21 dezembro 2010

Morte em vida


Cefas Carvalho

Ela chamava-se Eurídice. Isto é, ela se chama Eurídice, afinal, ainda não morreu. Pelo menos não tecnicamente. Mas, e daí? Tantas pessoas parecem mortas em vida, enclausuradas em catacumbas de dor, remorso e solidão. Mas, isso não vem ao caso, pelo menos não as mortes (em vida) alheias. Quero falar de mim e de Eurídice e é isso que farei.

Conheci-a em um sarau literário, entre poesias insossas e drinques de maracujá igualmente enjoativos. Ela se aproximou de mim para comentar uma resenha que eu havia escrito sobre um livro de Faulkner. Mas, na verdade, jamais havia lido Faulkner, como vim a descobrir horas depois. Mas, não importava. Eu já estava caído de amores por ela. Era professora de francês e estudava grego, talvez para honrar o próprio nome.
Casamo-nos três meses depois daquele sarau.
Passamos a lua de mel em Petrópolis, mágica e fria cidade do estado do Rio de Janeiro. Na verdade, e lua de mel durou quase meio ano, tempo em que os demônios não tiveram acesso ao nosso mundo.
Contudo, toda Eurídíce deve ter seu quinhão de inferno. Descobri isso quando ela explodiu em ira ao ser demitida da escola de idiomas onde trabalhava. Entre xícaras quebradas, jurou de morte a diretora que a demitira e enfurnou-se em casa. Claro que imaginei que a fúria teria vida breve. Contudo, uniu-se a outro problema: a morte do gato que ela criava, envenenado por algum vizinho sem caráter.
Os dias passavam e o idílio inicial cedia lugar a uma melancolia agressiva por parte de Eurídice. Sugeri uma viagem – mesmo com nossa situação financeira não sendo das melhores – mas, ela recusou. Também não quis tentar outros empregos. Limitava-se a estudar grego e tentar traduzir trechos da Odisséia. Aos poucos, começou a negligenciar a aparência, as roupas, a casa, enfim.
Uma noite, tentou correr para a rua, para recitar versos de Homero para os mendigos, segundo ela. Foi quando percebi que havia enlouquecido. Procurei sua família para me aconselhar. Admitiram que ela já havia sofrido acessos semelhantes na adolescência, mas, imaginaram que já estivesse curada.
Decidimos – aliás, a família decidiu – interná-la em uma clínica séria e moderna, em um município vizinho. Em uma manhã ironicamente bela e ensolarada, foram buscá-la para o tratamento. Ela esperneou, agrediu fisicamente os médicos, teve de ser sedada.
Passei uma semana deprimido, em casa. Depois, tentei voltar a algo que se podia chamar de vida normal. Uma vez por semana visitava Eurídice na clínica. Parecia cada vez pior. Até que uma vez não me reconheceu mais. Um mês depois, um médico disse que ela havia tentado se matar com um pente. Estava morta em vida, na verdade, e talvez um resquício de sanidade tentava terminar de vez com aquela vida sem vida.
Repito, tentei voltar à vida normal. Comecei a ir ao cinema, jantar fora, revi os amigos. Mas, nada era mais a mesma coisa. A imagem de Eurídice me voltava à mente com freqüência. Perdi a vontade de sair. Afastei-me dos amigos. Aos poucos, enfurnei-me em casa – como ela havia feito – e percebi que também não tinha mais vontade de fazer nada. Talvez, nem mesmo de viver.
Em visita a Eurídice, fui informado que ela havia tentado se matar novamente e estava sedada. Seu estado era preeocupante e me explicaram com um emaranhado de palavras a doença dela etc e tal.; Mas, eu já não ouvia nada, já não queria saber.

Pode-se dizer que ela está viva? Que o desgraçado leitor deste relato decida-o por si só. Quanto a mim, posso dizer que morri há muito. Ora, mais uma vez ele recorre ao eufemismo da morte em plena vida, haverão de pensar, talvez cvom certo tédio. Não culpo quem pense assim. Eu mesmo cansei desta imagem, desgastada por si só e, em última instância, ilusória, já que o morto em vida come, bebe, por vezes ri, defeca e dorme - ocasionalmente sonha - como qualquer um. Daí minha decisão final, pensada e articulada. escrevo este derradeiro relato em cima de um tamborete de madeira. Com uma corda apertada em laço e nó no pescoço e tranapassada em uma viga de madeira no teto, na granja deserta de um tio, onde eu e Eurídice havíamos passado momentos maravilhosos. Se posso alongar este relato para brincar com a morte e, talvez, esperar que algo aconteça e me salve? Claro. Mas, não o farei. Basta finalizá-lo agora, largar o caderno, chutar o tamborete onde estou e esperar que o impacto e a corda me transportem da morte em vida – onde estou – para a morte real. E ponto final.

30 novembro 2010

Quarteto de degustação


Cefas Carvalho


1

O que me engole e devora
É o súbito, o indigitado
O alimento que me apavora
O vômito regurgitado

2

O que me tange e apascenta
É o cajado, adestrado
Cujo golpe me arrebenta
Como o verbo bem amado

3

O que me desce à garganta
É a vida, mal mastigada
Que ainda nos espanta
E faz de nós quase nada

4

O que me sustenta e redime
É o verso em decomposição
Como quem comete um crime
E sonha com a redenção

11 novembro 2010

Celluloid & music


Cefas Carvalho

Take my brath away

Mesmo em ingles, sei!
O que me tira a respiração...


As time goes by
E então, amor, vai!
Faz do tempo, ilusão...

01 novembro 2010

Que os mortos enterrem os mortos


Cefas Carvalho

Odiava o Dia de Finados. Aquela data em tudo atrapalhva sua tranqüilidade e seu bem estar, valores que, depois de tudo que passara, ele prezava muito. Por que lembrar os mortos?, ele costumava se perguntar. Lágrimas e recordações nem fariam os mortos retornarem à vida e nem serviriam para coisa alguma no além-vida. Melhor seria que os vivos cuidassem das coisas da vida, como, aliás, preconizava o livro sagrado dos Cristão e o próprio bom senso. Contudo, não poderia se furtar e viver mais aquele Dia de Finados, a se fazer presente no cemitério. Mais quem uma obrigação, mais que uma necessidade, sentia apenas que deveria se fazer presente no cemitério. Talvez por respeito às pessoas, talvez por aquele estranho senso de obrigação que desenvolvemos em relação a alguns aspectos da vida. Diante de tantas reflexões e da celeridade da hora, terminou por se resolver e comparecer ao cemitério. Não lhe agravada estar em meio a túmulos, lápides, cruzes, mármore e flores. Detestava o cheio de flores e na verdade, mal se dava conta que não aspirava mais o cheiro delas, o que sentia era a lembrança do cheiro das flores. Observou sua esposa aos prantos – ela chorava por tudo, afinal – e seus dois filhos simulando tristeza e mal disfarçando a vontade de ir embora. Morrera havia quatro anos e – somente quando evocado no dia 2 de novembro - não conseguia ficar em paz em meio às trevas e ao nada que tanto lhe agradavam. Como odiava o Dia de Finados.

