira, isso aconteceu há anos, e até hoje não se passa um dia em que eu não vá até à margem do rio Potengi na esperança de revê-la...

02 junho 2011

Falas em fantasias

Cefas Carvalho

Falas em fantasias...devaneios...
Queres sempre mais...jamais sossegas...
Corres em teus sonhos sempre às cegas...
Não sabes mais onde estão teus freios...

Citas frases feitas sem ser piegas...
Queres que eu declame em teus seios...
Faz joça de todos meus receios...
És louca de pedra... e não negas...

Voltaste às fantasias... adereços...
Trocas de cores... preto... vermelho...
Linhos finos... cetim... véus espessos...

Mais fantasias... outros ambientes...
Velas... acessórios... um espelho...
Meu corpo como alvo de teus dentes...

18 maio 2011

Lázaro

Cefas Carvalho

Tiraste-me do sepulcro
Levantaste-me das catacumbas
Despertaste-me do sono eterno

Ergueste-me de entre os mortos
Fizeste-me retornar à vida
Trouxeste-me de volta à luz

Fizeste de mim o teu Lázaro
Forjado para louvar o teu nome
Lapidado para viver por ti

Esquecestes... que eu queria partir
Ignorastes que entre os mortos era meu lar
Não percebestes que morte... Era minha vida!

11 maio 2011

Armagedom


Cefas Carvalho

Era o deus colérico a me perseguir
Em meu tortuoso caminho de Damasco?
Ou o demônio, vil, a espargir
Água amaldiçoada com fel e asco?

Seria o Armagedom, a, solene surgir
Em um arrebol de fúria e de som?
Ou o Paraíso de Milton a explodir
Em um surreal arco-iris marrom?

Era o demônio a chegar sorrateiro
Em uma nuvem de enxofre e carbono?
Ou o calor fantasmal do candeeiro
A transformar em inferno o meu sono?

Eram querubins a, com trombetas, anunciar
O Juízo Final a chegar finalmente?
Ou nada mais que outro dia a raiar
No lirismo banal de um sol nascente?

06 maio 2011

Coração

Cefas Carvalho

Ele, apaixonado ao extremo. Passional, verborrágico. Ela, bela e distante, deusa grega em mármore. Eu amo você - repetia ele – Você manda em meu coração! Ela resmungava: É mentira sua... Até o dia em que ela decidiu fazer o teste. Ordenou que o coração dele parasse! Ele sentiu o corpo gelado e, subitamente, caiu morto ao chão.

04 maio 2011

A Biblioteca de Babel (e de Borges)

Cefas Carvalho

Tenho uma relação obsessiva, doentia mesmo, com os livros e com a entidade sagrada Biblioteca. Como Borges, um dos heróis do meu panteão de ídolos (Hemingway, Maugham, Gide, os franceses....). Borges escreveu um conto maravilhoso chamado “A Biblioteca de Babel” (presente no livro “Ficções”) na qual fala deste febre que algumas pessoas tem em relação aos livros e às Bibliotecas. Tanto quando a leitura em si, gosto da sensação da posse de um livro, de marcá-lo, do momento em que, devidamente lido, ele vai repousar na Biblioteca.. Tenho dificuldade em ler livros emprestados por não antever o momento em que voltarão para as estantes, por não saber com que outros livros se acompanhará. Exceção feita para leitura de livros em Bibliotecas, algo que o pouco tempo e o stress não me deixam mais fazer. Mas, recordo com prazer dos tempos em que eu e amigos como Paulo César, nos anos dourados da adolescência, desbravávamos corajosamente as estantes da Biblioteca Câmara Cascudo, sob a complacência das bibliotecárias. Lembro com maior nitidez de quando encontramos uma raridade, o “Michael Kolhaas”, de Henrich Von Kleist. Também é doce a lembrança das tardes cariocas também adolescentes que passava na Biblioteca do MEC e na mítica Biblioteca Nacional, na Cinelândia. Ah, o gigantismo da Biblioteca... Não que eu tenha uma Biblioteca quantitativamente grande, mas não é isso que importa, como vaticina o mestre argentino, mas a relação que se tem com a Biblioteca. Segundo Borges no citado conto, “ a Biblioteca é interminável...um número indefinido e quiçá infinito de galerias hexagonais...” Neste texto delicioso, Borges assinala algo que suspeito desde tenra infância: “Nalguma estante de algum hexágono deve existir um livro que seja a cifra e o compêndio perfeito de todos os demais; algum bibliotecário o consultou e é análogo a um deus”. A idéia de um livro que contenha todo o conhecimento humano (A Biblia? O Corão? O Mahabratara? A obra completa de Shakespeare? Dom Quixote? Grande Serão: Veredas?) em um só me fascina até hoje. Este livro estaria guardado na Biblioteca sagrada, que, como escreveu Borges, sempre existirá, pois que “suspeito que a espécie humana – a única – está por extinguir-se e que a Biblioteca permanecerá: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.”

