23 dezembro 2008

Em sonhos


Cefas Carvalho


In dreams I walk with you
In dreams I talk to you
(Roy Orbison em In dreams)



Molhado de suor, acordou de repente e ouviu aquela música lenta e repetitiva, como um mantra, e pensou que ainda estava sonhando. Percebeu, após alguns segundos, que o som vinha do CD Player, que deixara ligado. Levantou-se a contragosto e desligou o som. Aproveitou que estava de pé e arrastou-se sonambulamente até a cozinha, para beber um copo de água bem gelada. Não resistiu a um gole de Coca-Cola, bebida na garrafa, e retornou ao quarto. Tinha medo de não dormir e ao mesmo tempo, medo de dormir. Dormir significava esquecer... mas também significava sonhar, e nos últimos tempos seus sonhos eram, assim como a música, lentos e repetitivos.
O sonho era basicamente a presença dela, primeiro surgindo do nada, quase dançando, como uma Isadora Duncan etérea e irreal. Depois ela falava alguma coisa... mas ele não conseguia ouvi-la. Sabia que ela falava seu nome, podia ler seus lábios, mas o restante da mensagem lhe era misterioso, como se ela falasse uma língua estranha e há muito morta.
Por fim ela se aproximava dele e lhe beijava, suavemente, como em um balé. Ele desejava segurá-la junto a ele, mas, por alguma razão, não conseguia fazê-lo. Ela inevitável que ela se fosse. Para algum lugar misterioso e obscuro onde sua entrada não era permitida. E então ele acordava, banhado de suor, mesmo com o ar condicionado ligado na potência máxima.
Em outro sonho, quase a mesma coisa acontecia, com a diferença que a entrada dela era antecedida pela presença de um palhaço, se fazendo de mestre de cerimônias. Um palhaço colorido, mas pouco alegre, na verdade, triste em sua maquiagem desbotada e a lágrima pintada que lhe caía do olho esquerdo. Em uma linguagem exótica, como se usando de palavras arcaicas ou com um sotaque estranho, ele anunciava a entrada dela, que vinha, dançarina esvoaçante, lhe beijava e partia.
Havia um terceiro sonho, na qual ela e o palhaço chegavam juntos, e passavam vários minutos rindo descaradamente dele. Em seguida ela contraía o rosto como se arrependida e lentamente se aproximava dele, enquanto o palhaço ia sendo tragado pelas sombras. Ela o beijava suavemente e, com passos de dança, retornava para de onde veio e onde não era permitido a ele sequer avistar.
Aquela noite estava tão desesperada quanto as noites anteriores, como sempre era desde que ela se fora. Mas, resolveu enfrentar seus próprios sonhos. Decidiu que tentaria dormir, ajudado pelos comprimidos de sempre, e, uma vez sonhando, não apenas enfrentaria o palhaço triste como seguiria a amada até o reino das sombras para onde ela mergulhava.
Demorou a dormir. Cantou lentamente diversas músicas, assobiou, olhou pela janela a noite cinzenta que se fazia, ridiculamente contou carneirinhos, até que a soma de fazer tantas coisas e ao mesmo tempo nada fazer o levou ao mundo do sono.
Sonhou, como quase sempre, que o palhaço chegava. Contudo, conscientemente, resolveu nada fazer com ele. Queria esperar a chegada dela. O palhaço cantou alguma magia em alguma língua e por fim ela chegou, cheia de véus transparentes, um girassol nos cabelos, etérea e inalcançável. Fechou os olhos á espera do que aconteceria. Sentiu a respiração quente dela e anteviu o beijo suave que ela lhe daria. Recebeu o beijo como quem recebe uma benção e assistiu à sua lenta partida, em passos de balé. Subitamente, reagindo contra as leis daquele sonho, conseguiu fazer com que as pernas andassem e correu para ela. Percebeu o palhaço, com um olhar assustado caminhar em sua direção. Inútil. Com um movimento rápido, forte e inesperado, golpeou-o com a mão direita fechada e assistiu a sua queda sangrenta no chão.
Ela abriu uma cortina negra, feita de sombras e entrou. Ele, a um passo dela, fez a mesma coisa e entrou em algo que parecia uma caverna negra, um mundo infernal. Não conseguia vê-la, mas sabia que ela estava lá. De repente, ouviu ela falando algo que aos seus ouvidos pareceu uma prece: não me abandone jamais...
Acordou, então, suado, com um grito dele próprio. Demorou alguns segundos para perceber que estava lacrimando e dificilmente foi ao banheiro lavar o rosto. Sentou-se no sofá da sala e chorou copiosamente. Pensou em telefonar para ela, mesmo sendo de madrugada. Pensou em dar cabo da própria vida, como talvez fosse melhor, desde que ela se fora e sua vida mergulhara naquela sequência de sonhos e tristezas.
Pegou o celular e discou o número dela. Tocou cinco vezes até que atenderam. Para seu espanto e sua dor, ouviu do outro lado da linha a voz do palhaço triste a debochar de sua dor...
Molhado de suor, acordou de repente e ouviu aquela música lenta e repetitiva, como um mantra, e pensou que ainda estava sonhando. Percebeu, após alguns segundos, que o som vinha do CD Player, que deixara ligado. Aliás, que a esposa deixara ligado. Olhou para o lado e viu a amada dormindo, respirando pesadamente e com o lençol abraçado ao rosto. Levantou-se e desligou a música. Foi até a cozinha onde viu na mesa os pratos com os restos de atum com ervas que jantaram na noite anterior. Depois fizeram amor como havia muito não faziam e dormiram nos braços um do outro. O estranho era sonhar todas as noites o mesmo sonho: que havia sido abandonado pela amada e que ao dormir sonhava com um palhaço triste e uma dançarina enevoada. Comentara isso com a amada que sorrira: isso é medo de me perder... é normal sentir isso quando se ama, porque eu também tenho medo de te perder...
Ele sorriu para ele mesmo, abriu a geladeira e bebeu um copo de leite gelado. Em seguida aninhou-se ao lado da amada para dormir.

16 dezembro 2008

Feliz Natal em junho ou dezembro!


Cefas Carvalho

Este escrevinhador leu nos blogs que um astrônomo australiano pode ter descoberto que o nascimento de Jesus não teria acontecido em dezembro e sim em junho. E dois anos antes do que se pensava. De acordo com Dave Reneke, a "estrela de Natal" que, segundo a Bíblia, teria guiado os Três Reis Magos até a Manjedoura, em Belém, não apenas teria aparecido no céu seis meses mais cedo.
O astrônomo explica que a conclusão é fruto do mapeamento dos corpos celestes da época em que Jesus nasceu. O rastreamento foi possível a partir de um software que permite rever o posicionamento de estrelas e planetas há milhares de anos.
Baseando-se no Evangelho de Mateus, que descreve a aparição de uma "estrela" como sinal do nascimento de Jesus, Reneke identificou a conjunção dos planetas Vênus e Júpiter, que teriam emitido uma forte luz que poderia ter sido confundida com uma estrela. "Vênus e Júpiter chegaram muito perto no ano 2 a.C refletindo muita luz. Não podemos dizer com certeza que esta era a estrela de Natal descrita na Bíblia, mas até agora esta é a explicação mais plausível que já vi sobre isso", disse Reneke à BBC Brasil.
A notícia não mexeu muito comigo, ateu iconoclasta que sou. Mas, diverti-me sozinho pensando que o cristianismo ocidental pode estar há dois mil anos comemorando o Natal na data errada.
Há muito já desmistifiquei a festa de natal. Não pretendo ultrajar os amigos cristãos que vêem na data o momento de pensar em Cristo e na fraternidade universal. Tampouco quero estragar a ansiedade dos filhos e da amada, à espera dos presentes de natal. Não, nada disso. Respeito a opinião dos amigos e como quase todos, troco presentes na noite natalina e me farto com a ceia de natal. Só não acredito que a data sirva para qualquer tipo de reflexão ou de transformação. Assim como datas cívicas (Dia da Independência, Proclamação da República) não fazem ninguém refletir sobre a nação, mas sim proporcionam um belo churrasco ou ir a praia com a família, que ninguém é de ferro.
Se o astrônomo tiver razão, que celebremos o nascimento de Jesus em junho. Tudo bem que na Europa e nos EUA não é época de inverno e neve, portanto, toda a mística do natal gelado e com trenó do Papai Noel iria por água abaixo.
Em julho ou em dezembro, como sempre foi, o natal é uma bela festa e serve, sim, para congregar a família, rever os amigos e sermos todos um pouquinho mais felizes, como é válido. Só não venham me dizer que a data é para refletir sobre o nascimento do menino Jesus, pobre e sofrido em uma manjedoura. É uma hipocrisia light, feita sob encomenda para nos sentirmos menos culpados. Ninguém pensa no menino Jesus ou nas crianças pobres de Felipe Camarão enquanto se farta com tender e bacalhau e se enche de vinho. Infelizmente. E feliz natal para todos nós.