15 outubro 2010

O encontro marcado


Cefas Carvalho

Parecia um sonho. Talvez o fosse. O convite para sair – uma cerveja, um jantar, talvez uma pizza – se assemelhava a uma irrealidade. Havia quanto tempo não recebia um convite daquela natureza? Não, Raquel, você deve estar sonhando, disse, em voz alta para si mesma, enquanto fazia com o lápis o contorno dos olhos.
Olhando seu reflexo no espelho, sentiu-se aliviada por não estar com olheiras. Dormira cedo na noite anterior, beneficiada por uma leva enxaqueca e pelo movimento fraco na casa. Quando dormia tarde acordava com olheiras imensas que perduravam até a noite, lhe conferindo aparência mais envelhecida que a de seus vinte anos.
Conferiu mais uma vez o bilhete que Rômulo havia lhe escrito no verso de uma comanda de bar. Você é linda. Beijo. Rômulo. Não recebia uma mensagem romântica de verdade, havia quantos anos, meu deus do céu?
Conhecera Rômulo havia dez dias. Tímido, sentou-se sem olhar com atenção à sua volta e pediu uma cerveja. As outras meninas mal o perceberam, mas ela encantou-se com seu embaraço, seu cabelo mal penteado e seus enormes olhos acastanhados. Inventou um pretexto (Você tem cigarro?) para sentar-se à mesa dele. Passada a timidez inicial, a conversa fluiu e ele se mostrou educado, interessado em sua vida e cobriu-lhe de elogios. Teve que ir embora uma hora depois, mas, deixou pagas duas cervejas para ela. Prometeu voltar.
E voltou. Três dias depois, Raquel chegou ao bar e o viu sentado a uma mesa isolada, olhando fixamente para um ponto na parede. Desta feita, não precisou de pretextos e abordou-o como se fossem velhos amigos. Conversaram sobre a vida, riram, ele teve paciência para ouvir seus desabafos. Ele não parecia pertencer àquele ambiente. Por sua vez, sentia que ele pensava o mesmo em relação a ela. Por mais que ela precisasse de dinheiro, por mais que a casa estivesse cheia e ela não pudesse ficar apenas à mesa dele, Raquel sentiu uma festa no coração quando ele a convidou para jantar dali a alguns dias. Sim, um jantar, com direito a pizza, cerveja (ou vinho, que ela adorava), e não um programa, ele deixou bem claro.
No intervalo de dias entre o convite e a noite do jantar, Raquel realizou um inventário sobre sua vida. Entrara naquele estranho universo havia dois anos, incentivada por uma amiga que despertava inveja por ganhar em dois dias o que as vizinhas recebiam por um mês de trabalho. De início, era apenas uma aventura. Ganhara algum dinheiro, não passara por maus bocados, chegara a se divertir um pouco. Depois, venho a segunda vez (“Quem faz uma, faz duas”, ria a amiga) até que, quando percebeu, estava fazendo um programa por semana e com uma espécie de “carteira de clientes”. Pagava as contas e tinha dinheiro para mandar para a mãe, que morava no interior, isso era certo, mas, também gastava mais do que deveria (cigarros, perfumes em excesso, roupas caras, sapatos...) até que, mal sabia como, acabou por estabelecer-se uma casa (com vários nomes, mas, conhecida como “boate”), o que lhe dava – pelo menos aparentemente – mais segurança e possibilidades de ganhar dinheiro. Pensara em passar um mês na boate e lá estava havia quase oito meses, que se passavam sem sobressaltos e sem boas novas. Apenas na rotina de trabalhar até as quatro da manhã (ou até quando houvesse clientes na casa), arrastar-se para a quitinete que chamava de “minha casa” e acordar depois do meio dia para juntar os cacos da sua vida até a hora de reiniciar o trabalho, às sete da noite.
Até que Rômulo surgiu.
Era para ele se pintava – de forma discreta, não exagerada – e imaginava para onde iriam. Ao telefone, ele disse que havia economizado dinheiro e que pensou em um restaurante sofisticado. Falou de dormirem em um hotel, caso ela não quisesse ir à casa dele.
Olhou-se no espelho. Ainda eram dezenove horas. O encontro estava marcado para as vinte e trinta. Como Rômulo não tinha carro, combinaram se encontrar em uma praça, no Centro da cidade, para, de táxi, jantarem, passearem pela orla.
Enfim, sentindo-se linda como nunca, considerou-se arrumada. Pegou a bolsa e saiu. Eram dezenove e dez, havia tempo de sobra, Rômulo talvez ainda estivesse trabalhando. Decidiu passar na boate, para ver as amigas (na verdade, para esfregar sua felicidade incontida nas amigas que teriam de trabalhar no salão naquela noite) e para carregar a bateria do seu celular, antes que descarregasse.
Lá, tratou de espalhar sua alegria como quem atira arroz em recém-casados. Riu, falou sobre Rômulo, ouviu piadas maliciosas das colegas, trocou o sapato por um, de uma amiga, com o salto maior.
Para descontrair (estava nervosa com a proximidade do encontro. Havia quanto tempo não tinha um encontro sem envolvimento financeiro?...), pediu um rum com coca-cola. Sentou-se à mesa com uma colega, que reclamava da falta de dinheiro, quando dois homens entraram no salão, sentaram-se a uma mesa e acenaram com a mão para Raquel e a amiga. Eu tenho um compromisso, reagiu Raquel. Sente-se comigo só uns vinte minutos para quebrar o gelo. Quero ver se faço um programa com um deles e aí você vai embora, pediu a amiga. Raquel concordou. Na mesa com os homens, teve de agüentar as perguntas de sempre, os comentários de sempre, a mão na perna, o alisar de cabelos e teve ganas de sumir daquele lugar. Suportou meia hora para ajudar a amiga e preparava-se para sair quando o dono da boate chamou-a ao balcão. Raquel descobriu que um dos seus clientes telefonara para ele para saber se ela estava na casa.
Hoje nem é meu dia de trabalho, tenho um compromisso daqui a pouco, explicou.
Sim, minha filha, mas, dinheiro a gente não joga fora não. Deixe-o chegar, peça umas bebidas e tente levar uma menina que o agrade para a mesa, aí depois você vai para seu compromisso, argumentou.
Sem poder de reação (estava devendo ao dono da boate) concordou e tão logo o cliente chegou, Raquel sentou-o a uma mesa e explicou que teria de ir, mas que o deixaria em boa companhia. Conseguiu fazê-lo, mas, tendo que ouvir antes algumas piadas sem graça e alguns desabafos sobre a vida, perdeu mais tempo que o esperado. Olhou para o relógio: 20h20. Vou pegar um táxi, pensou. Contudo, já na rua – mal iluminada e deserta, como convinha – nenhum táxi. Andou – atrapalhada pelo salto alto com que não estava acostumada – até o posto de táxi mais próximo. Nenhum no ponto. Decidiu andar um quarteirão até a parada de ônibus mais próxima. Eram 20h35. Percebeu que naquele trecho os ônibus para o centro demorariam a passar e começou a se desesperar. Decidiu ir andando até o centro. Já conseguira fazer aquele percurso em vinte minutos, seria melhor que esperar o maldito ônibus! Começou a andar quando se lembrou de passar uma mensagem para Rômulo, avisando que estava a caminho.
O celular desligara, estava descarregado. Esquecera-se de carregar a bateria.
Hesitou entre caminhar rapidamente – se é que isso era possível com aquele salto! – ou parar em algum bar e pedir para carregar o celular durante dez minutos, tempo suficiente para poder ligar para Rômulo ou passar-lhe uma mensagem.
Acabou não fazendo nem uma coisa nem outra. Parou para pensar e desesperou-se ao ver passar um taxi vazio. Então, decidiu tirar os sapatos e caminhar até o centro. Quando chegasse perto da praça, os colocaria nos pés, entraria em um bar nas imediações para olhar-se no espelho (estaria descabelada? A maquiagem estaria desfeita?) e garantir que estaria linda para Rômulo.
Ofegante – o caminho para o centro tinha ladeiras e subidas – Raquel chegou na rua que antecedia a praça. Calçou os sapatos e olhou o relógio, eram 21h20. Mesmo com quase uma hora de atraso, não queria estar feia ao encontrar Rômulo e manteve a decisão de entrar no bar para ver como estava. Ajeitou-se rapidamente, e foi para a praça. Ele não estava lá. Na expectativa que ele tivesse isso comprar cigarros e voltasse, esperou quase meia hora. Um pouco antes das dez da noite, concluiu que ele não voltaria e que o mais sensato a fazer era tentar carregar o maldito celular. Voltou ao bar e conseguiu fazê-lo. Quinze minutos depois, percebeu – com o celular já ligado – que Rômulo fizera quatro ligações para seu número. Teve medo de ligar para ele e preferiu passar uma mensagem: “Meu amor, me perdoe pelo atraso. Ligue para mim. Beijos”.
Sentou-se no meio fio, esperando um retorno. Dez minutos depois, ouviu o ruído que indicava a chegada de mensagens. Com o coração aos pulos, leu a mensagem: “Me esqueça”.
Raquel pediu um copo d´água no bar e viu um táxi parado em frente ao local. Pagou a corrida até a boate. Lá, pediu um conhaque sem gelo, abriu o botão da blusa para deixar parte de seus seios à mostra e sentou-se a uma mesa, olhando para os clientes que chegavam e pensando na longa e amarga noite que teria pela frente.

13 setembro 2010

As nuvens


Cefas Carvalho

Amava a esposa. Sabia de suas qualidades e as reconhecia sendo, igualmente, um bom marido. Contudo, aborrecia-se com a falta de memória de Tânia.
Nada grave. Tânia era profissional competente – publicitária de primeiro escalão – com vida social e cultural intensas. Era bela e atraente, dona de olhinhos miúdos que pareciam mudar de cor de acordo com seus humores. Mas, para Augusto, professor universitário dos mais conceituados na cidade, a falta de memória da mulher amada lhe doía como uma ferida não cicatrizada.
Claro que ele, com a sensatez que lhe era peculiar, raciocinava que ninguém tem a obrigação de se lembrar de tudo. Se ele sentia prazer em recordar datas, citações, nomes, números (era professor de filosofia, que fique explicado), não poderia exigir o mesmo da esposa.
Porém, mais que a falta de memória, Augusto reprova em Tânia o desrespeito para com a memória.
Posso explicar: em uma reunião social, regada a queijos e bons vinhos, como costumavam, fazer, uma amiga comentava com Tânia sobre um amigo em comum que fora morar em Portugal. A amiga pergunta se Tânia recorda que estudaram juntos os três e que foram juntos a um congresso em Manaus. Tânia responde que sim, se lembra, e registra que naquele congresso um outro amigo em comum passara mal e tivera que ser internado. Imediatamente a amiga responde que não, Tânia está confundindo. O amigo internado o fora em Salvador, em outro congresso anos depois. Tânia insiste. Foi em Salvador, eu me lembro. A amiga pacientemente descreve o hospital e o bairro onde está localizado, e registra que após visitarem o amigo foram para o Pelourinho, provando que, obviamente, ela está com a razão. Tânia ri inocentemente, toma mais um gole de vinho e comenta: Ah, foi em Salvador. Mas, o que se importa? Poderia ter sido em Manaus ou em qualquer outro lugar...
Augusto já fora vitimado pela falta de memória (corrijo-me: pelo desrespeito à memória) da esposa. Em mais de uma ocasião, Tânia trocara datas e locais onde passaram férias. Em certa feita, tendo bebido mais do que devia em uma festa, fincou pé que um determinado momento que haviam vivido em Pipa (e ele tinha certeza disso) na verdade acontecera em Porto de Galinhos. Para não constranger a mulher, Augusto assumiu o engano. Mas – rigoroso que era não apenas com seus conhecimentos, mas, com sua memória – engoliu com dificuldade o fato.
Para ele, a memória (ou melhor, os fatos evocados por esta memória) era como equações matemáticas. Mais que isso: era granito, mármore.
Para ela, os fatos (sinônimo de memória neste texto) eram como nuvens. A cada momento mudavam de posição e formato.
(Abro um parêntese para registrar o desespero que se apossava de Augusto ao ver, com o passar dos anos, as histórias de Tânia se modificarem, tal como acontece naquela brincadeira de infância conhecida como telefone sem-fio. Quando se conheceram, Tânia falava em um ex-namorado com quem tivera um romance durante dois anos e com quem viajara para Porto Seguro. Anos depois, vindo o nome do ex-namorado à tona por uma razão corriqueira qualquer, o namoro com o rapaz tinha durado um ano, segundo Tânia, e depois ela recordou que viajara para Porto Seguro com uma amiga e o namorado desta.
Outro homem poderia se dar por feliz pelo fato da esposa lembrar com tão pouca nitidez dos romances do passado. Mas, não Augusto. Aquilo lhe aborrecia por 1) O amor aos fatos e às datas ser superior ao ciúme, principalmente o retroativo, que ele achava absurdo e infantil. 2) Porque sabia que um dia poderia chegar a vez dele! Afinal, nada garantia que o casamento deles seria eterno. Era tão comum casais se separarem. Contudo, ele próprio sabia que jamais esqueceria os momentos que viveu com Tânia. E a experiência lhe mostrara que, tão logo se recuperasse da dor inicial inerente à qualquer separação, Tânia transformaria toda a bagagem de coisas que viveram em uma massa disforme de lembranças)...
Augusto começou, aos poucos, claro, a perceber que as sensações geradas pela falta de memória/desrespeito à memória da esposa lhe estavam fazendo mal. Não conseguia falar sobre o assunto. Também se espantava com o fato de Tânia não perceber o quanto aquilo o desagradava. Mas, não haveria como perceber nada, afinal, elegantemente Augusto não demonstrava seu descontentamento.
Em uma noite particularmente quente, quando os filhos pré-adolescentes haviam saído, decidiram sentar à varanda com um balde de cervejas e alguns petiscos. Tânia afagou a cabeça do marido e perguntou o que aquilo recordava. Ele não soube dizer e teve medo da resposta da mulher. Tânia então recordou que ele a pedira em noivado na casa dela, justamente com um cenário igual aquele: um balde de cervejas, azeitonas e queijos. Augusto brincou: Você nem lembra a data. Tânia imediatamente disse a data exata do pedido de noivado. Descreveu a roupa que usava na ocasião: um vestido florido que depois do casamento havia virado pano de chão.
Augusto bebeu - no gargalo - um longo gole da cerveja e sorriu para a esposa, achando-a bela como nunca. Em seguida, arrastou-se para o som para colocar um CD de Bille Holiday. Como havia feito naquela noite – do pedido de noivado – catorze anos antes.