25 abril 2011

Semana Santa

Cefas Carvalho


Sexta-feira da Paixão


Cristo morreu pelos meus pecados. É o que dizem. Sempre detestei esta afirmação, como detesto qualquer coisa que tenha a ver com o não-visível. Não quero que ninguém morra pelos meus pecados. Dos meus pecados cuido eu. E meu pecado maior naquela sexta-feira maldita foi ter deixado Clarissa ir embora. Ou será que eu quem a mandei embora? Talvez as duas coisas. Só recordo que a vi jogando algumas roupas na mochila velha e sair de casa batendo ruidosamente a porta. Ainda pensei em correr atrás dela, mas desisti. Fiquei em casa ouvindo CDs de blues e olhando com cara de idiota para o bacalhau dessalgado em cima da pia. Iríamos fazer um bacalhau a Gomes de Sá. Clarissa não comia carne nos dias da semana santa. Para mim isso era uma besteira, eu teria adorado preparar uma picanha mal passada naquela noite, mas a paixão por Clarissa me fazia respeitar suas opiniões, pelo menos algumas delas.
Pensei que Clarissa voltaria, mas, me enganei. Tomei alguns tranqulizantes para poder dormir, com o coração pesado de tristeza e paixão.

Sábado de Aleluia

Aleluia! Clarissa telefonou. Não falou praticamente nada, balbuciou meia dúvida de palavras. Mas, telefonou. Disse que estava tudo terminado e que na semana seguinte pegaria suas coisas no apartamento. Pensei em implorar para que voltasse, em sugerir que conversássemos, mas nada falei. Escutei o que ela falou até que pareceu que ela fosse chorar e ela então desligou o celular.
Resolvi ir uma igreja católica. Claro, desprezava o catolicismo, como a todas as demais religiões, mas senti vontade de ver os fiéis louvando a um ser superior. Contudo, quando estacionava o carro próximo a uma igreja, mudei de idéia repentinamente e decidi beber algo na praia. Olhar o mar costumava me acalmar. Bebi demais, contudo, e voltei para casa totalmente bêbado, arriscando bater o carro ou ser pego pela polícia dirigindo embriagado. Não aconteceu nem uma coisa nem outra. Talvez fosse melhor se eu tivesse morrido.

Domingo de Páscoa

Acordei de ressaca. Bebi quase um litro de água e tive de ver na geladeira os ovos de chocolate que Clarissa havia comprado para a gente. Estávamos juntos havia três anos e todo domingo de Páscoa ela me dava um ovo de chocolate. Como sabia que eu não compraria um para ela, tratava de se presentear com um ovo, quase sempre de chocolate branco. Joguei os dois ovos fora. Também atirei o bacalhau na lata de lixo. Em seguida, vomitei e, me sentindo menos enjoado, decidi recomeçar minha vida. Tomei um bom banho, recorri a um analgésico potente e me resolvi a sair da cidade. Joguei em uma mochila algumas roupas, laptop, escova de dentes e alguns livros. Iria para uma pousada litorânea para pensar na vida nova que teria de levar.
Estava abrindo a porta do carro quando o celular tocou. Clarissa, com voz lacrimosa, disse que queria conversar e retomar nosso casamento. Pediu desculpas e exigiu que eu as pedisse. Perguntou se eu não queria encontrá-la em um bar-restaurante onde costumávamos ir. Concordei. Subi ao apartamento para deixar a mochila e rumei para o supermercado mais próximo, para comprar dois ovos de chocolate...