10 dezembro 2008

"Ela vestia veludo azul..."


Cefas Carvalho


Tive minha vida mudada por um filme. É certo que livros, músicas, bandas de rock também mudaram minha vida, de uma forma ou de outra, mas neste texto falaremos de cinema. Cinéfilo desde a pré-adolescência, daqueles de adorar a magia da projeção cinematográfica, como o menino Totó de “Cinema Paradiso”, poderia listar uma penca de filmes que me encantaram e me impressionaram. Contudo, foi “Veludo azul” o filme que mudou efetivamente minha forma de ver o cinema, de ver a vida em geral e a minha própria vida. Porém, não se trata do filme da minha vida (que é “Verão de 42”) nem o que mais vezes assisti (“Jesus Cristo Superstar”, que vi 19 vezes contadas, cantadas e catalogadas). Tudo bem que assistir “Hair”, em 1988, foi uma espécie de revelação divina e o filme foi responsável direto por eu deixar crescer os cabelos nos anos dourados da juventude, mas nesta altura “Veludo azul” já tinha feito minha cabeça.
A paixão começou nos idos de 1986, quando, adolescente tímido recém chegado no Rio de Janeiro, passava boa parte do meu tempo assistindo filmes, fosse na TV (nos bons tempos em que a Rede Globo exibia clássicos à noite), vídeo-cassete e cinema. Na tela grande, gostava de filmes bem hollywoodianos, tipo “Passagem para a Índia” e “Amadeus”, sucessos à época. Mas, nas resenhas dos cadernos culturais dos jornais os críticos só falavam de um tal “Veludo Azul”, do americano David Lynch, que era instigante, macabro, melhor filme do ano etc. Bateu a curiosidade de assisti-lo, claro, mas deparei com um problema: a censura do filme - sim ela existia naquele tempo e era razoavelmente rigorosa - era 18 anos. Eu mal contava dezesseis. Preferi não arriscar ser barrado no cinema e convenci papai e ir comigo, me autorizando para o bilheteiro a entrar. Lá fomos nós em uma tarde de sábado na sala 1 do finado (tornou-se uma sede da Igreja Universal...) Cine Lido, na Praia do Flamengo. Entrei na sala como uma pessoa e duas horas depois, saí outra.
Tudo me encantou e me impressionou no filme. Papai pouco se impressionou com o filme e até cochilou uma meia hora - velho hábito dele - na sala de projeção. Para quem desgraçadamente não viu o filme, um resumo: a trama é extremamente simples. Jeffrey (Kyle McLaughan, alter-ego e sósia do diretor) vive uma existência pacata naquelas cidadezinhas insípidas dos Estados Unidos quando de repente encontra uma orelha em um jardim. A partir deste fato corriqueiro, ele trava contato com a bela e misteriosa Dorothy (Isabela Rosselini) e com o perigoso Frank (Dennis Hopper, espetacular!) e se envolve com pessoas e situações que mostram a ele que o mundo não era exatamente cor de rosa como ele pensava.
Em suma, a experiência que Jeffrey viveu na trama, vivi durante a exibição do filme. Ao se acenderem as luzes eu tinha certeza que, como Jeffrey, jamais veria o mundo da mesma forma. Como diz a namorada de Jeffrey (Laura Dern) em uma cena, “este é um estranho mundo”.
E coisas estranhas não faltam no filme: um vilão que respira gás hélio e chora com músicas antigas, um travesti dublando Roy Orbison, perversões sexuais, gente morta em pé, como um abajur... uma série de bizarrices tão comuns que evocam Caetano Veloso: “de perto, ninguém é normal”.
Há a trilha sonora... está gravada no HD da minha mente a cena em que Isabella Rosselini canta o clássico “Blue velvet” aos sussurros, na boate... “she wore blue velvet, bluer than velvet was her eyes…” E Dean Stockwell dublando “In dreams” do mestre Roy Orbison? E o uso da belíssima “Love letters”? Mas nada se compara ao cinismo agridoce da cena final, um pastiche de final feliz com Julee Cruise - cantora fetiche de Lynch - cantando a macabra “Mysteries of Love”. Seria impossível eu sair imune a tal filme. Não saí. Tanto que no dia seguinte comecei a abandonar - embora não totalmente - os dramas tradicionais de Hollywood e adentrar no terreno pantanoso de Scorcese, Woody Allen, Jim Jarmush, à procura de sensações como a que “Veludo azul” me proporcionou. Daí para mergulhar no universo de Bergman, Almodóvar,Pasolini, Saura e Scola foi um passo. E adeus dramas lacrimosos com Sally Field e Sissy Speacek. E adeus filmes como “Robocop” e “Os Goonies”. Passei a economizar meus trocados para descobrir filmes estranhos nos cineclubes.
Quatro anos depois, David Lynch faria mais um filme que se inscreveria a fogo em minh´alma: “Coração selvagem”, um on the road maluco com Nicholas Cage e Laura Dern, músicas de Elvis Presley, sangue a rodo e uma estética alucinada. Assisti ao longa sozinho, em um cinema vazio e sujo em São Paulo, com a consciência que aquele filme também mudaria minha vida. Mudou, mas aí já seria uma outra história. Lynch continuaria agradando aos devotos com a série “Twin Peaks”, que para quem não se lembra mudou a história da televisão americana e filmes como “A estrada perdida” e “Mullholland drive - Cidade dos Sonhos”. Filmes sem pé nem cabeça e sem lógica, mas, que diabos, quem precisa de lógica na vida ou no cinema? Assistir a um filme de Lynch é uma experiência extra-sensorial. Nem todos gostam, é claro. Mas, quem vai ver um filme de Lynch é bom saber que vai adentrar um universo alucinado, pessoal e surreal. Este ano ele lançou nos EUA e na Europa seu mais novo filme, “Inland Empire”, que dificilmente chegará nestas terras cinematográficas tomadas por Piratas e Aracnídeos e comédias americanas cretinas. Enquanto isso, resta aos lynchmaníacos, espécie de confraria de gente que não bate muito bem da bola (alô, Rosa Williams!) e que sabe que o mundo real não é este que vemos, rever toda a cinematografia do cineasta mais esquisito do mundo. Afinal, she wore blue velvet...