02 setembro 2010

Nem só de Pokemons e Disney vive a animação



Cefas Carvalho

É certo que a Pixar lança animações fantásticas (“Toy Story” e “Procurando Nemo” são meus favoritos) e que de vez em quando um grande estúdio acerta a mão em animações que agradam crianças e não envergonham o cérebro dos adultos que os têm (“Shrek”, claro). Mas, a verdade é que, assim como venho fazendo em relação a filmes há uns bons anos, também em relação a animações venho me afastando dos habituais mega-lançamentos dos estúdios americanos e iniciei um “garimpo” a coisas mais originais, autênticas e, sobretudo, de mais qualidade.
Meus filhos, Pedro (adolescente de 14 anos que ainda adora animação) e Ananda, de 8, vem aprovando minha nova mania cinéfila. E o garimpo vem sendo produtivo e nem tão difícil quanto se poderia esperar. Jóias como “As bicicletas de Belleville” e “Wallace e Gromitt” ganharam fama e prêmios. Uma glória foi descobrir Mizao Miyazaki (de “A viagem de Chiriro” e “O castelo animado”), já idolatrado pelos meus filhos, de quem achei o fantástico “Porco Rosso”, dos anos 80.
Recentemente duas animações recentes me encantaram: “Persepolis” e “Mary & Max”. O primeiro, premiado em Cannes e indicado ao Oscar, trata-se de uma animação francesa basicamente em preto e branco. É a história autobiográfica de Marjane Satrapi, menina iraniana que cresce durante a Revolução Islâmica. A animação fala sobre política, amadurecimento, família e religião. Como a menina Marjane, hiperativa, falante e esperta, lembra minha princesa Ananda, “Persepolis” ainda ganhou pontos comigo.
Já “Mary & Max”, animação australiana á moda antiga, é uma pérola. Estranho, adulto e inquietante, ele fala sobre a amizade à distância de uma menina de 10 anos e um senhor de 44. Ambos solitários e com vidas não convencionais.
O próxima pepita a ser garimpada é “O segredo dos Kells”, animação irlandesa que concorreu ao Oscar e fala sobre mitos celtas. “Madagascar 3 ou 4”, desenhos japoneses ultra-violentos e os xaropes musicais da Disney? Por ora, não, obrigado!

11 agosto 2010

Chuva de fogo


Cefas Carvalho

O ruído que vinha de trás era ensurdecedor, mais que isso, espetacular, sedutor. Era absurdo não poder voltar-se e contemplar o espetáculo. Na verdade, pouco ou nada em sua vida de menos de quarenta anos tivera algo que pudesse se chamar de intenso. Casara cedo com um homem mais velho. Engravidara duas vezes, em um par de anos, sem saber o que fosse carinho ou prazer. Ouvira – longe dos homens que tanto a fiscalizavam, claro – as mulheres falar nos gozos escondidos nos meio das pernas das filhas de Eva, mas, aquele era um mundo que não lhe pertencia. O que lhe cabia era a obediência. Desde tenra idade, primeiro ao pai, depois ao marido, e sempre, sempre a deus, aquele ser todo-poderoso que tudo poderia em sua onipotência. Contudo, apesar de boa filha, boa esposa, mãe irrepreensível, guardava desde seu nascimento em meio a vísceras uma rebeldia, uma tendência à desobediência que sempre estivera oculta, embora latente.
Era uma filha de deus, sim, mas era mulher! E como tal, fazia dos seus desejos incompletos, insatisfeitos, uma ponte para um derradeiro e alucinado ato de rebeldia contra tudo e contra deus. O que perderia com a desobediência? Sua vida, um amontoado de gozos não vividos, suor e resignação. O marido - bom, honesto e temente a deus – não a via como senão uma companheira de luta e abnegação. Sim, nada perderia com um instante de arrebatamento, uma desobediência calculada e que lhe poderia abrir as portas de um outro mundo. Era filha de Eva, e como tal, tinha direito ao seu pecado, a sua traição às leis divinas e humanas em prol da curiosidade inata ao seu sexo e à sua vida sem paixões.

Decidiu olhar para trás – desafiando seu marido, seu deus – quando viu as cidades vizinhas, Sodoma e Gomorra, engolidas por uma chuva de fogo e enxofre. Pareceu-lhe bela a profusão de luzes e fumaças, quando sentiu um formigamento em todo o corpo e a uma estranha sonolência. Ainda teve tempo de pensar no marido, Ló, e nas filhas, que deviam estar longe e que – sabia ela – jamais olhariam para trás. Em poucos segundos estava transformada em uma estátua de sal.

09 agosto 2010

A tua língua em minha língua


A tua língua em minha língua; eis
Nossas bocas firmando uma aliança...
Corpos entrelaçados em uma dança
Em um palco desnudo de vãs leis...
Da tormenta, fizemos a bonança!
Invertendo os corpos de uma vez...
Peças no tabuleiro de xadrez
Tendo o xeque-mate como herança...
E teus lábios (!), em minha boca, enfim...
Que me cortam, faca de um gume!
E desprendem odor de alecrim...
Se eu teus lábios derramo meu prazer...
Em meu rosto destilas teu perfume
Na madrugada pronta p´ra morrer...

26 julho 2010

Crime perfeito


Cefas Carvalho

Depois de borboletearem, indecisos, entre mesas, sentaram-se, à mesa ao meu lado. Eram quatro. O casal - o homem grisalho, a mulher loira e magra, de olhos de hamster - o de bigode felpudo e o mal barbeado, banhado de suor. Formavam uma orquestra de barulhos em tons diferentes, um grupo estranho e heterogêneo. Contudo, sentaram-se na mesa da praça de alimentação do shopping, entreolharam-se e conversaram baixinho entre si.
Bebendo minha cerveja, percebi que eles destoavam do público do shopping: casais sorridentes, crianças alegres com mães estressadas, adolescentes barulhentos. O quarteto parecia ansioso e com ares de sujeira. De repente, o grisalho sussurra algo no ouvido da mulher, que esboça um sorriso falso e se volta para o mal barbeado, que esfrega as mãos nervosamente.
Não, não havia mais dúvidas. Era como se fossem cometer um crime. Pior; como se já o tivessem cometido.
Decidi observá-los com atenção. O homem de bigode, com ar de tédio, olhava o cardápio com ar distraído. O grisalho e a mulher – que pareciam casados, ou fingiam ser um casal – conversaram alternadamente com os outros dois. Deduzi que o crime já havia sido cometido, certamente um roubo. Havia duas ou três agências bancárias naquela área. Além do escritório financeiro do próprio shopping, claro. Deviam ter roubado uma boa quantia, mandado o dinheiro embora pelos cúmplices e ali estavam para disfarçar o crime e combinar os próximos passos.
Bebiam cerveja, os quatro. Barulhenta e sofregamente. Chamaram o garçom por mais duas, três vezes. Até, com dificuldade, se decidirem. Pediram algo caro, pude perceber. Um deles, o suarento, chegou a dizer para os outros que dinheiro não era problema. A mulher, com aqueles olhinhos inquietos de rato, começou a fumar, nervosamente. Trocou três ou quatro frases com o grisalho (seu marido?). O de bigode felpudo percebeu, enfim, o cantor que se apresentava, e bateu palmas, de forma exagerada. Tudo naquele quarteto parecia suspeito. Mais que isso: denunciador.
Quando chegou o pedido, notei que era um imenso prato de carne em tiras com batatas e legumes. Mas, veio também uma tábua de frios, muitos queijos. Ainda que fossem em quatro, parecia um excesso. Dinheiro não era problema, disse (ou teria dito, um deles). Comiam com voracidade, como se o mundo fosse acabar naquele instante. Comiam como se fossem seus últimos momentos em liberdade.
O homem com o bigode felpudo não se cansava de bater palmas, para qualquer tipo de música. Dir-se-ia que desejava chamar atenção. Mas, por que alguém que comete um crime gostaria de chamar a atenção? Como disfarce, talvez. Os seguranças o olhavam como um homem barulhento, não como um criminoso.
De repente, o grisalho sacou do bolso uma caderneta de anotações e uma caneta. Certamente iriam repartir o fruto do roubo. Talvez planejar o próximo crime. O grisalho escreveu algo e entregou o papel para a mulher. Em seguida, o mal barbeado, sempre suando, apesar do ar condicionado, pegou caderneta e caneta e rabiscou algo. Chamaram o garçom, que recebeu da mão suada o papel e o entregou ao músico. Então, pediam músicas ao cantor... certamente para mostrarem normalidade. Ao fim da música, o bigodudo bateu palmas ruidosamente. Tudo muito estranho. A mulher magra acendeu mais dois ou três cigarros, incrível, como não pediam para que parasse de fumar. Talvez ela quisesse justamente isso, que a proibissem de fumar. Para despistar suas verdadeiras atividades nocivas. Contudo, ninguém se dirigiu a ela. O grisalho, pegou na sua mão, como se tentando acalmá-la e me pareceu que iniciaram uma espécie de discussão. Estariam brigando devido à divisão do dinheiro?
Foi quando o cantor anunciou que tocaria a última música da noite. Bateram palmas com mais entusiasmo e barulho do que o normal. Tudo para não despertar suspeitas, certamente. Mas, a mim não enganavam. Terminaram de comer (o suarento chegou a raspar o prato de carne e comer toda a alface, como se precisasse provar que estava faminto) e pediram a conta, com barulho.
Minutos depois, o garçom a trouxe. Deliberaram sobre algo (o pagamento da conta? Como usar o dinheiro do roubo? Novas estratégicas e disfarces?). Até que, os três homens, sacaram cada um das respectivas carteiras uma certa quantia de dinheiro e as depositaram na mão do garçom, sorridente com a possível gorjeta. Típico. Tinham muito dinheiro para gastar.
Em seguida, levantaram-se, despediram-se e foram embora, o suarento e o bigodudo para um lado (o esquerdo, do estacionamento) e o casal para o outro (o direito, onde ficava o posto de táxis). Fiquei na praça de alimentação do shopping ainda uns minutos, terminando minha cerveja e avaliando o que tinha testemunhado. Na verdade, nada tinha acontecido. Na verdade, sempre acontece algo, apenas não queremos admitir. Embora nem sempre as coisas sejam como pensamos que são, confesso.
Penso que tinham cometido um crime. Ou talvez não.