07 abril 2011

O matador

Cefas Carvalho

Ele era magro, mirrado mesmo, baixo, uma coisinha assim de gente. Pálido e com o rosto cheio de cravos e caroços, feio até não poder mais. Tranquilo, bebia seu conhaque de alcatrão com o rosto sereno e compenetrado. Mas, era um matador. Dos melhores. Era conhecido em toda a região, não havia cidade ou vilarejo que não temesse Jão Bicheira, cujo nome ninguém sabia, nem a origem do apelido. O que se sabia era que ele já havia mandado uns dez sertanejos desta para melhor e era conhecido nos beréus e bares mal afamados como “fabricante de viúvas”.
Cá por mim, eu bebia quieto minha cana quando percebi o homem se aproximando. Claro que tremi nas bases. Não era bem medo, afinal, tenho lá minha coragem e sou de família de homens altos e parrudos. Mas Jão Bicheira tinha uma arma - talvez mais de uma - e eu não. Pois que o cidadão sentou-se no tamborete ao meu lado e perguntou meu nome. Raimundo Nonato, ao seu dispor, respondi.
O homem pegou um palito, limpou os dentes com zelo, tomou um gole do conheque de alcatrão, cuspiu no chão uma saliva preta e voltou-se para mim. Quero te pedir um favor! Minhas mãos tremeram. O cabra havia matado uns dez homens. Certo que uns não valiam nada, ficaram bem melhores mortos mesmos. Mas, metade deles, eram pais de família. Mas, engrossei a voz e respondi: Se eu puder ajudar...
Jão Bicheira tirou um papel dobrado do bolso. Sabe ler?, perguntou. Respondi que sim. Ele me passou o papel. Leia isso para mim. Abri o pedaço de folha. Era uma letra infantil, difícil de ler. Mas, de qualquer maneira, li em voz alta o que estava escrito: Papai, quando for trabalhar pense em mim. Assinado, sua filha Rosinha.
Ele respirou pesadamente, Bebeu mais um gole do alcatrão e cuspiu no chão. Devolvi o papel.
Você sabe qual é meus trabalho, não é? Engoli em seco. Mas, tinha que responder. Sei sim senhor. Ele pigarreou e suspeirou: É um trabalho enjoado, mas, alguém tem que fazer. Se não fosse eu seria outra pessoa, não é mesmo?
Olhou-me tristemente, pagou a conta, pegou um chapéu meio roto que estava no balcão e passou por mim.
Obrigado, amigo. Tem alguma coisa que queira pedir?
Respondi que não, mas, sei lá que diabo me tomou que disse ao homem que tinha apenas uma curiosidade. Pois pergunte, cabra, que perguntar nunca matou ninguém.
Respirei fundo, como quem vai para uma briga de peixeira, e disparei: O senhor sente alguma raiva das pessoas que mata?
Jão me olhou como se eu fosse louco por fazer aquela pergunta para ele, e a verdade é que era loucura mesmo. Encarou-me, pensei que ia me bater ou me gritar, mas abriu um sorriso triste.
Vou lhe responder. Você fez um favor para mim e merece que eu lhe responda. Rapaz, quando me contratam, não sinto nada não. Mas quando me dão a foto do cabra em questão eu vou olhando a foto e vai me dando um ódio...
Respirou, cuspiu mais uma vez, ajeitou o chapéu na cabeça e com um movimento de mão, despediu-se de mim. Aliviado, fui para o balcão e pedi um copo de cana. Derramei um gole para o santo e bebi o resto de uma lapada só!

31 março 2011

Navegar


Cefas Carvalho

Navegar
Não é preciso
Como viver
Não é preciso
Nada neste mundo
É preciso...
Viver, morrer
Tudo impreciso
Ler Pessoa
Não é preciso...

Navegar é necessário...
Viver, não...


Velas ao mar, pois então...