05 dezembro 2008

Deixem o Tom fumar em paz


Cefas Carvalho


Torturar, fatiar, eletrocutar, agredir, esfaquear, esbofetear, trair, enrolar, pode! Fumar não pode. Esta é a conclusão a que este escrevinhador forçosamente chegou ao ler em um site uma informação bizarra: o desenho animado de Tom e Jerry, que fez a minha alegria na infância e a de onze em cada dez crianças de várias gerações, vem sendo duramente criticado na Inglaterra depois que um espectador telefonou para o Ofcom (órgão regulador da programação de TV no país) reclamando que o gato Tom costuma fumar, e isso representava um péssimo exemplo para as crianças.
Efetivamente no episódio "Texas Tom", o gato azarado tenta impressionar uma gatinha enrolando um cigarro, acendendo-o e fumando-o com uma mão. No outro episódio, o "Tennis Chumps", o adversário de Tom fuma um grande charuto. Resultado: em boletim publicado em seu website, a Ofcom apontou preocupações de que fumar na televisão possa influenciar a esse hábito. A empresa que licencia o desenho concordou em editar algumas cenas de fumo de Tom e Jerry. Quem diria, Tom e Jerry censurados e com cenas cortadas em um país democrático e em pleno século 21!
Mas, o curioso é perceber que o mesmo espectador que tanto se ofendeu com o cigarro do felino não se importou com toda a violência do desenho. Sim, pois Tom e Jerry, ao lado do Papa Léguas, é um manual quase didático de como impingir dor e sofrimento a um inimigo. Já assisti a Tom ser retalhado, esquartejado, torrado, agredido com bigornas, ter os dentes quebrados um a um, sempre pelo rato Jerry que o faz com um sádico sorriso e sem nenhum resquício de culpa. O curioso é que eu não lembrava de ter assistido aos episódios que Tom fuma cigarros. Devo ter assistido, mas nem por isso comecei a fumar.
Da mesma forma, também adorava Tom e Jerry nem por isso retalhei ou carbonizei minhas irmãs e meus amigos. Ah, e também ouvi muito heavy metal quando adolescente, em especial Iron Maiden e Metallica, meus preferidos nesta seara. A obra prima do Iron Maiden é "666-the number of the beast" (666 – o número da besta), que evidentemente fala sobre o demônio, ou como queria mestre Guimarães Rosa, o cramulhão, o capiroto, o tinhoso. Bem, o fato é que embora ouvisse a música com razoável freqüência, nem por isso adentrei nos caminhos de adoração do demo. O politicamente correto é positivo porque luta pela cidadania e defende os direitos das minorias, mas tem lá seus exageros. Desenho animado não influencia criança alguma. Nem os mais violentos tipo Papa Léguas, nem os alucinados tipo Pokemon e nem os edificantes e mimosos como Bambi, Cinderela ou Pocahontas. Criança alguma fica boazinha ou adentra os caminhos da maldade com base em desenhos animados. Animação só diverte, mesmo com excessos. Discutir a qualidade dos desenhos é outra coisa. E neste aspecto, convenhamos que Tom e Jerry são dos melhores. Deixem o pobre Tom fumar em paz!

21 novembro 2008

À flor da pele



Cefas Carvalho

Quando menina, mirrada, magrinha, um toco assim de gente, caiu feio na terra empedrada, quando brincava de pique-esconde com os moleques na rua. Foi para casa choramingando, cheia de arranhões e ferimentos pincelados com sangue. A mãe, enternecida, passou mertiolate nos braços e pernas da menina e advertiu-a que ela sentiria dor por alguns dias. Mas, a dor que sentiu era quase uma cócega agradável. Depois, divertiu-se arrancando as cascas das feridas mal cicatrizadas, testemunhando um fio de sangue brotar novamente e também um líquido amarelado.
Caiu outras vezes, brincando, correndo, jogando handebol, arranhou-se, e cada vez que via o sangue jorrar da carne lacerada sentia, além da dor imediata, uma estranha satisfação. Começou a brincar com as feridas como outras meninas brincavam com bonecas. Tornou-se íntima de seu próprio sangue e de sua carne sempre aberta, sempre mutilada. Percebeu que tinha de esconder este estranho comportamento da família.
Mais crescida, encontrou um novo prazer em se depilar com a pinça. A sensação dos fios saindo de sua epiderme lhe proporcionava tal prazer que ela se descobriu enquanto mulher – sensações de gozo e um formigamento no sexo – quando arrancava pêlos das sobrancelhas, braços, pernas e virilha. Não queria o puxão rápido, indolor. Desejava a agulhada dolorida, o arrepio da dor mais lenta.
Na adolescência, tornou-se uma moça estudiosa, quieta e enigmática. Enquanto as amigas investiam em decotes e biquínis, ela escondia o corpo o máximo possível. Ao despir-se, contemplava no corpo as marcas do prazer que arrancava de todas as maneiras: arranhando-se com chaves, lanhando as pernas com canivete, roendo as unhas eternamente em sangue... No dia em que fez dezoito anos, tendo recusado todos os presentes e mimos dos pais, precisou ir ao dentista. Precisando ter um dente obturado, decidiu que queria fazê-lo sem anestesia. O dentista recusou-se e, em casa, ela descobriu novo prazer trincando os dentes com um garfo até ver o sangue escorrer pelas gengivas.
Incentivada pelos pais e pelas amigas, começou a sair mais, para, supostamente, divertir-se. Em uma boate, enquanto as colegas dançavam, ela percebeu um rapaz brincando com a ponta de um cigarro em sua própria mão. Sentiu uma vontade desenfreada de beijar e cheirar aquela mão de carne queimada e não tardou a travar contato com o rapaz. Ele mostrou como fazia aquilo, na verdade uma maneira banal de sentir dor e controlá-la, e ela pediu que ele fizesse tal brincadeira com ela. Não na boate, ele respondeu. Onde você quiser, ela sorriu. Horas depois perdia a virgindade e aliou o prazer sexual com a descoberta da carne queimada pela brasa do cigarro. Começou a fumar. Comprou charutos e percebeu que a brasa do charuto beijando sua coxa lhe proporcionava sensações mais agudas que os beijos do namorado. Terminou o namoro e procurou novas sensações; arranhar-se com facas de pão, arrancar fios de cabelo com os dedos, morder os cantos da boca de forma a destilar sangue... iniciou uma frase extremamente criativa quando a maneiras de se mutilar e descobriu que seu prazer era inconciliável com a vida familiar. Em meio a constantes atritos com os pais, passou a gerenciar uma loja de tatuagens e decidiu morar sozinha.
Trabalhando em meio à carne sendo queimada e colorida, descobriu novos prazeres com agulhas, tintas, ferramentas e brocas, e á noite, conciliava namoros ocasionais que pouco ou nada lhe acrescentavam, e bastante solidão, assistindo a filmes e comendo pipoca, em meio a brincadeiras com lâminas e facas de cozinha.
Em uma manhã cinzenta, não desejava conversar com os colegas de trabalho e deixou-os no restaurante habitual preferindo refugiar-se em um bar estranho, sujo, quase em frente ao trabalho. Lá, almoçando um bife mal passado com arroz e fritas, observou à mesa em frente um homem que tomava uma cerveja e com uma pequena chave de fenda, arrancava a frio as unhas da mão esquerda, em um ritual estranho e, para ela, fascinante. Inventou um pretexto para entrar em contato com ele, e como esperava, foi convidada para sentar-se à mesa.
Olhou-o de perto com a devida atenção. Era bem mais velho que ela, talvez beirando os cinqüenta anos, tinha uma barba mal feita e olhos amarelos, adoentados, mas que guardavam malicia e algo de mal. Tinha ares de pirata e latrocida. Seu mau hálito, ela o sentiu assim que ele perguntou seu nome e disse que ela era linda, como se querendo queimar etapas para seu evidente desejo. Ela teria nojo dele não fosse a visão inebriante das suas unhas em sangue, dos dedos calosos em uma mão marcada e forte, de estivador, de assassino.
Na gangorra entre o asco e a excitação, deixou-se levar para um quarto de hotel decadente onde, encantada, descobriu nele marcas e cicatrizes em todo o corpo. Amou o latrocida de olhos cerrados, sentindo em suas costas os nacos de unhas arrancadas. Pediu que ele puxasse seus cabelos, que a esbofeteasse, que apertasse seu pescoço... sentiu prazer como nunca; descobriu que podia – e devia – aplicar a dor e a mutilação ao amor físico. Perguntou a ele, enquanto se vestiam, não seu nome, informação que não lhe interessava, mas, porque arrancava as unhas até o sangue. Porque gosto, respondeu, com um sorriso maníaco. Sentir dor é bom, concluiu.
À noite, em casa, não conseguiu assistir a filmes, comer pipoca ou conversar com as amigas pelo telefone. Munida de compressas de gelo e mercúrio cromo, lembrou da tarde que tivera, das unhas arrancadas daquele homem pavoroso que a encantara. Olhou no espelho imenso que mantinha na parede junto à cama as muitas cicatrizes em seu corpo nu. Cicatrizes que como palavras, como frases, contavam a história de seu corpo, de sua vida.
Decidiu, no dia seguinte, procurar no mesmo restaurante barato onde almoçara, o homem estranho que se mutilava. Se não o encontrasse, perguntaria, iria atrás de seu paradeiro. Continuava com nojo dele, mas não podia mentir para si mesma; ele lhe dera o que ela desejava.
Afinal de contas, pensou, sorrindo, sentir dor é bom!...