15 julho 2010

A velha camisa com estampa da janis Joplin


Cefas Carvalho

Adolescente desejoso de rebeldia que eu era nos idos anos oitenta, obviamente construía com régua e compasso meus símbolos desta suposta rebeldia. Posters de filmes e de bandas de rock pregados a durex nas paredes e camisetas com estampas de astros de rock, palavras de ordem (mas não de progresso) e ídolos juvenis, também faziam parte deste “panteão rebelde”.
Rebeldia em dose dupla, diga-se de passagem. Contra os pais (que por mais amorosos que fossem, simbolizavam “o sistema”) e contra os adolescentes “certinhos”, fossem os CDFs ou os famigerados playboys e suas roupas de “marca”. Então, contra todos e contra ninguém, como diria o Capital Inicial, dá-lhe usar camisetas com estampas de Che Guevara, Legião Urbana, R.E.M, frases de ordem contra a Rede Globo etc e tal.
Mas, nenhuma camiseta do gênero – nenhuma peça de roupa, na verdade – marcou tanto como aquela com a estampa da Janis Joplin. Sorridente, largada, colares no pescoço, óculos imensos... Como se fosse a qualquer momento fumar unzinho ou soltar uma gargalhada (como no finalzinho de “Mercedes Benz”).
Comprei a supracitada camiseta no início dos anos 90, numa tarde agradável na feirinha hippie de Copacabana. Estava acompanhado da até hoje amiga Gabriela Vilar, que também gostava de camisetas e badulaques do gênero. De início, era apenas uma camiseta como qualquer outra do estilo. Depois me percebi adotando-a como minha roupa oficial de eventos artísticos em geral e roqueiros em especial.
Foi com a camisa da Janis Joplin que assisti ao show do Guns ´n´ Roses no Rock in Rio de 1991, quando a banda ainda era (ou parecia) séria. Com a mesma camisa, um pouco suja, admito, assisti a dias depois aos metaleiros tirarem Lobão do palco a base de garrafadas no mesmo Rock in Rio. A camiseta ainda esteve no meu peito em uns dois shows do Ira! Em mais uns dois dos Titãs, e em mais uma dezena de shows diversos, bandas de amigos, bandas iniciantes, MPB etc e tal.
Também era uma espécie de amuleto para eventos culturais em geral. Com a camisa da Janis, fui a lançamentos literários, flertei com poetas esvoaçantes, chorei mágoas em saraus, freqüentei coquetéis onde passei um pouco do ponto (etilicamente falando, claro) e também com a camisa estava em dezenas de migrações a cinemas e cineclubes. Em suma, a camiseta era minha fiel companheira, a piece of my heart, se me é permitido o questionável trocadilho.
Bem, mas, o tempo passa. A vida adulta bate à porta, vem casamento, filhos, necessidade de batalhar o leite das crianças, etc. Mas, a camiseta ainda resistiu alguns anos, e não me furtei a trabalhar com ela algumas vezes, embora já reconhecesse que estava puída e que milimétricos (mas, visíveis) furos começassem a aparecer.
Decidi guardar a camisa como troféu, como já havia feito com uma do time do São Paulo e com outra verde-limão pavorosa que eu havia ganhado de uma quase-namorada numa viagem tresloucada a Taubaté, interior paulista. Contudo, a série de mudanças (de casa, de cidade, de vida) fez com que a camiseta sumisse. Provavelmente virou pano de chão e nem percebi. Tem nada não. A camiseta original e tudo que passei com ela estão na memória. Dia desses compro outra (ou mando fazer) e volto a estampar no peito a velha Janis de guerra.

(Texto publicado originalmente na revista Salto Agulha- Nº 0, julho de 2010)

12 julho 2010

Inversão de papéis


Cefas Carvalho

Sou escravo: admito
Servil vassalo teu
Arremedo de Orfeu
No inferno interdito

Reverto o jogo: faço
Da senhora, serviçal
Submissa, afinal
No pescoço, um laço

Alternando escravidão
Um e outro: chicote...
Algemas, lamber o chão...

Mestre sou: no teatro
da paz, faço boicote
Imponho: "De quatro!"

05 julho 2010

Quase-amor


Cefas Carvalho

Falas de desejo
Como quem arde, carboniza...
Como a louca sacerdotisa
Do culto ao Quase-amor...

Falas de paixão
Como quem se imola na fogueira...
Como a febril feiticeira
Do templo ao amor partido...

Falas de loucura
Como quem derrama vinho em vão...
Como a vestal do amor pagão
Da seita do amor proibido...

Falas de poesia
Como Cecília, como Florbela...
Como a desvairada sentinela
Da catedral do Quase-amor...

15 junho 2010

Vinicius que me perdoe, mas, beleza não é fundamental!


Cefas Carvalho

A campanha publicitária que mais me encantou nos últimos anos foi aquela "Campanha pela real beleza", realizada pela linha de produtos cosméticos femininos Dove. Não sei se o leitor lembra-se do filme inicial daquela campanha: um grupo de mulheres, todas fora do padrão de beleza atual (gordinhas, magrelas, sem peito, com peito demais, com pernas finas) apenas de calcinha e sutiã brancos, se divertindo e felizes com seus corpos.
A sentença final era o conceito da campanha: os produtos da Dove eram feitos não para modelos perfeitas, mas para mulheres normais. Do ponto de vista publicitário, a campanha foi genial, tanto que ainda está em andamento, foi levada para outros países e aumentou não apenas o faturamento, mas o prestígio da Dove. Do ponto de vista pessoal, a campanha atingiu algo que me é muito caro: meu fascínio por "mulheres normais". Como os amigos – conhecendo minhas predileções e vontades – vaticinaram, apaixonei-me platonicamente por duas ou três mulheres que abrilhantavam aquele comercial de TV. Todas lindas, para meus olhos.
É curioso constatar como nós (homens, mulheres em geral, talvez as mulheres ainda mais que os homens) somos levados a aceitar bovinamente o padrão de beleza que a mídia quer nos impor. Certo, este padrão de beleza mais que midiático, é cultural, também milenar, oriundo dos tempos da Grécia e Roma antigas, passando pela colonização européia. Mas é preciso reagir – ainda que em termos de libido – contra essa cultura e essa imposição. Recordo que numa roda de amigos quase levei uns tapas (mas das gargalhadas não escapei) quando disse que me sentia mais atraído sexualmente por Denise Fraga do que por Gisele Bundchen. Onde está escrito que eu tenho que achar Gisele Bundchen a mulher mais bela e gostosa do Brasil? Onde está meu direito de preferir a beleza de Cláudia Abreu, Dira Paes ou Lorena Calábria em detrimento de modelos curvilíneas e capas de Playboy? Prefiro a beleza madura de Totia Meireles à juventude de Carolina Dickermann e Mariana Ximenes. Assistindo ao filme "Chicago" reconheço os mil e um encantos de Catherine Zeta-Jones, mas minha libido pulsa mesmo é por Renee Zelwegger.
Gosto não se discute. O meu, cansei de discutir com os amigos. Por fim eles se acostumaram com meus gostos digamos normais. Em tom de picardia, eu argumentava que não era dono de agência de modelos, nunca fui obrigado a admirar preferencialmente pernas longas e torneadas, barrigas sem qualquer proeminência, seios exatos (aliás, tenho sérias ressalvas a homens que analisam mulheres por partes ... meus gostos pelas mulheres são pelo todo ...) No frigir dos ovos, admito que não vejo qualquer problema em pequenos supostos defeitos (uma barriguinha a mais, canelas finas etc). Creio mesmo que as mulheres são mais preocupadas com isso de celulite, estrias do que os homens. Meu olhar - que abrange o todo, repito – passa por estas supostas imperfeições sem sequer notar que elas existem. Pensando bem, o assunto sempre fez parte da cultura popular. Vide expressões como "beleza não põe mesa" e "quem ama o feio bonito lhe parece". Recordo agora de Vinicius de Moraes, um dos meus poetas preferidos, quando assinalava sua frase: "As feias que me perdoem, mas, beleza é fundamental". O poetinha que me perdoe, mas a beleza - nos padrões generalizados - não é fundamental. Maior exemplo disso p ode ser visto no filme "A insustentável leveza do ser", do americano Phillip Kaufmann, baseado no livro do tcheco Milan Kundera. A chamada "cena da mulher feia" é uma das mais significativas (e excitantes) tanto do livro como do filme: o protagonista Tomas, médico charmoso que é obrigado pelo regime comunista de então a trabalhar como limpador de vidraças, recebe um chamado profissional de uma mulher que se mostra gritantemente feia, de corpo e rosto, mas que flerta explicitamente com Tomas. As insinuações da mulher feia, suas caras e bocas, suas frases ambíguas e a forma como ela se senta numa cadeira chegam a tal grau de erotismo que não há um homem na platéia que não fique excitado. Nem Tomas consegue escapar de tais encantos. Não é a beleza que põe mesa, mas sim o charme. E este, felizmente, não se encaixa em padrões das revistas de moda e dos programas de TV. Ah, e voltando às lindas gordinhas e magrelas da Dove, quem quiser acessar o site, basta acessar www.campanhapelarealbeleza.com.br. E viva a beleza real!

(Texto publicado na Revista Papangu de junho de 2006)

04 junho 2010

O conga e o congresso





Cefas Carvalho

Cada um ouve as palavras como quer. Foi esta a conclusão que dia desses, eu e os amigos petistas Amorim e Fernando Mineiro chegamos, após uma conversa sobre músicas - após a conversa sobre política, claro - e os equívocos que as pessoas cometem em relação às letras. Eu havia recordado como o brasileiro erra a letra do hino nacional. Tudo bem que a letra é por demais pomposa e arcaica, mas, convenhamos, não saber duas frases de uma letra que ouvimos desde a mais tenra infância é dose. Em um artigo na revista Papangu, recordo que Damião Nobre escreveu sobre o tema, registrando que muita gente canta o “Ouviram do Ipiranga” como “Ouvirumdumpiranga”. Dúvidas? Confira quando os jogadores da seleção brasileira cantarem (?) o hino na Copa do Mundo.
Nos divertimos lembrando de equívocos em relação a canções de Fagner, Renato Russo e até Chico Buarque. Foi quando me lembrei da explicação que o zagueiro Odvan, revelado pelo Vasco da Gama e chegou a jogar pela seleção na malfadada era Vanderlei Luxemburgo, deu em uma entrevista ao Esporte Espetacular deu sobre seu nome: sua mãe era fã de Roberto Carlos e quis homenagear “O Rei” dando ao filho o nome de uma de suas canções. Mas, espere aí, Roberto não tem nenhuma canção chamada “Odvan”. Tem sim, segundo a mãe amorosa: “O divã”.
Foi quando Mineiro recordou de caso que ouviu em um programa de rádio do interior. O locutor, todo animado, recebia telefonemas dos ouvintes pedindo músicas. Foi quando uma senhora entrou no ar, feliz e serelepe, mandando beijos para toda a família e pedindo a música “O conga e o congresso”. O locutor estranhou. De quem, a música? Roberto Carlos, claro, disse a senhorinha. O locutor quebrou a cabeça e não conseguiu lembrar que o Rei tivesse escrito alguma canção sobre o Congresso Nacional e sobre um tipo de tênis (lembram-se do bom e velho conga?). Pediu para a mulher cantarolar um trecho da música. Então, ele entendeu. Ela pedia “O côncavo e o convexo”...