30 março 2011

Olhos de ressaca

Cefas Carvalho

Sempre fui apaixonado pela descrição que Machado de Assis fez de sua Capitu em “Dom Casmurro”, para mim o maior romance já escrito nestas terras brasileiras. A moça em questão – que enlouquece Bentinho de ciúmes e dúvidas – tem “o olhar oblíquo e dissimulado, olhos de ressaca”, segundo o gênio do Cosme Velho.

Nada mais normal que mulheres com este predicado me fascinarem, ainda que platonicamente. E nada ainda mais normal que o cinema – com suas musas – ser o veículo perfeito para este fascínio.

Entre as paixões cinematográficas, recordo dos olhos de Capitu de Nastassja Kinski em muitos filmes. Também do olhar de Hanna Schygulla, musa de Fassbinder.

Mas poucas atrizes encarnam o conceito “olhar de ressaca” como a francesa Ludvine Sagnier. Em pelo menos dois filmes ela desfila esse olhar “capituniano”: em “Swimming pool” (de Francois Ozon) ela encarna uma Lolita perversa e confronta a musa Charlotte Rampling. Em “Canções de amor”, musical de Christophe Honoré, ela vive uma burguesinha mimada que experimenta um ménage a trois.

Cada fotograma de Sagnier exprime o olhar que Machado descreveu. A personagem Julie é ambígua, estranha, talvez cínica, talvez carente. Canta cinco músicas no filme, todas sobre (des)amor, relacionamento e ciúmes. Todas com o olhar de ressaca que, no filme, fascina homens e mulheres e confunde a própria família.

É certo que o cinema francês sempre foi pródigo em musas. Há algumas décadas, Catherine Deneuve e o mito maior Brigitte Bardot. Nos anos oitenta, Isabelle Adjani e Juliette Binoche. Mais recentemente beldades talentosas como Julie Delpy, Emmanuelle Beart e Sophie Marceau. Sagnier pode ser a estrela da vez.

17 março 2011

Brincadeira de criança


Cefas Carvalho

Cercado então o animalzinho, a brincadeira pode começar...

Psss psss psss, vem cá bichano, que ninguém vai te machucar...

Cinco garotos...um gato...o sol quente do verão...
Férias, ócio... Que diabos, não temos o que fazer!
Mas, há o gato, sim, o gato vira-lata preto e branco, sarnento
Sujo! Quem liga para um gato de merda?
Cercado então o animal...
Um menino, o mais corajoso, o líder, pega o bichano pela cabeça...
Um arranhão, sangue à vista, os meninos gritam...
(eles ainda não sabem, mas sangue excita...)
Por dentro, o sangue ferve...

Gritos (de guerra)...meninos gostam de brincar de guerra!

O gato olha em volta, olha...Os meninos riem...
Em breve o gato não mais vai mais olhar para nenhum deles...

Vem outro menino - bonito, sorridente, sardas – com um canivete...

Hesitação... Vai você!...Eu não!...Mariquinhas!... Mariquinhas é você!
Eu vou mostrar que sou homem, porra!...

Um gesto decidido, uma fração de segundo.
Um olho arrancado...um miado lancinante
Risos... Alguns nervosos... Não é fácil mutilar nem mesmo um gato...
(Mas, que merda, o sangue excita...)

Outro olho arrancado...

Uma massa de carne cega, sem direção, rumo à rua, se debatendo...

Risos, risinhos, tapinhas nas costas, um canivete sujo...
O futuro da nação, senhoras e senhores...
Advogados, médicos, jornalistas, Doutores, enfim!...

Afinal, por que tanta confusão, meu caro, são só crianças!...