05 novembro 2008

A Ilha do Fim do Mundo


Cefas Carvalho

Começou como uma brincadeira.
Abrindo o mapa mundi para planejarmos nossa viagem a Lisboa, imaginamos uma outra viagem, esta, para algum lugar distante, perdido, algo como o fim do mundo.
Entre vinhos e queijos, sonhos e risos, elegemos a Escócia como o nosso fim do mundo particular e ideal. Razões para isso não faltavam: a Escócia ficava próxima a Londres, metrópole que conhecíamos e que serviria como ponto de apoio para a aventura. Também porque queríamos um fim do mundo estruturado, confortável, preferencialmente com clima frio. Também favorecia o fato da Escócia ter algo de mágico... talvez pelos castelos, pelo Lago Ness e seu lendário monstro...
Do sonho, passamos ao mapeamento, à prática: descobrimos ilhas isoladas ao oeste da Escócia, bem distantes de Glasgow e Edinburgh. Nomes como Ilha de Berneray, Ilha de Skye, Castlebay e Benbecula começaram a fazer parte do nosso imaginário. Eu e Clarissa pesquisamos itinerários, pousadas idílicas, preços de passagens aéreas e férreas, cotação da libra. Pela Internet sondamos instalações, preços... logo a viagem algo irreal para a Ilha do Fim do Mundo ganhou mais espaço em nossos corações e mentes do que a viagem real, a ser empreendida para Lisboa. O que poderia frear nosso sonho? Éramos jovens, ambos com a idade de Cristo quando morreu, não tínhamos filhos e estávamos profissional e financeiramente estruturados. Queríamos conquistar o mundo, e certamente riríamos de quem nos dissesse que o mundo não existia apenas para ser conquistado por nós.
Viajamos a Lisboa, como tinha de ser. O que relatar da viagem às terras portuguesas? É certo que conhecemos a linda capital lusitana, que andamos de mãos dadas pela Avenida da Liberdade até desembocar no Tejo, que experimentamos todas as delícias de bacalhau disponíveis nos restaurantes e bares e que fizemos amor na mais linda das pousadas de Coimbra, olhando o sol nascer. Mas, também trocamos ofensas muitas e diversos espinhos verbais.Maculamos o Castelo de São Jorge com uma briga estúpida e que beirou a violência física e encharcamos a bela cidade do Porto com os ciúmes dela e com minha intolerância.
Retornamos ao Brasil decididos não apenas a nunca mais viajar juntos, como a terminarmos nosso relacionamento. Não havíamos sequer desarrumado as malas da viagem com os presentes para amigos e parentes quando me vi obrigado a, com o coração comprimido, a arrumar minhas malas com roupas e coisas básicas. Foram dois dias em um hotel, imaginando o que fazer da vida e procurando um apartamento para alugar. Até que Clarissa me telefonou, propondo um encontro. Marcamos em um restaurante oriental perto da praia, onde costumávamos ir com freqüência.
Quando eu a vi, no restaurante, mais linda do que nunca e com os olhos ainda soltando faíscas, apesar da vermelhidão e do cansaço, pensei em me ajoelhar aos seus pés e implorar para que voltássemos. Não foi necessário. Serenamente, ela propôs que puséssemos uma pedra no passado recente e que retomássemos nosso casamento, mais que isso, nossa história de amor.
Na mesma noite peguei minhas coisas no hotel e rumamos para uma pousada em uma praia num município litorâneo próximo. Jurei para ela, mas, principalmente para mim mesmo, que jamais a deixaria novamente.
Retomamos o casamento, o cotidiano e também os sonhos. Voltamos ao mapa da Escócia. Encontramos mais cidadezinhas com nomes estranhos, próximas da Islândia e do Pólo Norte. Começamos a comprar libras e a economizar dinheiro. Passamos a trabalhar e a fazer planos unicamente em prol da viagem para a Ilha do Fim do Mundo. Clarissa sugeriu que, se nos apaixonássemos pelo lugar, fizéssemos planos de morar lá definitivamente. Talvez comprar uma pousada. E vivermos de amor, cerveja preta, rosbife, livros e músicas. O que mais da vida eu poderia pedir?
Tudo isso que relato aconteceu há alguns anos. Hoje, moro em Ullapool, uma cidadezinha bem ao norte da Escócia, como se saída de um conto de fadas. Trabalho em um pub local, servindo cervejas. Todos são educados e gentis comigo e me chamam de The solitary man, por razões que o apelido, em inglês, explica por si só e que sintetiza minha vida e o que ela será para sempre.
Quanto a Clarissa? Morreu em um acidente de trânsito na avenida principal da cidade. Voltava para casa com uma pizza e duas garrafas de vinho no banco de trás do carro e nossas passagens para Londres e conexão para Glasgow no porta luvas do carro. Era o nosso sonho materializado, porém, destruído pela precipitação de um motorista de caminhão que tentou uma ultrapassagem arriscada e desnecessária. Ele fugiu sem prestar socorro, após o acidente. Espero sinceramente que tenha ido para o inferno e que lá permaneça por várias eternidades. Meu consolo é que Clarissa não sofreu, tendo morrido na hora e, segundo a médica que atendeu, com um estranho sorriso nos lábios. Após a tragédia, queimei uma das passagens aéreas juntamente com os mapas, guias de viagens e informações sobre a Escócia. Em seguida, vendi tudo que tinha e rumei para as terras frias – onde estou até hoje – para conhecer a Ilha do Fim do Mundo, ver seus lagos, seus castelos, suas montanhas, por mim e por Clarissa. Coisa que faço todo dia. Até a hora sagrada em que terei de morrer, aqui nesta Ilha do Fim do Mundo onde encontro Clarissa todos os dias e de onde não sairei jamais...