25 maio 2010

Despedida de Solteira


Cefas Carvalho

Surpreendi-me com o telefonema dela. Havia muito tempo (um ano?) que não me telefonava. Clarissa era sempre surpreendente. Primeiro conversou banalidades, perguntou sobre a vida, a esposa, os filhos, estas coisas... depois adentrou o terreno da malícia – território na qual ela tinha total domínio – relembrando histórias picantes do passado... Por fim, comunicou que iria se casar no mês seguinte. Desejei felicidades, ainda estranhando a conversa e ela comunicou que mandaria convites e fazia questão que eu e minha esposa Raíssa estivéssemos presentes no casamento. “Mas não é para isso que estou telefonando...”, comentou. “E qual a razão do telefonema?”, perguntei. “É que eu pretendo fazer uma despedida de solteira e gostaria de te convidar...”, sussurrou. “Pensei que as despedidas de solteira só envolvessem mulher”, retruquei. “Esta despedida de solteira é especial. Não haverá mulheres, apenas eu”. “Vai convidar apenas homens?”, ri. “Eu não disse isso... o único homem convidado é você...”, respondeu. Compreendi imediatamente. Entrei no jogo de Clarissa e combinamos então o dia, a hora e o local da tal despedida de solteira.
Na quarta-feira ao meio dia, “para evitar suspeitas, afinal, você é casado e eu sou uma noiva fiel e respeitadora...”, riu, debochando de si mesma e da situação. Clarissa continua louca!, Pensei. Mas, e daí? Eu não havia me apaixonado por ela no passado justamente por que era louca? Bem, confesso que esperei com apreensão a quarta-feira, que enfim chegou. Ela ligou para meu celular às onze confirmando tudo e marcou o encontro em um posto de gasolina na BR-101, já em Parnamirim. Lá, ela deixou o carro estacionado discretamente e entrou no meu. Discutimos rapidamente para qual motel iríamos e logo fechamos por um de qualidade que fosse discreto e nas proximidades. Na suíte, percebi logo que o tempo só havia melhorado Clarissa, como um vinho que eu iria começar a degustar. Não estou falando de seu corpo – ainda belo mas com as inevitáveis marcas do tempo e da gravidade – nem de seu rosto – não havia maquiagem que escondessem algumas rugas e um olhar cansado antes impensável – mas de sua personalidade e de seu modus operandi. Os olhos brilhantes, imensos, acastanhados, continuavam insanos... suas mãos estavam ainda mais hábeis, assim como seus lábios... seu corpo correspondia ainda mais ao meu corpo do que antes, como se no máximo de seu potencial. Comentei tudo isso com Clarissa durante o ato... “Você ainda não viu nada...”, sorriu, desvairada. Dito e feito. Eu ainda veria – e sentiria – muito mais coisas nas quatros horas que se seguiram, de um deleite que poucos vezes havia experimentado na minha vida já de tantos prazeres. Às quatro e quinze da tarde começamos a nos arrumar, pois que ela havia marcado com o noivo no Praia Shopping às cinco horas. Deixei-a no posto de gasolina e sem maiores delongas nos despedimos pragmaticamente. “Te vejo no meu casamento”, disparou. Não tivemos oportunidade de conversar sobre isso, mas comecei a me perguntar porque ela iria se casar e o que ela esperava do seu casamento. Tolice. Por que analisar as coisas se é melhor apenas vive-las e pronto? Desta forma, voltei à minha vida, a Raíssa e esqueci-me de Clarissa e de nossa tarde de idílio. Recebi em casa o convite de casamento, mas inventei um trabalho qualquer para não ter que ir. Tampouco Clarissa entrou em contato comigo antes ou depois das núpcias.
O tempo passou. Diria até que havia esquecido a despedida de solteira da qual participei quando, dois anos depois, vejo no visor do celular um telefone estranho. Atendo e eis minha surpresa: era Clarissa. Começou falando banalidades como sempre. Por fim, perguntou como estava meu casamento (muito mal), minha vida profissional (razoável) e falou sobre ela própria... Não apenas estava em crise no casamento como muito próxima da separação... Relatou alguns dos problemas que estava vivendo, choramingou um pouco... Como eu estava prestes a entrar em uma tensa reunião de trabalho e não estava com muita paciência, perguntei logo o que queria. Clarissa então respirou fundo e disparou: “Na verdade, eu queria uma despedida de casada”. “Como assim”, estranhei. “Quero ter certeza que o melhor a fazer é me separar... e só vou ter essa certeza se for para cama com outro homem. Seria então minha despedida de casada...”, assinalou, já com voz mais lasciva do que triste. O que fazer? Bem, se eu participei da despedida de solteira dela, achei que seria uma descortesia não fazer parte da despedida de casada. “Pode marcar dia, hora e local”, respondi. “Lembra-se daquele posto de gasolina?...”

19 maio 2010

Como assistir filmes em 3D nos anos 80


Cefas Carvalho

Dia desses, conversando on line com minha irmã, a mitológica Rosa Williams, sobre experiências cinematográficas, lembrei com humor que fui pioneiro em assistir filmes em 3D ainda nos anos 80.
Espere aí, tecnologia 3D em uma década que ainda assistíamos filmes em VHS nos velhos e bons (mas nem sempre) videocassetes? Explico.
Ano de 1989. Combino com um amigo roqueiro (guitarrista da banda Facínoras, que marcou época na Zona Sul do Rio de Janeiro sem ter feito sequer um show...) assistirmos a “Tommy” no Cineclube Cândido Mendes. Claro, já havia assistido meia dúzia de vezes a ópera-rock do The Who, mas na telinha na TV. Expectativa em ver o delírio de Ken Russel na tela grande. Chegamos no Centro cultural uma hora antes de começar o filme. “Que tal uma cerveja?”, propôs Breno. Rumamos para um boteco próximo. Contudo, separada a grana para as entradas, constatamos nosso liseu. Cerveja? Melhor não. Pensamos na boa, velha e barata cachaça, mas nem eu nem o amigo éramos chegados à “mardita”. Foi quando ele avistou numa prateleira uma garrafa de Campari. Barata a dose, forte o efeito. Não contamos conversa. Por falar em conversa, eis que conversa vai, conversa vem, entornamos cada um sete doses de Campari. E estava quase na hora de começar o filme.
Cinema quase vazio, apagam-se às luzes e percebo, então, que uma tonteira começa a se apossar de mim. De repente, sem trailler, sem aviso nenhum, começa o filme. Luzes, montagem rápida, um avião em chamas, uma guitarra ensandecida. “It´s a boy, Mrs. Walker, it´s a boy”, canta a enfermeira.
Logo depois, quando termina a cena em que Ann Margaret e Oliver Reed cantam “Christmas”, sinto a cabeça mais pesada e os olhos mais sensíveis à luz. “Acho que estamos um pouco bêbados”, comentou Breno. A partir daí, assisti o filme em terceira dimensão, o 3D. Em “Gypsy Queen” parecia que Tina Turner estava cantando na minha frente. E Elton John em “Pinball Wizzard”, que se abrisse os braços corria o risco de acertar meu rosto? Como confessar que tentei me proteger quando chove champanhe do aparelho de TV? Tudo 3D puro! Claro que na cena final também tentei escalar as montanhas, só que quando acenderam as luzes eu e Breno olhamos um para o outro espantados com a experiência que tivemos. E uma leve vontade de vomitar, claro.
Mas, vive experiência parecida dois anos depois, quando da estréia de “The Doors”, de Oliver Stone, no Cineclube Estação Botafogo. Iniciado que era na obra de Jim Morrison, estava na expectativa que o filme abordasse a relação do roqueiro com xamanismo e drogas. Tendo marcado com dois amigos que não apareciam (na época celulares não existiam, crianças), resolvi tomar umas cervejas no bar ao lado da bilheteria. Eis que três cervejas depois vendo o dinheiro escassear, venci meus pruridos e pedi uma dose de cana. Depois mais duas. E lá fui eu sozinho assistir ao filme.
Novamente, meio grogue na sala de exibição e vivendo meu 3D particular. Particularmente na cena em que Morrison está no palco e delira com índios dançando á sua volta, quase levantei da cadeira para invocar Mr. Mojo. No fim das contas, boas lembranças de anos que não mais voltam. O único problema deste tipo de 3D era a ressaca no dia seguinte.