03 março 2011

O carnaval da minha dor


Cefas Carvalho

O carnaval da minha dor começou em uma sexta-feira ensolarada como têm início os carnavais - sejam dolorosos ou não - em um ano qualquer e em uma cidade igualmente qualquer (o carnaval é igual em qualquer cidade quando o objetivo é sofrer, e não se alegrar. parafraseando Tolstói, todos os carnavais infelizes se parecem, os carnavais alegres é que são diferentes...)
Mas, voltemos à minha dor... toda ela gerada pela Colombina, posto que eu era, novamente, o Pierrô. Há quantos carnavais vivíamos esta história insana, excitante, mal contada?... Havia uma década, suponho. Eu não sabia nada sobre ela, apenas seu nome - Miriam - que ela revelou por um deslize enquanto fazíamos amor embaixo do palco das autoridades que assistiam ao desfile das escolas de samba na cidade de... deixemos para lá. E chamemos minha amada de Colombina, que é como sempre a chamei e como ela gosta de ser chamada (isso a excita, presumo).
O fato era que o que havia começado como uma fantasia (em todos os sentidos) passara a ser –pelo menos para mim – uma obsessão. Primeiro nos conhecemos, entre o confete, a serpentina, o álcool e o loló, como todos se conhecem durante a folia, entre a superficialidade e o desejo... depois o beijo, o desencontro e por fim o reencontro na noite de terça-feira e terminar a noite – e aquele carnaval – entre lençóis no meu quarto de hotel. Trocamos telefone, mas, para quê? Jamais nos telefonamos. A não ser na véspera do carnaval do ano seguinte, quando ela avisou que novamente se fantasiaria de Colombina e que queria me ver outra vez de Pierrô. Passamos o carnaval entre encontros e desencontros, ela com Arlequins, eu com Odaliscas... tentei brigar, mas ela só queria se divertir. Jurei que no carnaval seguinte não passaria mais por aquilo. Tolice. Uma semana antes da festa momesca, a Colombina me ligou dizendo em que cidade passaria o carnaval lá fui eu atrás dela, rumo a prazeres carnais rápidos e uma dose considerável de sofrimento. Identifiquei-me com a música... "Um pierrô apaixonado, que vivia só chorando, por causa de uma colombina acabou chorando, acabou chorando...” (Pierrô Apaixonado, de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres)
Lá pelo quatro ou quinto carnaval que passávamos da mesma maneira, encontrando e desencontrando entre ladeiras, becos e multidões, tomei coragem e a pedi em casamento. Ela riu, argumentando que eu sequer a conhecia e continuou sua caminhada de Colombina desvairada, à procura de outras bocas, outros braços, outros pierrôs... Mas, na quarta-feira de cinzas lá estava ela em meus braços... E eu tentando fazer com que nos víssemos em outro período que não no carnaval. Inútil. “Eu gosto das coisas assim...”, enfatizou, despindo suas roupas de Colombina. Enquanto ela pegava um táxi rumo ao aeroporto (já morávamos em cidades diferentes) "O pierrô apaixonado chora pelo amor da colombina..." (Pierrot, de Marcelo Camelo, da banda Los Hermanos).
Passam os meses e fevereiro se aproximou, como sempre, trazendo consigo o Carnaval. Não telefonei para a Colombina e tampouco ela me ligou. Fiquei em minha cidade, e vesti-me de Pierrô – pela última vez – para pular sozinho meu carnaval. Eis que então que, entre lágrimas e cerveja, vi a Colombina – sim, só podia ser ela, era seu andar, seu jeito de mover os braços, de balançar os cabelos, de rir ao vento... - aos beijos com um Arlequim. Olhei fixamente para ela. Ela me viu e não esboçou qualquer reação. Era uma Colombina, mas, seria a minha Colombina? Que importava? Que mais havia a fazer? Comprei outra latinha de Skol e me entreguei à multidão que entoava uma marchinha qualquer, que aos meus ouvidos soava como a marcha fúnebre: eu estava condenado a ficar apaixonado pela imagem (literal e simbólica) da Colombina até o fim dos carnavais, ainda que toda Colombina que cruzasse meu infeliz caminho não fosse a minha... “Quanto riso, ó, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão... O pierrô está chorando pelo amor da Colombina no meio da multidão...”