24 setembro 2008

Minha vida de cineclubista


Cefas Carvalho

Houve um tempo em minha vida em que eu passava mais tempo nos cineclubes e nos bares do que em casa. O curioso era como eles estavam relacionados entre si. Era como se fosse impossível assistir um filme nos cineclubes sem a discussão depois, regada a chopes e tira-gostos. Bem, os bares, por si sós, dariam um texto á parte, longo e cheio de história. Falemos nos cineclubes, por ora. Atrevo-me a dizer que sem eles minha adolescência não teria sido a mesma coisa.
Descobrir o Cineclube Estação Botafogo, em meio às futilidades e idiossincrasias dos jovens cariocas dos anos oitenta, foi uma revelação divina. Lembro do primeiro filme que assisti lá, entre os quinze e dezesseis anos: "Nós, que nos amávamos tanto", de Ettore Scola. Foi um deslumbramento. Tanto o filme em si – lindo como poucos – como a sensação de estar em companhia de quem também amava cinema e o discutia. Assisti a muitos filmes sozinho: "O baile", "Carmem", "Veludo Azul" (este pela terceira ou quarta vez), e muitos outros.
Aos poucos fui ganhando amizades que gostavam de cinema e comecei a ir ao Estação em turma. Recordo de Paulo de Tarso, o Kalunga, Anderson Háber, João Marcelo, Paulo César, Rubinho Jacobina (estes, amigos meus até hoje), Sérgio Rueda, Pluft, Alan Kilder, Carluxo, Gabriela, Mônica, Maira, além das amizades feitas no próprio Cineclube ou na livraria em anexo onde comprei livros raros que me acompanham até hoje, e também cartazes de cinema que decoraram meu quarto por muitos anos. Foi quando começou a fase do Cineclube-Bar. Havia o Bar do Ópera, o bar do Casseta e Planeta, o Amarelinho na Cinelândia, os botecos sem nome, onde bebíamos em pé e era prova de macheza comer ovos cozidos coloridos.
Até hoje tem filmes que identifico com os cineclubes. Como "Os demônios", de Ken Russel, que eu Paulo César assistimos no Estação Botafogo e ao fim, iniciamos uma salva de palmas que durou minutos. Meses depois, um amigo que disse que a hábito que bater palmas após as sessões havia virado moda no cineclube. Houve também "Saló", de Pasolini, o filme mais barra pesada do mundo. Trinta pessoas pagaram ingresso e só vinte chegaram até o final da sessão. Recordo também de "O anjo exterminador", de Buñuel, quando, ao fim, para fazer blague com a trama do filme, eu e Paulo Kalunga fingimos não conseguir sair da sala de exibição do Estação Botafogo. Teve outra vez que assisti a "Tommy" no Centro Cultural Cândido Mendes munido de quatro camparis no cérebro...
Fui morar em São Paulo, e aí começou meu caso de amor com os finados Cinecubes Bijou e Oscarito. Mais solitário do que gostaria, acabei tendo companhia em Bergman, Kurosawa e Antonioni nas noites frias paulistanas. Depois ia para alguma cantina no Anhangabaú ou no Brás (onde morava) beber vinho quente com canela e escrever sobre os filmes assistidos. Mas, a cultura de cineclube não é feita só com medalhões. Havia os filmes desconhecidos, de diretores que ninguém conhecia e vindos de países longínquos. É preciso lembrar que eram tempos pré-Internet e pré-Google. As pesquisas sobre filmes eram feitas na marra, com base nas revistas (ah, a saudosa Cinemim e a resistente Set) e no boca a boca. Um amigo sabia quem era um misterioso diretor polonês, aí indicava para os outros, e assim por diante. Desta forma, assisti a muitos filmes estranhos, como "Repo Men", "Liquid Sky", "Fome de viver". Havia as sessões surpresa. Pagávamos a entrada e sentávamos sem saber qual seria o filme exibido. Isso sem falar das sessões à meia noite.
É necessário falar ainda do Cineclube Natal. Poucas vezes o freqüentei nos idos tempos, mas particularmente lembro-me de uma vez, na qual eu e Paulo César assistimos "Apocalypse Now", quase em frente ao Colégio Maria Auxiliadora, em 1988, sob efeito de, digamos, substâncias estranhas. O drama de guerra já é estranho por si só, então, juntamos Tomé com Bebé, como se diz no interior. Claro que estes dias atuais de DVD, Moviecons e Cinemarks são bons, mas nada supera o charme da cultura cineclubista. Que tenta voltar. Vale a pena registrar o belo trabalho de Nelson Marques e companhia com o cineclube Natal, que exibe bons filmes (já assisti lá, entre outros, "Café da manhã em Plutão" e "9 canções"). O Cineclube Natal exibe filmes no TCP, Nalva Salão Café e Assembléia Legislativa. Maiores informações no blog www.cineclubenatal.blogspot.com

16 setembro 2008

O navio


Cefas Carvalho

Leu o que havia escrito. Não gostou. Ou gostou de forma estranha, um gostar sem realmente apreciar. Na verdade, nunca amava o que escrevia. Ou talvez amasse, mas de forma inusitada, como deve ser o amor. Escrevera daquela vez sobre um navio, que, colhido em alto mar por uma tempestade, começava a afundar no oceano. Nunca estivera em um navio, antes, pelo menos não quem se lembrasse. Teria feito uma analogia? Que seria o navio? Sua vida? O amor que poderia se afogar no oceano do dia a dia? Ou, seriam apenas suas leituras passadas, remotas – Moby Dick, Odisséia – que vinham brincar em sua mente e o induzir a escrever. O navio afundou, pois então. Havia um barco salva vidas, mas apenas um e todos os quinze tripulantes fizeram um pacto para, juntos, morrerem no navio sagrado que construíram e com o qual sonharam em conquistar o mundo, ou pelo menos, um mundo, como o famigerado Cortés. Era o fim da história, então. Releu o que havia escrito. Sorriu para si mesmo e pensou se queria realmente ter escrito sobre um navio que afundada e um pacto de morte. Acendeu um isqueiro e queimou a folha de papel no cinzeiro...

01 setembro 2008

Encantamento



Cefas Carvalho

Eu sabia que estava encantado por ela. Também conhecia o mundo – e as mulheres, mas afinal elas e o mundo são a mesma coisa – para saber que ela também estava encantada. O bar estava quase deserto, à meia luz, o som ambiente despejava Marisa Monte, ela traja vestido preto, o vinho branco...quase a perfeição, enfim. Bastava que eu não desse um passo em falso. Não dei. Falava sobre poesia, literatura, cinema, um pouquinho de política só para apimentar...opinamos sobre o referendo do desarmamento só para mostrarmos um para o outro que estamos atualizados com o mundo lá fora. Tolice, não havia mundo lá fora. Havia apenas os imensos olhos tristes dela, sempre parecendo à beira das lágrimas. Mas ela não chorava e nem eu a deixaria chorar. Ela apenas sorria com aqueles lábios de quem vai devorar o mundo. Ou a mim. Ela então perguntou se eu gostava do perfume dela...aroma de pitanga...foi quando o encantamento se tornou quase sólido, de tão presente. Sabíamos que um beijo era questão de tempo. E foi. No estacionamento, antes de chegarmos ao carro, enlacei-a e o encantamento continuou... agora amalgamado com o desejo... O fim da noite seria inevitável...mas, a realidade conspirava contra nós. Ela casada, eu idem. Ambos com compromissos nas próximas horas. Marcamos outro encontro discreto e fortuito para dali a uma semana. Estou encantada, suspirou. Eu também, respondi, no mesmo tom de voz ofegante. Quando nos deixamos, não sem custo, eu continuava em estado de encantamento. Mal poderia esperar a semana passar para revê-la... Todavia, a semana passou – afinal, o tempo sempre passa – e chegou o dia do encontro. Ao contrário da semana anterior, trabalhei quase até a hora de vê-a e cheguei no restaurante ainda sob a pressão e certo mau humor do trabalho. Ela demorou a chegar, o que aumentou minha irritação. O restaurante estava mais cheio do que da outra vez, com um barulho aos meus ouvidos insuportável. Pensei em mudar de restaurante quando ela chegou. Estava bonita – sempre o era – mas sem maquiagem e de calça jeans e blazer, parecia mais uma mulher de negócios, como as tantas que eu tinha que lidar todo dia, do que com a mulher sensual por quem eu havia me encantado. Também parecia cansada e de mau humor. Confessou que tivera problemas no emprego, mas decidimos não falar sobre isso. Pedimos vinho, mas, tenso, eu teria preferido uma dose de uísque. Ela reclamou que o vinho não estava suficientemente gelado. Ela tentou conversar sobre um livro que estava lendo, mas não prestei muita atenção... Cogitamos jantar, mas por fim, concluímos que era melhor não fazê-lo. Inventei que tinha um compromisso importante e ela respondeu, aparentemente aliviada, que compreendia. Olhamos-nos com atenção, algum pesar e uma boa dose de tédio, e ambos compreendemos, então: o encanto tinha acabado.

