18 fevereiro 2009

A fonte dos desejos


Cefas Carvalho

Oscilando entre a incredulidade e a fé, ele chegou, após longa e tortuosa caminhada, à fonte dos desejos. Passara anos ouvindo falar da fonte milagrosa ao pé da montanha sagrada de M., da cidade igualmente mística de S. Homens enriqueceram após uma visita à fonte e molharem o rosto com sua água cristalina. Outros obtiveram sucesso profissional. Mulheres estéreis tiveram filhos. Dizem que um cego retomou a visão; um surdo ganhava a voz. Claro, como em toda questão de fé, não se tinha certeza em nada. Acreditar era tudo.
Suando, apesar do frio que fazia, entrou na fila para se molhar com a água sagrada. Chegada a sua vez, olhou para a pequena fonte circular, como um poço, e contemplou a água esverdeada que – diziam – obrava milagres. Com a mão em concha, apanhou uma porção d´água e molhou o rosto lentamente, como se fazendo uma oração. Fez o seu pedido.
Terminado o ritual, afastou-se da fonte, dando espaço para outros romeiros e caminhou a esmo, contemplando a beleza da montanha. Havia de esperar que seu desejo fosse realizado. Não sabia quando. Talvez a fonte não passasse de uma lenda, de mais uma ilusão dos crentes em algo além do visível.
Retornou a pousada e comeu um sanduíche de frango com cerveja. Voltaria para casa no dia seguinte e decidiu passar o restante da tarde caminhando pelos morros em volta da montanha.
Olhando o céu, de um azul desbotado, andou por uma trilha adornada por pedras cor de rosa, escorregadias. Subitamente, ao observar com atenção uma nuvem amarelada, escorregou em um punhado de folhas úmidas e despencou morro abaixo, caindo pesadamente em um emaranhado de raízes pontudas. A dor foi quem o avisou que uma delas transpassara sua carne - na altura do estômago – de um lado para outro. Cuspindo sangue e com a respiração ofegante, percebeu que estava morrendo, que não viveria mais sequer dez minutos e ardeu em felicidade em saber que seu desejo fora atendido: que alegria, vou morrer!, pensou. Desde tenra idade, queria morrer. Pensara em suicídio – lâmina nos pulsos, cabeça no forno, arma de fogo – mas a covardia era mais forte que a vontade de morrer. Queria um acidente, um acaso. Soube da fonte dos desejos e resolveu recorrer à sua suposta magia. Sorriu em sangue e morreu tranquilamente, lembrando da água esverdeada da fonte dos desejos.