22 fevereiro 2011

Sobre “True Grit” ou Os Irmãos Coen nunca erram


Cefas Carvalho

Assisti ontem, segunda dia 21, ao filme “Bravura indômita” e a primeira coisa a dizer sobre o filme é que ele deveria se chamar “Coragem verdadeira” ou “Um homem de caráter”, traduções aceitáveis para o “True grit” orginal. Por definição, “grit” é “firmeza de caráter”, “arrojo”. Também pode significar “brita”, “pedrinha”. Ok, a intenção da distribuidora era registrar que trata-se do remake do clássico de 1969, que deu o Oscar de ator a John Wayne (ele está ótimo naquele filme, mas suplantar Jon Voigt e Dustin Hoffman em “Perdidos da noite” e Richard Burton em “Ana dos mil dias” é brincadeira!).
A consideração inicial me faz lembrar a vocação que as distribuidoras brasileiras tem para “traduzir” títulos de faroestes (geralmente colocando títulos ridículos ou sem-noção). Exemplos são "Shane", que virou “Os brutos também amam” e “My Darling Clementine (Paixão dos fortes). Mas, isso é assunto para outro artigo. Vamos ao “True grit”.
Quase todo cinéfilo que o valha já discutiu a obra de Ethan e Joel, os irmãos Coen. Os fãs registram o óbvio: os Coen não erram, não fazem filmes ruins. Os detratores ou não-encantados com a dupla registram que eles podem não fazer maus filmes, mas nunca fazem nenhum filme realmente empolgante, arrebatador, por mais que ganhem prêmios (Uma palma de ouro em Cannes, Oscar de direção, dois Oscars de roteito, entre muitos outros).
O dramaturgo paulista Mário Bortolotto chegou a ensaiar uma polêmica na rede social Facebook justamente afirmando que jamais se encantou profundamente com nada que os Coen fizeram. Lembraram que, em compensação, os Coen nunca erraram a mão como já o fizeram os mestres Fellini (“Cidade das mulheres”), Bergman (“O ovo da serpente”) e Chaplin (“Monsieur Verdoux”).
Na verdade, na minha ótica os Coen fizeram, sim, um filme superlativo: “Onde os fracos não têm vez”, tradução banal e simplista para o poético “No country for old men”. Tudo ali funciona. Das interpretações magistrais de Javier Bardem e Tommy Lee Jones ao clima “seco” do filme (que sequer tem trilha sonora), passando pelo tema da ambição e estudando a violência dos dias de hoje. Tudo com fotografia e roteiro de primeira e o “estilo Coen” á última potência. Um clássico desde já.
Agora, os Coen conseguem a façanha de produzir outro clássico instantâneo adaptando um romance estilo faroeste apenas razoável da década de 60 e que já tinha sido adaptado com sucesso. Quem leu o livro assinala que a adptação é fiel. Contudo, o filme tem o “estilo Coen”. Humor negro aos borbotões, personagens estranhos, cinismo, violência, a fotografia sempre fantástica de Roger Deakins, ótima direção de atores. Jeff Bridges está fantástico como o beberrão Rooster Cogburn.
A trama é um apanhado de clichês do faroeste: jovem cujo pai foi assssinado contrata um pistoleiro policial federal para apanhar o criminoso. No caminho, problemas, desventuras e violência. Mas, dos clichês, os Coen (como Almodóvar) fazem um filme “deles”. No frigir dos ovos, os fãs dos Coen vão adorar. Os detratores vão encontrar o que criticar (os clichês, o bom mocismo de Cogburn no final, o tema escolhido, o fato de ser um remake). Enfim, mais de uma vez já assinalei que não assisto filmes com olho crítico. Gosto de autores e filmes por empatia e intuição. E os Coen mantiveram – em relação a mim - a tradição de me fazer esperar o próximo filme deles, seja que tema for, seja com quem for. A esperar. E até lá, rever parte da obra da dupla, como “Barton Fink”, “Fargo” e “Gosto de Sangue”.