26 agosto 2008

Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres


Cefas Carvalho


Olhou-se no espelho, radiante de felicidade, e disse para si mesmo: “Hoje vou conseguir morrer!” Sentiu-se então mais leve com este pensamento, sem aquele peso nas costas que lhe parecia todo o peso do mundo. Coçou a barba cerrada que sujava seu rosto e pensou em raspá-la. Tolice, raciocinou, não fará diferença posto que hoje vou morrer. Pegou o barbeador manual na pia e suavemente passou pelo braço, passeando a lâmina, na sua pele. Mas não moveu a lâmina no sentido horizontal, o que cortaria suas veias. Não queria morrer sangrando em um banheiro de hotel e tinha dúvidas se a pequena lâmina conseguiria provocar um ferimento que o levasse a uma morte rápida e indolor. Sim, queria morrer, mas não desejava sofrimento. Já tivera seu quinhão de sofrimento na vida e não queria mais uma cota na hora sagrada em que decidira deixá-la.

Saiu do banheiro e atirou-se na cama. Era como se estivesse em casa, como se estivesse em um lugar familiar. Foi quando atinou que não se lembrava do nome do hotel onde estava. Procurou descobrir nos lençóis, nas fronhas, em um possível cardápio em cima do frigobar. Nada. Não se importou mais com isso. Queria apenas pensar em morrer. Pensou em se atirar pela janela, mas o que menos desejava era alarde e espalhafato. Pensava também que tal tipo de morte atrapalharia muitas pessoas, talvez interrompesse o trânsito lá embaixo e não queria que isso acontecesse. Também imaginou com horror que a queda livre, ainda que brutal, talvez não o matasse, e sim apenas o deixasse tetraplégico. Seria pior que a morte. Começou a idealizar outro tipo de suicídio, quando percebeu que não sabia em que andar se encontrava. Na verdade, não recordava de ter entrado no hotel ou de ter preenchido a ficha na recepção. Pensou em abrir a janela para respirar ar puro e calcular onde estava, mas por alguma estranha razão desistiu da idéia. Também desprezou a idéia de telefonar para a recepção ou descer. Por alguma razão, tinha a certeza de que deveria permanecer naquele quarto e levar a cabo a decisão de simplesmente morrer. Foi quando observou, em cima da mesa ao lado da cama, um revólver calibre 38, velho e funcional. Jamais usara uma arma na vida, mas quando pegou o revólver experimentou uma sensação de familiaridade, como se já tivesse vivido aquela cena.

Acariciou a arma como quem faz carinho em um gato e conferiu se estava carregada. Tinha uma bala apenas, mais que suficiente para sua empreitada. Conferiu o cão da arma, engatilhou a bala e instalou o dedo indicador da mão direita no gatilho. Levou o revólver à têmpora, onde, sempre lera sobre isso, não havia a menor possibilidade escapar vivo uma vez atirando. Olhou em volta na tentativa derradeira de encontrar algo, um objeto, uma cor, um símbolo, que lhe parecesse familiar ou que fizesse lembrar algo. Inútil. Tudo lhe parecia inócuo e distante. Queria morrer e sabia que aquela era a hora. Pressionou o gatilho e ouviu dentro de sua cabeça, como um trovão, o barulho demente do tiro. Morri, pensou, tremendo de felicidade.

De repente, abriu os olhos. Sentiu o buraco em sua cabeça e a bala presa na parede. No mais, tudo continuava silencioso e deserto. Estava em pé, consciente e sem sentir dor. Aliás, não sentia qualquer sensação. Pegou um canivete do bolso e talhou um corte na mão esquerda. O sangue, ou um líquido parecido com ele, escorreu, mas não sentiu qualquer dor. Sabia que poderia retalhar dedo por dedo da mão que não sentiria rigorosamente nada. Descobriu então, entre o horror e o conformismo: já estava morto havia tempo. Só não havia percebido isso...

20 agosto 2008

Coração: jogo de dados


Cefas Carvalho



Sentia o coração apertado, como se uma mão forte e impiedosa o esmagasse. Além de oprimido, o coração, acelerava como se na expectativa que algo fosse acontecer. Mas, sabiam ele e seu coração, que nada aconteceria naquele momento. Estava triste e só, como deveria ser. Dúvidas, tinha muitas: se deveria ter feito o que fez, arriscar a felicidade como quem aposta fichas em um jogo de dados... Certezas eram poucas. Entre elas, a de que não deveria escrever poesia, muito menos mostrá-las aos amigos. Divulgá-las, seria um pecado mortal. Apesar do que todos pensavam, não se deve escrever poesia quando se está muito triste. O fundo do poço não é amigo dos bons versos. Também decidiu não desfilar sua dor como quem passeia com uma roupa nova em uma passarela. Sua dor seria confinada ao quadrado sujo de uma solitária mesa de bar ou ao retângulo de uma folha de papel ofício branca, pronta a receber rabiscos, planos, idéias, frases soltas e desconexas... Aos garçons dos bares, aos amigos – falsos, em profusão, e verdadeiros – aos filhos e patentes, apenas sorrisos polidos e levemente melancólicos. Para não enlouquecer, escreveria. Como um louco, como se fosse morrer se não o fizesse. Escreveria de tudo: contos, crônicas, roteiros de viagens imaginárias, tabelas de campeonatos de futebol igualmente imaginários, desejava apenas ver a tinta azul da caneta correndo sobre o papel... desenharia cubos, rabiscaria plantas de casas, traçaria anjos e demônios... havia quem procurasse - quando da tristeza – o auxílio dos entorpecentes e outros prazeres fáceis. Preferia se afundar no trabalho e nas palavras, as queria em profusão, em excesso. No fio da navalha onde caminhava, entre a serenidade e o desespero, sabia que a verborragia poderia lhe salvar, ou, na pior das hipóteses, servir como ungüento.
Poderia escrever uma carta de amor. Para ela. Poderia escrever seu nome mil e uma vezes...
Poderia começar a escrever um romance, sobre um amor destinado a correr o mundo e a conquistá-lo, mas que se perdeu na vala fácil dos ciúmes e do cotidiano.
E foi isso que fez.