11 fevereiro 2009

De aberrações e de (verdadeiros) monstros




Cefas Carvalho

Todo cinéfilo tem uma gama de filmes que se tornam míticos de tanto que os tentamos assistir, que os procuramos, que tentamos baixá-los na internet, algumas vezes sem êxito. Na banca 7º Arte, no camelódromo do centro de Natal, encontrei totalmente por acaso um destes filmes: “Freaks”, o clássico de Tod Browning que nestas plagas tropicais ganhou o nome de “Monstros”. Nada mais errôneo. “Freaks” é um termo da língua inglesa que pode ser traduzido como “aberrações” e se refere principalmente a pessoas que são diferentes do que se chama “normal”: anões, malformados geneticamente etc. Existe inclusive uma ciência que estuda as deformações, a teratologia. Confesso que tenho um fascino por isso, e desde a adolescência coleciono informações e fotos de “freaks” (Não por acaso, “O homem elefante”, de David Lynch, foi desde os quinze anos um dos meus filmes preferidos. E Lynch é fascinado por teratologia). Bem, vamos ao filme: a trama é simples ao extremo e serve de mero pretexto para o diretor expor suas aberrações humanas na tela. Sim, os “freaks” do filme são reais. Nada de maquiagem ou efeitos especiais. O filme é de 1932, não nos esqueçamos. Não havia noções de politicamente correto no mundo e os circos com aberrações humanas eram sucesso e aceitáveis socialmente. Portanto, os “astros” do filme são anões, mulheres com microcefalia e “freaks” que fizeram história como Johnny Eck, o “homem torso”, cujo corpo terminava abaixo do umbigo; Olga, a famosa mulher barbada; e Raduan, o “homem verme”, que não tinha braços e pernas, mas ainda assim se locomovia, acendia sozinho seu cigarro (cena mostrada no filme), falava três línguas, se casou e teve filhos. Com este “elenco” recrutado nos circos, Browning fez seu filme na qual em um circo itinerante, uma ambiciosa trapezista se casa com um anão para herdar a fortuna dele e isso provoca problemas que levarão a um fim trágico. O filme foi combatido, proibido, cortado e posteriormente tido como preconceituoso e arcaico, posto que Browning teria feito o mesmo que os donos de circo: exposto os freaks como meras atrações para lidar com a morbidez e curiosidade dos espectadores. Mas, há quem discorde. Todos eles são tratados com carinho pelo roteiro e pela direção, e no frigir dos ovos o filme gera efeito similar ao causado por “O homem elefante”. Passada a estranheza inicial (inevitável, claro) nos sentimos à vontade com os freaks e logo percebemos que os monstros reais do filme são os “normais” Cleópatra (a trapezista) e o amante dela, o mau caráter Hércules. Assim como no filme de Lynch, o monstro do filme não é John Merrick, o homem elefante, mas sim o dono do circo que o explora e o agride. Na minha modesta opinião, “Freaks” acaba sendo um libelo contra o preconceito. Até mesmo na cena final, na vingança contra Cleópatra, os “freaks” são mostrados com dignidade, como gente que pode se defender e responder aos insultos e mau tratamento. Gosto de filmes que questionem os padrões pré-estabelecidos da sociedade, como o da beleza estética. Passada uma hora de filme você terá asco pela bela, alta e loira Cleopatra e terá vontade de bater papo com a anãzinha Frieda, com sua dignidade e tolerância. E perceberá que o “homem pela metade” Johnny Eck é mais alegre, educado e bom de se conviver que os outros “homens normais” do circo. Duvida? Assista o filme.

04 fevereiro 2009

Fome



Cefas Carvalho

Matei meu pai. Comi carne humana.
Tremo de tanta felicidade.
(Pasolini em Pocilga)