15 fevereiro 2011

As leitoras de Renoir



Cefas Carvalho

Devoto que sou da pintura impressionista (como também o sou da literatura francesa do século 19), tenho Gauguin, Manet e Cezanne entre meus favotitos eternos. Mas, de todos os impressionistas, o meu favorito sempre foi Renoir. Não sou estudioso de artes plásticas, portanto, não gosto nem analiso por critérios e padrões técnicos. É gosto e empatia mesmo. Tem muito a ver em ter conhecido a obra de Renoir ainda criança (vale um agradecimento público aos meus pais por terem me comprado a coleção Gênios da Pintura quando eu tinha dez anos de idade) e pela impressão – perdão pelo trocadilho – que ele e os demais impressionistas me causaram.
De Renoir, gosto de quase tudo. Da leveza de “Mulher com sombrinha” ao raios-X social de Paris em “O baile no moulin de La Gallete”. Mas, tenho encantamento mesmo é pelas leitoras de Renoir. Sim, o mestre pintou diversas telas em que jovens se dedicam (às vezes com atenção, às vezes negligentemente) à leitura de livros. Sempre imaginei que livros seriam aqueles. Romances da época? Poesias? Aquelas meninas preferiam Stendhal ou novelinhas água com açúcar?
A devoção das leitoras de Renoir aos livros me remete a um trecho que li em algum livro de Balzac ou Stendhal (ah, maldita memória que me falha!). Dois jovens aristocratas parisienses conversam sobre a beleza e formosura de tal moça, quando um deles critica: “Ela é bela, mas culturalmente deixa a desejar. Tudo bem que sabe tocar piano e canta algumas árias de óperas. Também lê um pouco, pelo menos aqueles romances clássicos históricos que estão fora de moda...
Espere aí, então o rapaz considera a moça inculta porque ela apenas toca piano, canta trechos de ópera e lia Alexandre Dumas e Walter Scott? Que se dirá das moçoilas de hoje, às voltas com as novidades do BBB, ascenção profissional, mundo fashion e novidades para o cabelo? Daí talvez meu fascínio pelas leitoras da Belle Epoque. O fascínio por uma cultura social – a da leitura – que parace estar morrendo, principalmente no Brasil, triste país dos trópicos em que ler em lugares públicos (praças, recepções de clínicas médicas, filas de banco) é não apenas raro e estranho, como visto com maus olhos. As leitoras, o impressionismo, Renoir, tudo parte de um mundo que parece cada vez mais ultrapassado e condenado ao fim.

02 fevereiro 2011

Cada um vê o que quer




Cefas Carvalho

O recebimento de um e-mail sobre os supostos milagres contidos no manto de Nossa Senhora de Guadalupe e as posteriores discussões sobre o tema (nas redes sociais e na vida real) me levaram a retornar velhas pesquisas sobre o fenômeno da apofenia.
Na definição tradicional, Apofenia explica o fenômeno cognitivo de percepção de padrões ou conexões em dados aleatórios. Termo criado pelo professor alemão Klaus Conrad, em 1959, ele consiste em importante fator na criação de crenças supersticiosas, da crença no paranormal e em ilusão de ótica.
Trocando em miúdos: cada um vê o que quer. De acordo com cada crença, histórico, medos e circunstâncias de vida, claro. Um cristão que vê o rosto de Jesus em uma mancha na janela ou no café derramado no chão, está vivendo o fenômeno da Apofenia. Mais exatamente, um tipo de Apofenia denomonada Pareidolia.
Em definição, pareidolia descreve um fenômeno psicológico que envolve um vago e aleatório estímulo (em geral uma imagem ou som) sendo percebido como algo distinto e significativo. Exemplos comuns incluem imagens de animais ou faces em nuvens, em janelas de vidro e em mensagens ocultas em músicas executadas do contrário.
Estudando o tema, leio que “ocorrências de apofenia frequentemente são investidas de significado religioso e/ou paranormal ocasionalmente ganhando atenção da mídia”. Isso explica porque tantas pessoas vêem os rostos e Jesus ou Maria em qualquer coisa: panos velhos, árvores, manchas de óleo, paredes com infiltração.
É famosa a imagem do “rosto em Marte”, que muitos garantem ser a imagem de Cristo. Na verdade, trata-se da foto de uma cratera marciana que, no ângulo que foi tirada e com as devidas sombras, se assemelha a um rosto humano graças justamente à pareidolia.
Antropólogos registram que, por carga genética, o ser humano procura ver faces humanas em tudo, como uma tentativa instintiva de estar perto da própria espécie. Isso explica porque vemos o “relógio triste” (como na foto acima). E também porque bastam um circulo, dois pontos e uma linha para termos a impressão (ou a certeza) que trata-se de um rosto humano.
Pesquisando mais sobre o tema, leio que “em situações simples e ordinárias, este fenômeno fornece explicações psicológicas para muitas ilusões da mente como, por exemplo, as visões de OVNI alienígenas, mensagens gravadas ao contrário em músicas, Monstro do Lago Ness, Pé- Grande e a face de Jesus em Marte”. Ou seja, como o ser humano não consegue viver sem a presença de sobrenatural, da-lhe apofenia e criatividade para cada um ver o que lhe aprouver...