14 agosto 2008

Lana


Cefas Carvalho


Chamava-se Lana, como na canção de Roy Orbison. Ela era bela e triste, como todas as canções do Roy. Conheci-a em um bar, lugar sagrado onde geralmente conhecemos as pessoas importantes que marcam a nossa vida. É tolice tentar descrevê-la. Bem sei que não tinha uma beleza convencional, tampouco era dona de imensos olhos azuis, como nos clichês românticos. Era bela e normal. Estava sozinha na mesa, iluminando o local com seus olhos melancólicos e oblíquos, como diria Machado de Assis de sua Capitu. Ganhei coragem para abordá-la e me convidei para sentar à sua mesa. Ela concordou, disse como se chamava – Lana... – e conversamos sobre tudo e sobre nada... Compartilhamos nossas tristezas, rimos das nossas parcas alegrias nesta vida, descobrimos que ambos estávamos sozinhos e à deriva, tanto naquela noite como na própria vida, e por fim convidei-a para passar a noite no meu apartamento. Compramos uma garrafa de vinho tinto barato, pegamos um táxi e nos trancamos em nosso pequeno universo. Foi uma noite inesquecível, com Lana em meus braços...daquelas noites que não deveriam terminar nunca. Terminados os jogos amorosos, cogitei pedir seu número de telefone e perguntar onde ela morava, e talvez jurar aos seus pés que queria vê-la mais mil vezes, mas considerei que quando acordássemos, pela manhã, eu faria tudo isso e muito mais. Dormi o sono dos justos e dos exaustos de tanto amar. Acordei com uma leve ressaca por volta das onze e quando dei por mim, percebi que Lana não estava mais no quarto. Não estava mais no apartamento, havia ido embora. Dando uma geral pela casa, percebi que tudo estava em ordem, ela não levara nada, mas também não deixara nada. Talvez só ainda mais tristeza dentro de mim. Recordei, mais melancólico do que nunca da canção de Roy Orbison: Oh beautiful Lana...

30 julho 2008

Os papas só pensavam "naquilo"



Cefas Carvalho

Conversando dia desses com um amigo sobre atualidades e trivialidades, comentamos sobre a seqüência crescente de padres envolvidos em pedofilia e escândalos sexuais. "Antigamente isso não acontecia", suspirou, lamentando as mazelas deste nosso "admirável mundo novo". Contestei, registrando que fatos do gênero acontecem desde que o mundo é mundo, mas o homem teimoso como todo taurino, não arredou pé da sua idéia. Como também sou taurino, e além de teimoso, chato, decidi jogar as provas do que eu defendia na cara dele. Lembrei que havia lido meses atrás uma resenha sobre um livro cujo curioso título me interessou: "A vida sexual dos papas".

Corri até a finada AS Livros da Salgado Filho e eis que achei escondido numa prateleira no segundo andar o dito cujo. Após me certificar que não era uma picaretagem caça níqueis e sim um estudo sério (feito pelo historiador Nigel Cawthorne, editado pela Prestígio/Ediouro em 2002, R$ 40) comprei o livro. Tão bem escrito e cheio de fatos e anedotas que devorei suas trezentas páginas em três dias. O livro é delicioso não apenas para ateus (nobre categoria na qual este escrevinhador se inclui), agnósticos, iconoclastas e interessados em história de modo geral, mas para qualquer um que se disponha a entender que como diz o próprio Eclesiastes, "não há nada de novo sob o sol". Perversões sempre existiram, talvez tenham até diminuído, pelo menos no seio (ops) da Igreja Católica Apostólica Romana.

Mas, vamos ao livro. Ele relata que a mensagem cristã de abstinência ou moderação sexual caiu bem em uma Roma às voltas com perversões dos poderosos e liberalidade sexual. Contudo, com o passar dos séculos e tão logo os papas se ligaram à Casa Imperial e ao poder (papa Vitor I, em 190, foi o primeiro a manter relações cordiais com o imperador) a situação se inverteu e a cultural sexual romana contagiou o clero e a Igreja. Começaram a proliferar casos de padres envolvidos em escândalos sexuais, embora seja preciso ressaltar que nesta época o celibato era recomendado, não imposto aos padres.

Segundo Cawthorne, Sisto III (432) chegou a ser julgado pela sedução de uma freira. Zacarias (752) foi o primeiro pontífice a usar roupas paramentadas com ouro e jóias e abriu caminho para seu sucessor Leão III (795) inaugurar a era dos grandes banquetes papais. Ele teve, durante a vida e inclusive como papa, três esposas, que lhe deram 8 filhos, e no final da vida cercou-se de três concubinas. Mas na Idade Média tudo iria piorar...o século 10 ficou conhecido como o período da "pornocracia papal" quando duas prostitutas, Teodora e Mariozia manipularam o clero e o colégio de cardeais durante décadas.

Tudo começou quando Teodora deu sua filha Marozia, de 15 anos, de presente para o papa Sérgio III (904). A partir daí, elas entraram em ação, até que Marozia conseguiu fazer em 931 que seu filho João XII fosse ungido papa. Segundo os historiadores, ele era bissexual e sádico e escandalizou a Igreja ao ordenar bispo um menino de 10 anos. Cinqüenta anos depois, um menino de 12 anos, Benedito IX seria eleito papa, e reza a história que ele era não apenas bissexual e zoófilo, mas praticante de satanismo.

O século 11 é marcado por discussões teológicas sobre masturbação, sodomia e posições sexuais (isto daria pano para a manga em outra crônica...) e neste contexto o celibato foi oficializado pelo vaticano no Concilio de Piacenza em 1095. No mesmo dia, a Igreja decidiu vender como escravas as esposas dos padres que eram casados. Mas, permitia que os padres tivessem uma - apenas uma, que fique claro, concubina, desde que pagassem ao papado uma taxa anual.

Neste contexto (estamos na bruta Idade Média, é bom não esquecer) e cada vez com mais poder e impunidade, proliferam histórias bizarras de papas: Anacleto II (1130) estuprava freiras, Gregório X teve que afastar da Igreja seu amigo o bispo de Liége porque ele tinha 70 concubinas e 65 filhos, Bonifácio VIII (1294) teve como amantes ao mesmo tempo uma mãe e sua filha, Clemente VI (1342) comprou um bordel para o papado (inclusive recentemente o historiados Joseph Mc Cabe descobriu a escritura do negócio, “feito em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo”, segundo o documento), Inocêncio VII (1510) em seu leito de morte só queria um alimento: leite materno. Arrumaram-lhe uma ama de leite. Seu médico teve a brilhante idéia de fazer-lhe uma transfusão de sangue e arrumou três jovens para isso...as três morreram no processo.

Mas, reza a história que o pior de todos os papas foi Alexandre VI (1492-1503), nascido Rodrigo Borja na Espanha e que na Itália teve o nome mudado para Bórgia, dando origem à poderosa e trágica família. Este papa era assassino, mutilador, torturador e um predador sexual, tendo entre seus feitos, seduzido uma mulher e suas duas filhas e tido um longo caso com sua própria filha, a célebre Lucrecia Bórgia. Segundo o livro de Cawthorne, Alexandre VI foi eleito papa graças ao voto de um monge que pediu em troca uma noite com Lucrecia, na época com 12 anos. Rodrigo nem hesitou em ceder a filha...

A partir de 1600, rareiam as histórias picantes envolvendo papas, por pelo menos duas razões históricas: a Reforma, que gerou o protestantismo e obrigou a Igreja Católica a se repensar, e o surgimento dos livros impressos, que possibilitaram a disseminação de idéias e histórias com maior rapidez e quantidade. Desnecessário dizer que a partir do século 19 a força da imprensa e da mídia tornou quase impossível a tolerância da opinião pública a deslizes dos papas. O que não quer dizer que eles não aconteçam... De qualquer forma, o que vem à tona são os casos envolvendo padres. Mas nada que se compare ao que os papas já fizeram, a institucionalmente em boa parte dos casos. Bem, uma vez contemplado com tantas histórias, gravuras, fatos documentados meu teimoso amigo capitulou e teve que admitir que - pelo menos no passado – suas santidades só pensavam mesmo "naquilo"...