10 maio 2010

Exumando cadáveres


Cefas Carvalho

Pouco ou nada eu poderia reclamar da vida. Bem casado com Viviane, pai de dois filhos – Daniel e Jussara – e estabilizado no emprego, como gerente de uma concessionária de veículos, eu tinha virtualmente tudo que um homem poderia querer: uma mulher bonita, filhos saudáveis, um carro, uma moto, estava quitando minha casa e começando a adquirir uma casa de Praia em Tabatinga. De quebra, era ainda jovem – tinha 34 anos – e saudável, a ponto de jogar futebol religiosamente todos os sábados à noite e de quebra não fazer feio no squash. Enfim, eu não tinha o que reclamar da vida, repito.
Contudo, nem toda a felicidade do mundo consegue fazer um homem ficar quieto, e o demônio sempre à espreita da curiosidade acaba por atentar a qualquer um de nós. Não, que não se pense que estou falando de uma traição conjugal. Seria mentira dizer que fui totalmente fiel a Viviane em doze anos de namoro, noivado e casamento, mas tampouco nenhuma destas infidelidades passou de uma noite, com mulheres que mal soube o nome, gerando casos que jamais vieram à tona.
O problema começou quando comecei a usar o tempo ocioso no trabalho não mais na copa, bebendo cafezinho e discutindo futebol com os vendedores, mas sim à frente do computador, na minha sala. Respaldado pela privacidade e pela total confiança que os donos do negócio tinham em mim, comecei a usar este tempo livre para desestressar, como dizem hoje, jogando paciência.
Descobrindo a Internet, providenciei um e-mail para mim. Se no início ela me serviu para assuntos profissionais, logo comecei a me comunicar com amigos e conhecidos e não tardei a adentrar o universo dos bate papos virtuais, tão freqüentados por mulheres aparentemente interessantes. Não, ainda não foi aí que o diabo entrou em meus pensamentos. Contudo, a partir daquele momento, iniciei-me no mundo no MSN. Também nele nada fiz que não pudesse relatar à minha Viviane.
Todavia, um amigo convidou-me a entrar no Orkut. A princípio imaginei que explorar a tal comunidade virtual não me traria qualquer novidade, seria até mesmo tedioso. Ledo engano. Procurando comunidades em comum com pessoas que me eram caras, resgatei velhos amigos e amigas. Reencontrei colegas de trabalho cujo paradeiro que desconhecia havia anos. Viciei-me não em fazer novos amigos, mas procurar e reencontrar velhos conhecidos, enfim.
Em uma tarde monótona, véspera de feriado, eu me encontrava na frente do monitor, cansado do MSN e do Google, quando o diabo me soprou no ouvido o nome de uma antiga namorada de adolescência. Digitei o nome dela para procura no Orkut e eis que tive na minha frente o seu perfil, com foto. Gostei da brincadeira e repeti a operação com mais três ex-namoradas.
Foi quando ganhei coragem de procurar pelo perfil de Bruna, namorada durante um bom par de anos e que cheguei a ensaiar um noivado até que o conflito de nossas personalidades fortes nos levasse ao término do romance. Se digo romance, é porque nosso relacionamento foi marcado por nuances de amor e paixão. Juntos, fizemos viagens, planos, aventuras, realizamos fantasias...Durante algum tempo, mesmo quando já havia iniciado namoro com Viviane, acreditei, como tanta gente faz em relação a alguém, que Bruna, com seus longos cabelos castanhos, suas sardas, seu sorriso quase infernal, sua agitação, euforia e temperamento forte, tivesse sido o amor da minha vida.
Já casado com Viviane, descobri que ela também casara, com um microempresário do ramo de informática e fora morar no interior de Minas Gerais. Logo os amigos em comum perderam contato com ela e o cotidiano me fez com que ela fosse subtraída dos meus pensamentos mais constantes.
Portanto, foi com certa apreensão que iniciei a busca por ela no Orkut, torcendo, no íntimo, que não desse em nada. Pelo que lembro, ela não é chegada nestas coisas de tecnologia, pensei. Tolice. De repente, surgiu na minha frente uma foto dela, com os cabelos pintados de loiro, mas as mesmas sarda. Alguns anos mais velha – fato ratificado por algumas rugas – mas ainda linda e com os olhos em fogo. Li seu perfil. Muito do que estava escrito ali eu conhecia, seus gostos, suas paixões... O que me chamou a atenção foi seu estado civil: solteira. Teria ela se separado do marido? Resisti à tentação de entrar em contato durante alguns dias.
Contudo, em uma bela noite, em casa mesmo, com Viviane e as crianças em casa já dormindo, mandei uma mensagem para ela pelo Orkut. Não me interpretem mal...Fui formal, discreto, quase seco. Mandei lembranças, perguntei pelos filhos, e no final, despedi-me com um abraço. Que besteira, pensei, ela mal deve lembrar-se de mim lá em Minas.
Não era bem assim. No dia seguinte recebi a resposta dela. Dizia que jamais me esqueceram e que estava morando novamente em Natal, divorciada, havia alguns meses. Não tinha vontade de rever os antigos amigos, mas queria me encontrar.
Resolvi deixar o Orkut de lado e mandei uma mensagem para seu e-mail, mais privado. Contudo, eu continuava formal. A resposta de Bruna é que não o foi. Ela se lembrava de momentos ardentes do passado, fazia brincadeiras maliciosas... era a mesma de quinze anos atrás, enfim. Trocamos e-mails durante duas semanas até marcarmos um encontro no Praia Shopping. Abraçamos-nos, conversamos sobre nossas vidas, nossas famílias, ela riu dos cabelos brancos que insistiam em aparecer em meu couro cabeludo, bebemos chope... Ouvi seus desabafos sobre o casamento fracassado, a barra de cuidar dos filhos e de voltar a morar na casa da mãe... Pensei que neste ritmo ficaríamos bons amigos, como tantos ex-namorados o fazem.
Mas, quando estava no caminho natural para levá-la para casa – a Avenida Salgado Filho, já que ela morava em Petrópolis – Bruna murmurou que não queria ir para casa. Para onde quer ir então?, Perguntei tolamente. Para um lugar onde possamos ficar sozinhos e lembrar os velhos tempos, respondeu. Então, os hormônios, somados ao álcool e à memória, falaram mais alto e terminamos a noite na suíte Diamante do Motel Bahamas. Ela queria pernoitar e a muito custo consegui lembra-la que eu era casado e deveria não apenas voltar para casa em horário cabível, como satisfações á minha esposa. A contragosto, ela concordou em sairmos, sob minha jura que repetiríamos a dose. Concordei, claro. Quem não o faria?
Três dias depois repetimos a dose, desta vez iniciando o idílio às sete da noite. Ficamos desta vez no Romangarden, até meia noite. Preocupado, refleti o quanto aquela brincadeira era perigosa. Mas as delícias experimentadas com Bruna eram intensas demais para que eu tivesse forças para parar. Passamos a nos encontrar duas vezes por semana, tanto de tarde como de noite. Eu estava preocupado se Viviane não perceberia a situação, mas ela parecia não desconfiar de nada. Comecei a me sentir culpado, achava que deveria terminar o caso com Bruna, mas, repito, não conseguia parar. Minha vida com Viviane era maravilhosa, mas tranqüila, quase monótona. Com Bruna eu tinha sexo de primeiríssima qualidade, emoção, riscos e de quebra toda uma afinidade do passado.
Todavia, eu deveria ter previsto que Bruna não se contentaria com pouco. Ela queria mais. Passou a exigir mais tempo, mais atenção, mais presentes. No dia de seu aniversário, calhou que eu tinha um compromisso social com Viviane. Essa desfeita custou-me alguns dias sem vê-la. Foram dias pavorosos, admito. Implorei para reatarmos o, digamos, romance. Ela concordou, mas disse com todas as letras que queria me ter por mais tempo.
Que poderia eu fazer? Concordei, iniciando então um período de mentiras em casa e no trabalho para conseguir tempo para Bruna. Eram horas esporádicas, às vezes no intervalo para o almoço, outras no final da tarde, com a desculpa de reuniões... Enfim, passei a levar uma vida dupla, uma existência sobressaltada. Estranhamente, Viviane parecia não perceber nada. Felizmente, ela passava a maior parte do tempo cuidado da casa e das crianças ou trabalhando no computador. Para mim, estes trabalhos de digitação que ela começara a fazer em casa caíram do céu, já que a mantinham ocupada e de certa forma distante. Dediquei-me ainda mais a Bruna. Eram presentes, mimos, agrados, horas fortuitas em diversos motéis, saídas cada vez mais ousadas para barzinhos... Sim, não era mais como se fôssemos meros amantes. Eram como se estivéssemos namorando. Conversávamos longamente sobre o passado, sobre como poderia ter sido a nossa vida se tivéssemos ficado juntos. Comecei a retornar para casa para vez mais tarde, as vezes Viviane estava trabalhando no computador, outras vezes já estava dormindo... Acostumado a ser fiel e caseiro, sentia a consciência amargar.
Por fim, aconteceu o que era previsível. Com sua habitual personalidade forte, Bruna jogou-me contra a parede: estava apaixonada por mim, disse, e queria ficar comigo de vez, sem subterfúgios, sem escapadas. Enfim, queria um relacionamento. Ou então, o rompimento. Tentei contra-argumentar, mas ela se manteve irredutível. E queria a resposta rapidamente.
No caminho para casa, após tal conversa, percebi que, com o auxilio do Orkut, eu havia exumado um cadáver, para usar de uma expressão algo grosseira, mas que se aplicava exatamente ao que estava se passando comigo. Minha vida estava quieta, tranqüila, até que eu resgatara do passado algo que estava morto e enterrado, mas que mantinha imenso potencial de sedução.
Confuso, percebi que não sabia o que queria. Evidentemente, não pensava em terminar um casamento sólido, com filhos e segurança... mas por outro lado, não imaginava mais a minha vida com Bruna. Embora não fosse hábito meu, pensei que uns drinques me fariam raciocinar melhor. Enfurnei-me em um bar decadente na Praia do Meio e bebi o suficiente para embaralhar ainda mais minhas idéias. Por fim, não sabia mais o que queria.
Ao entrar no carro, para voltar para casa, pensei em contar tudo a Viviane e esperar pelo pior. Afinal, ela terminando o casamento eu estaria livre para ficar com Bruna. No meio do caminho raciocinei que seria uma besteira por fim a um casamento de tantos anos por causa de uma paixão... E se eu conseguisse protelar a situação com Bruna? Pouco provável. Eu conhecia seu poder de decisão. Se eu não concordasse com seus termos o mais provável é que ela me esquecesse novamente e fosse à procura de um novo amor, com grandes chances de encontrá-lo rapidamente.
Em suma, não sabia o que fazer. Apenas acreditava que não queria – ou não podia – mais viver sem Bruna. Chegando em casa, abri a porta da sala com todo o peso do mundo nas minhas costas. Minha esposa não merecia isso, pensei. Ao entrar em casa, todavia, tive uma surpresa. Viviane estava sentada no sofá, usando um vestido preto bastante curto, com um copo de uísque na mão direita. Um cigarro aceso crepitava em um cinzeiro ao seu lado. Ela reparou em minha expressão surpresa, afinal, Viviane nem bebia uísque nem fumava, mas não sorriu. Ela descobriu tudo sobre Bruna, pensei. O que deveria fazer? Confessar e pedir perdão? Negar?
- Precisamos conversar... – murmurou, com um fiapo de voz na garganta.
Sim, ela descobriu tudo, concluí. Derrotado, sentei-me no sofá á sua frente. Percebi então que não queria perde-la e decidi lutar com todas as forças para não perde-la por causa de minha infidelidade.
- Pode falar... – respondi. Ela bebeu do uísque, respirou fundo e disparou: - Nos últimos tempos temos andado distantes um do outro. Talvez você esteja trabalhando demais, talvez tenha uma amante, não sei...Mas isso não vem ao caso. O fato é que há alguns meses eu percebi que a vida que eu estava vivendo não era o que eu queria, não me satisfazia mais como antes, se é que algum dia eu me satisfiz com ela. Não estou reclamando de você....sempre te achei um ótimo marido, um ótimo pai, não tenho queixas quanto a você...o problema sou eu mesma. E justamente quando eu estava pensando no que deveria fazer da minha vida reencontrei em um bate papo na Internet um antigo namorado, o André. Você se lembra que eu já falei dele, não? Namoramos uns dois anos antes que eu te conhecesse. Eu era louca por ele, ou pelo menos achava que era. Eu não era mais virgem, mas tampouco sabia o que era prazer. Foi com ele que eu descobri tudo que se poderia fazer na cama...enfim, ele me ensinou muitas coisas. Um dia ele me pediu em noivado, falou em casamento. Como me sentia muito nova para casar, recusei, mas no fundo sentia vontade de dividir uma vida com aquele homem um pouco mais velho que eu, ousado, que tanto falava em viagens e aventuras. Meses após minha recusa, ele foi morar na Austrália. Deduzi que a partir dali ele iria correr pelo mundo e emocionalmente desisti dele. Comecei a namorar Rubinho, um rapaz que estudava no cursinho comigo, ciumento e imaturo como poucos e meses depois conheci você, que me parecia a perfeição: equilibrado, seguro, sem excessos, me apaixonei por você e também por... mas era uma paixão contida, segura, que até me faz bem, mas não me completa por inteiro...aí em um bate papo na Internet, numa noite dessas, eis que reencontro André em uma sala de bate papo...começamos a nos teclar, falamos sobre a vida, ele falou das viagens que fizera e de como continuava procurando algo mais...enfim, não tardou que trocássemos telefones e nos encontrássemos. Mas, não pense mal de mim, querido, eu estava decida apenas a encontrá-lo como amigo. O problema é que a situação saiu do meu controle. Ficamos juntos, relembramos o passado e o fato, meu querido, é que descobri que estou apaixonada por ele... Acho que eu e você somos maduros o suficiente para negociamos uma separação tranqüila e amigável... Por que está fazendo essa cara? Não fique assim, meu amor, eu só estou dizendo que quero morar e viver com André... Tenho certeza que você vai me compreender...
Claro que eu compreendera. Viviane também exumara um maldito cadáver. Deveríamos ter deixado os mortos sepultados, mas, eis que agora era tarde demais. Sorri, passei a mão suavemente em seus cabelos e fui para o quarto arrumar minhas malas.

26 abril 2010

Cachorro quente ou hot dog?