Acordou com uma fome mitológica. Com os olhos ainda enevoados de sono, sem preocupações inúteis com um banho ou higiene bucal, abriu a geladeira e pegou uma caixa de leite integral, um melão e preparou um sanduíche de presunto. Arrumou-se rapidamente para não chegar atrasado ao trabalho e, sem esquecer de pegar uma maçã para comer enquanto descia as escadas, começou a fazer telefonemas pelo celular.
O escritório de publicidade onde trabalhava ficava a um quarteirão de onde morava, costumando demorar o tempo de uma caminhada de dez minutos para ir de um a outro. Contudo, naquela manhã cinzenta percebeu, ainda no meio do caminho, que continuava com fome. Deteve-se em uma padaria, comprou um pastel de queijo e sentiu o prazer de comer enquanto andava. Chegou à agência, limpando os restos da comida na barba e na gola da camisa.
Tentou afundar no trabalho, como sempre fazia, mergulhando em textos, imagens e conceitos, mas, em dado momento percebeu que uma estranha fome parecia roer seu estômago. Na copa da agência, tomou um café com bolachas cream cracker, mas constatou que este lanche só fizera a fome aumentar. Sentindo dores no estômago e fraqueza nos ossos, esperou pacientemente chegar a hora do almoço, quando desvencilhou-se nos companheiros de trabalho e se refugiou em um restaurante barato.
Fez um prato incomum – para seus padrões alimentares - com bife, arroz, feijão, macarrão, farofa e salada. Terminando o almoço, pediu um pão com manteiga e uma laranja. Depois, um pudim de leite, que considerou insosso, e duas xícaras de café. Levantou-se com a sensação de que tinha aplacado a fome de forma definitiva e que sequer agüentaria jantar mais tarde.
Engano. Mal deu dois passos na calçada, sob o sol causticante, percebeu, horrorizado, que a fome continuava. Pensou em procurar um médico, cogitou telefonar para a irmã, nutricionista. Ou simplesmente ir para casa dormir e acordar sem a sensação de fome. Contudo, não poderia se enganar, e, na pior das hipóteses, muito menos enganar a seu próprio corpo. A fome que lhe carcomia, apesar do que já havia comido até então, era real, dolorida.
Sem muitas alternativas e beirando o desespero, entrou em uma pastelaria e debastou três pastéis de carne, um de queijo e uma coxinha de frango, ajudado por dois copos de caldo de cana. Na saída, deliciou-se com um sorvete de baunilha. Caminhou alguns passos em direção a agência e teve de admitir para si mesmo: continuava faminto.
Cansou de lutar contra si mesmo e contra os instintos do seu corpo; resolveu assumir a fome, ainda que por alguns instantes de desespero e incredulidade e refugiou-se em uma conhecida churrascaria ali perto. Durante um par de horas, refastelou-se com picanha, maminha, frango, cupim, lingüiça, fraldinha, filé mignon; saboreou farofa, vinagrete e arroz; experimentou feijão verde, pediu batatas fritas, enfim, comeu em uma refeição o que normalmente levava dias para ingerir. Estranhamente, ao término da epopéia de carnes, sentia-se leve como um bailarino. Preciso ir ao médico urgentemente, pensou. Porém, ao contrário do que acontecera horas antes, sentia-se bem com seu corpo, como se o organismo e os alimentos (e a necessidade deles) tivessem chegado a um acordo de cavalheiros.
Ao sair do restaurante, percebeu que não conseguiria trabalhar. Telefonou para a empresa pretextando uma doença súbita e, alegremente, foi a um shopping. Ignorou as vitrines chamativas e os cinemas, que tanto amava. Ancorou na praça de alimentação e iniciou uma turnê pelos restaurantes: experimentou comida tailandesa (pato apimentado), saboreou sushis e sashimis, provou de tutu à mineira e baião de dois... comeu o que pode, enquanto o dinheiro lhe deu condições, até começar a usar o cartão de crédito. Olhou a própria barriga; ninguém jamais diria que ele tinha se alimentado tanto naquele dia. Também não sentia nenhuma vontade de ir ao banheiro. Teria se transformado em algo estranho? Seu corpo teria aprendido a processar a comida de forma diferente?
Saiu do shopping Center à noite e, com fome, não sentia nenhuma vontade de ir para casa. Subitamente, o estômago lhe doeu, como se recebesse um golpe de agulha. Havia uma pizzaria por perto, mas teve senso de perceber que seu corpo não queria massas ou queijos. Precisava de carne. Mas, ao pensar em retornar à churrascaria – com o pouco crédito que lhe sobrara nos cartões – sentia que comer mais picanha não o satisfaria. E a fome lhe golpeava como um soco. Sentou-se em um banco de praça escuro no parque, para apertar os braços contra a barriga. Foi quando percebeu o adolescente um pouco à sua frente. Olhava a estátua de Saturno com devoção, como um escultor estuda as formas da modelo que vai retratar. Não devia ter mais que dezessete anos e era branco e magro.
Aproximou-se do rapaz pedindo um cigarro. O jovem respondeu que não fumava. Ele iniciou uma conversa sobre a estátua e conseguiu atrais a atenção do rapaz. Propôs verem outra estátua – de Diana, deusa da caça – do outro lado do parque. Percebeu que estavam praticamente sozinhos naquele lado do gramado e que a escuridão deixava tudo na penumbra. Um pouco antes de chegarem à Diana, em, um trecho particularmente escuro, ele apontou para o jovem uma estrela que brilhava no céu. Quando o rapaz levantou ingenuamente a cabeça para ver, recebeu o golpe de canivete, no meio das costelas.
Ele rodou o canivete até formar um buraco oval na carne do menino. Depois golpeou-o várias vezes, no coração, no pescoço, na barriga. Com uma habilidade que lhe era desconhecida, começou a destripar a carne e se deliciar com seu calor e com o sangue grosso. Arrancou os olhos do rapaz e os comeu. Fez o mesmo com os dedos, o fígado e as coxas. Tentou comer uma orelha, mas a carne era muito dura.
Por fim, vendo a massa disforme de carne retalhada e tripas do que fora um jovem, limpou-se com a camisa, guardou o canivete no bolso e sentiu, pela primeira vez naquele dia feliz e maldito, que a fome havia, enfim, passado.
Foi para casa com a certeza que alguém o abordaria, que iriam prendê-lo. Nada. Protegido pela escuridão e pela indiferença dos outros, chegou ao seu apartamento cansado, mas satisfeito. Tomou um banho quente e deitou-se. Pensou vagamente na carne crua e no sangue que comera e bebera. E de como era bom deitar na cama com o estômago satisfeito.
Dormiu para uma noite sem sonhos.