18 janeiro 2011

Ninho de mafagafos


Cefas Carvalho

Acordou cedo, antes mesmo de o sol nascer por completo, colocou a mochila nas costas e saiu para a mata, com o objetivo de capturar mafagafos. Pássaro arisco, de vôo curto, mas muita agilidade e percepção aguda do perigo, o mafagafo desafiava caçadores e pesquisadores. A tal ponto que muita gente acredita que ele não passa de uma lenda infantil, um mero trava-língua. Num ninho de mafagafos/ tinha sete mafagafinhos/quem os desmafagafizar/bom desmafagafizador será... Quanto a ele, não era nem caçador nem pesquisador. Era um obdecado. Tinha como missão desmafagafizar um mafagafo. Sabia como proceder e tinha, na mochila, os apetrechos necessários para tal. De maneira que saiu confiante em sua empreitada. Enquanto andava, riu baixinho lembrando-se das lendas que cercevam o mafagafo. Incrível que milhões de pessoas não soubessem de sua existência. Acaso seriam o ornitorrinco, o kiwi e o celacanto animais igualmente imaginários? Inclusive, o mito dos mafagafos denotava falta de leitura, desconhecimento mesmo, pensava ele. Tanto Sérgio Buarque de Hollanda como Gilberto Freyre citaram – embora de passagem, reconheça-se – o mafagafo em alguns dos seus escritos (os menos célebres, também era verdade), ele havia lido. Câmara Cascudo cita os mafagafos em seu livro Folclore no Brasil (mas não na 1ª edição pelo Fundo de Cultura, Rio, 1967, mas, sim, em uma reedição revisada de 1976, pela obscura editora Pegasus, onde os mafagafos são citados no capítulo 22, lembrava ele). Também recordou a primeira vez que saíra pelas matas sem fim para caçar mafagafos, anos antes, pouco depois que a esposa o abandonara. A partir daí, não obstante as agruras e surpresas da vida, dedicara-se a pegar mafagafos para os desmafagafizar. Naquela manhã estava disposto a realizar a maior caçada de mafagafos da sua vida. Procuraria não os mais comuns, de coloração laranja, mas os raros, de coloração acinzentada e bico curvo. Horas após percorrer a mata, que lhe parecia labiríntica, circular, achou uma árvore com ninhos nos galhos mais altos que pareciam ser de mafagafos. Tentou subir na árvore, mas o braço machucado não permitiu que o fizesse. Tão perto do ninho de mafagafos e não sabia como subir até o cume da árvore. Observou, próximo à árvore, um machado, milagrosamente esquecido na mata. Não pensou duas vezes e, com o instrumento nas mãos – mesmo com a dor no braço – iniciou a derrubada da árvore a fim que o ninho dos pássaros caísse ao chão. De súbito. Quando efetuava o corte do tronco, mãos fortes o seguraram por trás. Tentou desvencilhar-se, mas, sentiu uma picada no braço e em seguida, uma dormência seguida de sono, sensação já experimentada tantas outras meses. Descordado, foi conduzido para sua cama no quarto 14 no sanatório municipal. E o ninho de pardais continuou firme entre os galhos da mangueira.

11 janeiro 2011

Ad eternum


Cefas Carvalho


Minha receita para a vida eterna é simples:

Cicuta

Cianureto

Estricnina...



Queres de mim, o eterno

Queres do mundo, o infinito



Ah, como tudo poderia ser tão simples:

Punhal

Navalha

Guilhotina...