Cefas Carvalho

Receoso de ferir os brios patrióticos dos amigos e amigas do país de Mossoró, resisti bravamente a escrever o texto que se seguirá. Temia que ele colocasse mais lenha na centenária rixa entre natalenses e mossroenses, com os primeiros geralmente tecendo piadas ferinas e comentários maldosos a respeito do comportamento das gentes de Mossoró.
Contudo, durante recente confraternização cultural (e etílica) na 1ª Feirinha de Livros de Currais Novos, o comandante em chefe da Revista Papangu, Tulio Ratto, garantiu não somente a publicação de tal texto sem censuras como minha integridade física (tendo em vista a pouco hercúlea compleição física de Tulio, não estou certo que sua garantia de segurança me valerá de muita coisa...). Ainda assim ganhei coragem para escrever sobre uma aventura gastronômica que vivi na terra de Santa Luzia. Que os amigos Cid Augusto e Kydelmir Dantas, pacatos e bons companheiros, que viram gladiadores na hora de defender Mossoró, me perdoem.
Bem, vamos à história. O episódio aconteceu nos idos de 1992, quando eu acabava de ter o prazer de entrar na redação da Gazeta do Oeste, nos bons tempos em que Canindé Queiroz comandava uma equipe de até hoje bons amigos como Carlos Santos, Cesar Santos, Gutemberg Moura, Augusto Paiva, Emerson Linhares, e outros. Mas, deixemos de nostalgia. O fato é que eu acabava de chegar a Mossoró, cidade que conhecia apenas superficialmente, e ainda não havia me detido na vida cotidiana e nas particularidades mossoroenmses.
Na minha primeira semana, lanchava (e almoçava, diga-se) baurus no treiller de Titi, ao lado da Gazeta. Em uma bela tarde, o trailler se encontrava fechado e resolvi sair a esmo pelo centro à procura de uma lanchonete. Numa rua, cujo nome não recordo, lá perto do legendário Restaurante do Mathu, descobri uma lanchonetezinha. Estava vazia e parecia agradável, apesar de simples. Senti ao balcão caçando o cardápio ou coisa que o valasse. Inútil.
Por fim, surgiu da cozinha um rapaz resmungando um boa noite que mais parecia um convite para me retirar. Resolvi ficar, e perguntei se tinha algum salgado, tipo pastel ou empada. Secamente, ele respondeu que não. Perguntei então se tinha cachorro quente... O cidadão coçou a barba por fazer e disparou: “Amigo, você quer cachorro quente ou hot dog?”. Senti no momento um vazio mental, tal a irrealidade da pergunta.
“Mas, qual a diferença entre um e outro?”, perguntei, inocentemente. O cara me olhou como se eu fosse imbecil – talvez o fosse, naquele instante – e respondeu, todo senhor de sua secura: “Cachorro quente é com carne moída, hot dog é com salsicha!”. “Ah, é claro...”, concordei, como se respaldando uma verdade absoluta. Acostumado que era a comer os tradicionais cachorros-quentes com salsicha, à moda americana, lá no jurássico Passport, na Praça Cívica, em Natal, desde a mais tenra infância, deveria ter optado pelo que conhecia. Mas, a vontade de desbravar culinárias estrangeiras falou mais alto. “Me veja um cachorro quente aí”, pedi.
O camarada foi para a cozinha. Retornou logo trazendo em um prato azul, um pão cheio de carne e verduras, fumegante e cheiroso. Contudo, um detalhe: no prato, garfo e faca! Educadamente, peguei os talheres e coloquei-os no balcão. “Obrigado, mas não vou precisar”. O rapaz nada falou. Empolgado, com o aroma, puxei dois guardanapos de papel e avancei as mãos para o prato, dando início à minha tragédia. Mal levantei o pão á boca, o bicho começou a se liquefazer. Nervoso, inclinei o pão, derramando um caldo marrom em minha calça jeans. Ainda mais nervoso, coloquei o pão no prato e ele – já mais liquido do que sólido – praticamente se desmanchou. Olhei para a calça e parte da camisa, todas sujas e pensei em protestar, quando reparei na expressão impassível do cidadão, me olhando com a superioridade natural que um nativo de Mossoró encara forasteiros de culturas primitivas. Concluí que era inútil reclamar. O culpado, afinal de contas, era eu. Olhei para o cachorro quente que havia pedido, na verdade quase uma sopa, e não um sanduíche. Não havia como resistir àquele caldo onde boiavam pão molhado, carne, cebola, tomate e pimentão. Recolhido à minha insignificância, olhei com humildade para o sujeito, que esboçava um sutil sorriso nos cantos da boca e pedi: “Amigo, por favor, me veja garfo, faca e uma colher...”

(Publicado originalmente na Revista Papangu de 31 de agosto de 2006)

05 abril 2010

"Para o inferno"


Cefas Carvalho

Entrou no táxi apressado – os olhos injetados e doentios - e instalou-se no banco traseiro. O taxista, envolto em suor e tédio perguntou: “O senhor quer ir para onde?” "Para o inferno", respondeu o passageiro. O taxista virou-se. Percebeu no olhar do estranho passageiro - um homem maduro, corpulento e de modos sombrios - um desespero mesclado com uma inusitada serenidade. O homem sustentou o olhar do taxista e implorou: "Por favor, siga em frente". O taxista suspirou e obedeceu. Esperou que alguns segundos se passassem para perguntar novamente: "Para onde o senhor vai?". "Se eu soubesse...", suspirou o passageiro, para completar: "Quem sabe para onde vai? Você sabe para onde vai?". O taxista hesitou: "Eu vou para onde o senhor disser que iremos". "Se eu não sei para onde vou, como pode dizer isso?". "Preciso que o senhor diga para onde quer ir, ou vou ter que parar o carro para não gastar gasolina". "Eu entrei no seu táxi dizendo para onde queria ir: para o inferno.". "Não posso te levar para o inferno". "Então me leve para algum lugar parecido". O taxista hesitou novamente. Que lugar lhe assemelharia mais aos mundos infernais? Sua própria casa, com sua esposa que mal lhe dirigia a palavra havia anos e os filhos adolescentes que não o respeitavam? O clube no domingo com os amigos interesseiros e as brigas que fatalmente aconteciam? Os encontros semanais com o dono do táxi, que lhe cobrava impiedosamente o aluguel do veículo e sempre reclamava de alguma coisa? De repente todos os aspectos de sua vida lhe pareceram infernais, e em uma questão de segundos se perguntou se valia a pena estar vivo. Mais: se queria ainda continuar vivendo. Realmente vivera ao longo daqueles anos todos de necessidades e humilhações. Freou o carro, subitamente. "O que houve?", perguntou o passageiro. "Que houve?". "Não posso te levar para o inferno. Descobri que já vivo nele". "Então, faça o que tem que fazer". "É o que o senhor quer?". "Com certeza. Vamos, homem, resolva tudo por nós dois". O taxista então deu partida e rumou para a ponte quebrada e abandonada na zona noroeste da cidade. Sempre quis passar direto pelos cones que alertavam os motoristas do perigo. Sempre quis saber se a água do rio era realmente gelada e lodosa, como diziam. Sempre quis descansar de sua própria vida. Ainda que fosse no inferno.

19 março 2010

Noite passada sonhei que alguém me amava


Cefas Carvalho

Ela olha para a taça de vinho como quem observa uma escultura de Rodin, entre a contemplação e o espanto. Olhos fixos na bebida, mas como se nem ela - a mulher – nem o vinho estivessem ali, mas, muito longe. É estranho que esteja bebendo vinho. Normalmente bebemos vinho quando acompanhados, não sozinhos. A solidão é mais convidativa para uísque, aperitivos, coquetéis. Mas, ela bebe vinho tinto e isso torna a solidão dela mais extensa, como se fosse crescer e engolir todo o bar, todo o mundo.
O nome dela é Luiza. Tem trinta anos. Talvez durante o dia pareça ter menos e seja mais bonita, mas, sentada à mesa com os olhos fixos na bebida, parece carregar todo o peso e a tristeza do universo. Rugas e olheiras despontam de seu rosto como plantas. Mas, nada disso importa.
Quanto a mim, me chamo Carlos, trabalho como barman neste local há seis meses e estou completamente apaixonado por ela.
Ela jamais me olhou, isto é, jamais me viu como um ser humano. Sou apenas o barman a quem ela pede vinho, cigarros e isqueiro. Depois paga a conta, desfralda um sorriso amargo e vai embora. Mas, repito, não importa. Eu a considero a mulher mais linda do mundo e se ela me dignasse a trocar três frases comigo, eu iria para casa feliz, sozinho, mas feliz.
Sei que se chama Luiza porque, uma noite, ela pagou a conta com cheque. Chama-se Luiza Nunes dos Santos. Pela tonalidade mais clara no dedo anelar da mão, deduzo que usava aliança até pouco tempo. Era casada, portanto.
Que mais sei sobre ela? Que quando gosta da música ambiente tamborila na madeira do balcão, como se acompanhando a melodia. Por vezes, sua tristeza parece ceder espaço a um encantamento produzido pela música. Recordo de uma noite, antevéspera de natal, quando coloquei no som uma canção antiga do The Smiths:
Last night I dreamt that somebody Love me
No hope, but no harm, just another false alarm

Ela olhou para o teto como se esperando algo – uma revelação, um manual de instruções – cair do céu. Em seguida, roeu as unhas, o que fazia quando estava mais tensa que o habitual, eu o percebia, e pediu outra taça de vinho.
Jamais se embriagava. Jamais perdia a compostura. Apenas bebia vinho e respirava seu próprio desespero. Quantas noites não pensei em tirá-la do seu transe e dialogar com ela. Saber se tinha filhos, o que fazia durante o dia, onde trabalhava, do que gostava de comer. Mas, como resgatá-la do poço onde ela se jogara com sua solidão?
Hoje, ela se foi mais cedo. Com mais tristeza no olhar do que o habitual. Também bebeu mais vinho que de costume. Usava um vestido preto com manchas esbranquiçadas. Sem maquiagem, seu rosto parecia precocemente envelhecido. Não importa, eu continuo apaixonado por ela.

*

Ela olha para o copo de uísque com amargura milenar, como se o peso de séculos tivessem caído sobre sua cabeça. Ela tem cabelos loiros amarrados com negligência. Usa batom e tem os olhos moldurados por rímel preto. Termina a dose com rapidez pede outro uísque. Reclama que a dose poderia ser maior e que coloquei gelo em excesso no copo. Depois reclama que está calor no bar. Em seguida pede o isqueiro e comenta sobre as chuvas que caíram na cidade na noite anterior.
Não, a mulher sentada ao balcão não é Luiza. Chama-se Julia, e sei disso porque ela se apresentou tão logo servi a segunda dose. Sorri para mim, depois diz que está sem cigarros. Pergunta se eu fumo e respondo que não. Ela está sentada onde Luiza costumava sentar, para beber vinho tinto em lentas taças, tamborilar ao som de velhas canções e exalar toda a tristeza que uma pessoa pode sentir.
Sirvo mais uma dose para Julia. Em seguida, atendo a outros clientes. Tenho dificuldade para olhar em direção onde ela está sentada. Onde Luiza costumava ficar.
Luiza tirou a própria vida na noite de ontem. Tomou dezenas de anfetaminas com vodca. Não houve dúvida que foi suicídio. A polícia encontrou junto ao corpo um breve bilhete dela despedindo-se da vida. O dono do bar, passando pelo prédio onde morava, testemunhou o corpo, embalsamado em plástico preto, ser retirado do local.
Descobri, então, que morava duas rias depois do bar. Nada mais sei sobre ela. Nem quero saber mais nada. Sei que eu a amava, por estranho que possa parecer.
Julia pede uma porção de azeitonas e sorri para mim. Com uma súbita dor nas costas e na cabeça, sirvo-a com educação e me volto para colocar um CD:
Last night I felt real arms around me
No hope, no harm, just another false alarm…

Espero agora o expediente terminar para recolher os cacos de mim no bar e me arrastar até meu apartamento, desejando ardentemente que o teto caia sobre minha cabeça. Desejando morrer.

12 março 2010

Uma ciranda ao redor da fonte


Cefas Carvalho

Então, era chegada a hora da revelação sobre como envelheceste uma criança tomando-a pela mão... Dançamos uma ciranda em volta da fonte e lá recebo tua mão rude em meu rosto e aceito isso neste instante!
Quinze minutos ao teu lado... bem sabes que eu jamais diria “não”. Todos diziam que estavas virtualmente morto. E como estavam todos tão errados... Apenas quinze minutos ao teu lado, mas, sabes que eu jamais diria “não”. Todos diziam que eras maria-vai-com-as-outras. E não estavam de todo errados...
Chegou a hora da revelação. Contemos como envelheceste uma criança tomando-a pela mão... Quinze minutos ao seu lado... Sabes que eu jamais diria “não”. Ninguém reconhece teu valor. Apenas eu, meu amor!
Sonhei contigo noite passada e por duas vezes caí da cama gelada. Portanto, se desejar, me pregue com um alfinete em sua coleção de insetos... Mas, “leve-me para o abrigo de tua cama”, tu nunca disseste a quem tanto te chama. Apenas duas colheres de açúcar, por favor. Podes até bancar a mais fina flor, pois também eu, o farei...
E então, mais um encontro lá na fonte. Um empurrão bem no meio do pátio... Também isso aceitarei com devoção... Quinze minutos ao seu lado, bem sabes que eu jamais diria “não”. Ninguém reconhece teu valor, apenas eu, meu amor!...

(Conto experimental baseado na tradução livre-poética que fiz da canção “Reel around the fountain”, letra de Morrissey e música de Johnny Marr, da banda inglesa The Smiths, gravada para o álbum “The Smiths”/1984)

24 fevereiro 2010

O túmulo


Cefas Carvalho

Sabemos todos que as coisas sobrenaturais existem com tanta intensidade quanto as naturais, apenas não se oferecendo à vista humana as primeiras tanto como as segundas, com as quais nossos olhos já estão acostumados. Dito isso e com a certeza que o mundo invisível é tão ou mais real que o visível, inicio meu relato sobre os fatos que aconteceram naquela malfadada noite de agosto.
Éramos quatro; eu, Borba, Bento e Machado, que, de tanto beber e contar vantagens tornamo-nos corajosos de súbito. Ainda no bar, um de nós pensou em subirmos a estrutura metálica da ponte velha. Outro cogitou jogarmos estrume à porta de igreja. Até que Bento foi enfático: Sejamos homens e hereges de verdade! Violemos um túmulo!
O medo de ter medo e o grau etílico que estávamos nos impulsionaram para o cemitério. Uma vez entre as tumbas, munidos apenas de uma lanterna velha e ajudados pela lua cheia, procuramos um Túmulo ideal para profanarmos. Até que Bento, como se tomado por um espírito, gritou: É esse o túmulo!, e apontou para uma cova cuja terra – recém cavada – ainda estava fresca. Por alguma razão, evitam os ler o nome na lápide, e, com as pequenas pás que carregamos, começamos a cavar. Não tardou para que chagássemos ao caixão, de madeira ordinária e gelada.
Com certo temor – admito, com desespero – olhamos um para o outro na expectativa de levantar a tampa e concluir a profanação do túmulo, nosso terrível objetivo. Decidido, Machado segurou com força a tampa e puxou-a, conseguindo abri-la com ajuda de Borba. Tenso, olhei para dentro, curioso em ver o corpo frio de alguém que outrora fora um ser humano.
Qual não foi nossa surpresa! O caixão estava vazio. Será alguma brincadeira de mau gosto?, sussurrou Machado, mandando Bento ler o nome escrito na lápide. Nosso infeliz amigo iluminou a placa e lemos a inscrição: “Aqui jaz Bento Araújo Alencar, profanador de túmulos. Que o inferno o leve!”.
Sem acreditar, olhamo-nos novamente. Bento leu a data de nascimento. Era exatamente o dia em que nascera. Quanto a data de morte? Aquele mesmo dia: 13 de agosto daquele ano amaldiçoado.
Entre o horror e o desejo de sair dali, vimos nosso amigo Bento desmaiar e cair deitado dentro do caixão. Paralisados pelo medo, demos um passo para trás. A tampa do caixão fechou-se sozinha e saímos então daquele lugar maldito. Para nunca mais voltar.

26 janeiro 2010

Sete vidas


Cefas Carvalho

Ela resolvera criar um gato. Ou melhor, nada resolvera, tudo não passou de um acaso. Andava pela calçada entretida com sua própria solidão quando se deparou com um filhote de gato no meio-fio. Jamais gostara de gatos. Quando muito, sua afeição por animais limitara-se a um poodle que tivera quando adolescente e um trio de peixes beta que morreram por excesso de alimentação.
Portanto, surpreendeu-se interrompendo a caminhada para olhar o felino: era cinza, completamente cinza, o que conferia a seus olhos azulados uma tristeza infinita. Emitiu um miado indicando fome, certamente. Quase reiniciara a caminhada quando olhou novamente para o gato; teria sido abandonado, com o ela mesma o fora? Talvez por essa associação de idéias, somada à compaixão, resolveu, com alguma repulsa, pegar o animal e levá-lo para casa.
Uma vez em seu apartamento, arrependeu-se do que fizera. O felino miava com desespero e tremia de fome. Pensou em ligar para uma miga que criava um par de gatos persas, mas, desistiu. Cortou em pedaços pequenos um peito de frango esquecido na geladeira e colocou em um pires no chão da área de serviço. O animal devorou a comida rapidamente e continuou miando. Ela lembrou-se que ele teria de beber água e colocou uma vasilha ao lado do pires. Tendo bebido a água, o gato encolheu-se em um canto perto da máquina de lavar e dormiu como guerreiro que sobrevive a uma encarniçada batalha.
Igualmente cansada e também sobrevivente, ela olhou o gato insone e teve vontade de chorar. Conseguiu controlar-se, tomou um banho e deitou no sofá tentando entender porque Roberto a deixara. Era certo que estavam brigando quase diariamente e também era certo que ela mesma pensava em separação. O que ela não conseguia aceitar era que ele tivesse feito as malas e partido, quase na calada da noite, sem uma conversa a mais, sem uma despedida, sem deixar que ela desabafasse tudo que lhe envenenava e sufocava.
Acordou no dia seguinte, molhada de suor e torta da noite no sofá, com o gato lambendo seu tornozelo. Seu primeiro impulso foi de chutar o animal, mas, controlou-se e terminou comovida com os olhos tristes que a fitavam, a pedir comida, água e, talvez, um pouco de carinho. Não sabia como alimentá-lo. Durante dois dias dividiu com o bichano os restos de hambúrgueres e enlatados. Nas compras semanais incluiu ração para gatos. Percebeu que estava se afeiçoando ao pequeno animal, que cada vez mais mostrava menos melancolia nos olhos. Superou a repulsa inicial e passou a segurá-lo, descobrindo que se tratava de um macho. Já que não vou conseguir me livrar dele e vou mantê-lo aqui, é melhor que lhe dê um nome., pensou. Resolveu chamá-lo de Victor, em homenagem ao compositor chileno assassinado pela ditadura. Com o passar dos dias passou a chamá-lo de Vitinho, mas, por aquela razão enigmática pela qual surgem os apelidos, começou a tratá-lo como Zequinha. Gato tranqüilo e silencioso – quando bem alimentado – pouco ou nada alterou a vida da nova dona, salvo, talvez, a caixa de areia que tivera de providenciar, ajudada pelo zelador do prédio.
Zequinha passou a ser a única companhia na solidão de sua dona, que, por mais que passarem os dias, semanas, esperava que Roberto entrasse pela porta adentro. Desejava mostrar ao ex-marido o gato, por quem aprendera a nutrir carinho e respeito. Até que um dia Roberto ligou, mas, não para comunicar a volta para casa. Queria o divórcio, pois pensava em se casar novamente. Ela mergulhou em pranto e vodca, naquela noite em que sua alma parecia querer sair do corpo. No dia seguinte, ressacada, tentou se recompor para tomar decisões. Ainda enjoada, saiu do banheiro e viu Zequinha na mureta da varanda. Não acostumada ao equilíbrio inerente aos gatos, desesperou-se e correu na direção dele, que, por precaução ou susto, pulou para baixo, caindo do terceiro andar. Não teve coragem de olhar para baixo, imaginando o bicho de estimação em uma poça de sangue. Sentou-se ao sofá chorando, quando ouviu a campainha. Era o zelador com o gato, vivo, inteiro, na mão. Gato tem sete vidas, dona, sorriu.
Passou a amar Zequinha. Comprou-lhe uma cesta para dormir, rações mais saborosas, brinquedos. Dormia sentada no sofá acariciando a cabeça ou o pescoço do gato, que dormia junto com ela. Sentia-se mais sozinha do que nunca, sem família, sem amigos, sem Roberto. Tinha apenas o bichano, com nome de poeta e apelido carinhoso.
Até que um dia aconteceu tudo ao mesmo tempo. Roberto ligou comunicando que se casaria em breve e os papeis do divórcio estariam prestes e sair. Foi quando ela saboreava sorvete de nata na mesa da sala e viu Zequinha saltar pela janela. Nada demais, ele retornaria em breve, guiado pelo instinto e pela afeição, ou o zelador o traria de volta. Nada disso aconteceu. Passaram os dias e o gato não retornava. Primeiro ela se desesperou, depois procurou-o na rua, na vizinhança, e, por fim, se confirmou. Não nasci para ter nada nem ninguém, pensou. Alternava sorvete, comida enlatada e uísque barato em dias mortos, até que tomou a decisão, de forma serena e natural. Comprou, com a ajuda de uma amiga farmacêutica e uma desculpa esfarrapada, duas cartelas de Drazil. À noite, juntou os comprimidos todos – dezesseis – em um pires, armou-se de um copo d´água e outro de uísque, à espera da coragem necessária para a decisão final. Bebeu duas doses de uísque e sentiu o sangue se aquecer. Em seguida, lembrou de Zequinha, do aia em que, seduzida pelo olhar triste do gato, acolheu-o em sua casa. Ele poderia ter morrido na rua, atropelado, envenenado, mas, conseguiu sobreviver. Ele tinha sete vidas, divertiu-se. Porém, eu não tenho sete vidas, mas, apenas uma!, pensou Ficou um longo tempo imóvel, ouvindo o som desconexo dos apresentadores do telejornal. Em seguida levantou-se, foi até o banheiro, onde jogou os remédios no vaso sanitário e deu descarga. Suspirou e entrou no banho tentando lembrar se o restaurante oriental da esquina ainda estaria aberto àquela hora.

06 janeiro 2010

Perdendo a cabeça


Cefas Carvalho

Amava revoltas, revoluções, turbas e tumultos. Barulho e agitação o faziam perder a cabeça. Violento, sangue quente; perdia a cabeça com freqüência, agrediu os irmãos, e a família o mandou para a Capital, onde fez amizade com os revolucionários. Gritava nas tabernas e nas ruas parisienses, tanto o vinho como a política o faziam perder a cabeça. Decidiu fazer a revolução e depor a família real. Conseguiu. Contudo, escolheu o lado errado. Traiu amigos. Foi condenado. Olhando a multidão aos gritos à sua frente, ouviu o barulho do metal e a guilhotina se aproximando do seu pescoço. Perdeu a cabeça pela última vez.