21 julho 2008

O amor é um pássaro rebelde



Cefas Carvalho

Era tão simples. Bastava pedir perdão. Eu sabia que ela iria me perdoar. Bastava um telefonema, portanto. Ou mandar um buquê de rosas com um cartão de desculpas. Ela já havia me perdoado antes, como eu a ela. Desde o dia em que nos conhecemos, em uma festa, apresentados por uma amiga em comum. Eu jamais vira uma mulher com os olhos tão brilhantes, como mais tarde confessei. Ela assinalou que seus olhos brilhavam por minha causa. Naquela noite, dançamos muito, e em mais de uma oportunidade tive de pedir desculpas quando pisei em seu pé, mau dançarino que sempre fui, o que gerou muitas risadas. Horas mais tarde, já na cama, no porto seguro de meu apartamento, ela me pediu desculpas por ter pensado em pedir um táxi e sair às pressas, como quem foge. Estava feliz e sentia dificuldade em administrar a própria felicidade, confessou. Com o perdão de lado a lado, iniciamos nosso romance, amalgamando o mais terno dos carinhos com o fogo da paixão. Ela pediu em uma tarde chuvosa, enquanto passeávamos em um parque, que eu definisse o amor. O amor é um pássaro rebelde, respondi. Ela sorriu, sabia que era um trecho da ópera Carmem. Gostava de ópera, como de música, como de literatura, teatro, poesia e comida japonesa, como eu. Cuidado, pois os pássaros rebeldes não suportam ficar na gaiola e podem morrer nas grades, tentando sair dela, sorriu. Respondi que, da gaiola onde eu estava, jamais tentaria sair. E era verdade. Contudo, mesmo dentro da gaiola, dois pássaros rebeldes bem poderiam, mesmo sem querer, se ferir. Em alguns momentos fui eu quem a feriu, exaltado diante de tanto sentimento. Outras vezes, foi ela quem me agulhou, desconcertada com a profusão do mesmo sentimento. Ambos pedimos perdão um ao outro e a paz voltava a reinar em nosso castelo feudal de amor, onde costumeiramente levantávamos uma ponte levadiça para nos protegermos dos falsos amigos, do mau olhado, das leviandades, inimigos implacáveis do amor. Desta forma, o tempo foi passando e nosso amor, tal como um pássaro rebelde, perseverava, mas se debatendo nas grades da gaiola. Alternamos planos – ter filhos, viajar para os lugares dos nossos sonhos – com os fantasmas do rompimento. Chorei e gerei lágrimas. Até que em uma noite quente como o inferno, ela perguntou se eu a amava. Respondi que sim, mas com uma distração fatal, posto que minha mente vagueava em idéias diversas e meu coração estava pesado, graças a uma discussão tola na noite anterior. Diante da minha resposta ela nada falou. Foi para o quarto, leu um livro e adormeceu. Rabisquei em um papel minhas malditas idéias, tomei um copo de leite quente e fui dormir ao seu lado. Religiosamente, estivesse ela dormindo ou acordada, eu a beijava no rosto, à guisa de boa noite. Mesmo dormindo, ela ensaiava um meio sorriso quando eu a beijava. Naquela noite desgraçada, por sono ou negligência, não a beijei. Quando acordei, na manhã seguinte, ela não estava na cama. Nem no quarto ou em qualquer lugar na casa. Suas roupas não estavam no armário, perto das minhas. Encontrei na mesa um bilhete, escrito em letra nervosa, onde ela explicava que percebera que eu não a amava mais. E que não suportaria mais viver comigo sem ter a certeza do meu amor. Pensei em ligar imediatamente para seu celular, ou para a casa da sua mãe, mas, por alguma razão, não fiz nem um nem outro. Não tenho nada que pedir perdão, pensei comigo mesmo e voltei a dormir. Horas depois, ao acordar novamente, a dor me acertou em cheio, como um soco. Era tão simples, bastava pedir perdão, como das outras vezes. Mas, o orgulho era um pássaro tão rebelde quanto o amor, de maneira que fiquei me jogando nas paredes da minha gaiola imaginária até me decidir por procurá-la e pedir perdão. Seu celular estava desligado. Liguei para a casa dos pais dela. Uma tia, aos prantos, atendeu e me deu a sentença: ela havia se matado, com uma mistura de tranqüilizantes, uísque e formicida. Era tão simples. Bastava ter pedido perdão na hora certa. Abri a geladeira, bebi um copo de leite gelado e saí pela casa fechando todas as janelas, para em seguida vedá-las com massa. Abri a tampa do forno, liguei o botão do gás e descansei a cabeça na grade de ferro, esperando o momento em que eu teria a chance, felizmente, de pedir perdão a ela. E dizer que sim, eu a amava. Até à morte

15 julho 2008

Uma ciranda em volta da fonte


Letra: Morrissey

Tradução livre: Cefas Carvalho

(Obs: Abaixo da tradução, segue a letra de “Reel Around the fountain”, canção de Morrissey/Marr, da banda inglesa The Smiths, gravada para o álbum “The Smiths”/1984)

Chegou a hora da revelação
De como envelheceste uma criança
Tomando-a pela mão...

Uma ciranda em volta da fonte
Recebo teu tapa em meu rosto
E o aceito, neste instante!

Quinze minutos ao teu lado
Sabes que eu jamais diria “não”
Todos diziam que estavas virtualmente morto
E como estavam todos errados...

Quinze minutos ao teu lado
Sabes que eu jamais diria “não”
Todos diziam que eras maria-vai-com-as-outras
E não estavam de todo errados...

Chegou a hora da revelação
De como envelheceste uma criança
Tomando-a pela mão...

Quinze minutos ao seu lado
Sabes que eu jamais diria “não”
Ninguém reconhece teu valor
Apenas eu, meu amor!

Sonhei contigo noite passada
E por duas vezes caí da cama gelada
Portanto, faça de mim uma borboleta
Em sua coleção
Mas, “leve-me para o abrigo de tua cama”
Nunca disseste a quem tanto te chama
Duas colheres de açúcar, por favor
Podes até bancar a mais fina flor
Pois também eu, o farei...

Um encontro lá na fonte
Um empurrão bem no meio do pátio
Algo que aceitarei com lentidão...

Quinze minutos ao seu lado
Sabes que eu jamais diria “não”
Ninguém reconhece teu valor
Apenas eu, meu amor!

********************

Reel around the fountain

It's time the tale were told
of how you took a child
and you made him old

It's time the tale were told
of how you took a child
and you made him old

Reel around the fountain
Slap me on the patio,
I'll take it now...

Fifteen minutes with you
well, I wouldn't say "no"
Oh, people said that you were virtually dead
and they were so wrong

Fifteen minutes with you - Oh, I wouldn't say "no"
Oh, people said that you were easily led
and they were half-right

Fifteen minutes with you - Oh, I wouldn't say "no"
Oh, people see no worth in you, but I do

I dreamt about you last night
and I fell out of bed twice
You can pin and mount me like a butterfly
But "take me to the haven of your bed"
was something that you never said
Two lumps, please
You're the bee's knees
but so am I

Oh, meet me at the fountain
Shove me on the patio,
I'll take it slowly...

Fifteen minutes with you - Oh, I wouldn't say "no"
Oh, people see no worth in you, but I do

07 julho 2008

Chuva


Cefas Carvalho


Nove e quinze da noite
Uma canção de Cartola inunda a sala
Uma chuva rala cai lá fora
Cubos de gelo dançam em transe
Em um copo sempre cheio.

O copo não se esvazia
O coração, sim.

Onze e quinze da noite
De uma noite que não terá fim
Um vazio que transborda o mundo...
Cubos de gelo bailam em delírio
Em um copo sempre presente

Enfim, o copo se esvazia.
O coração também.

30 junho 2008

Cavaleiro andante


Cefas Carvalho


Sou um cavaleiro andante. Por Deus que, com minha arma e meu escudo, honrarei o brasão de minha família e não perecerei nas mãos destes malditos que me perseguem! Se me escondo neste aposento escuro deste castelo amaldiçoado é porque os infiéis são em grande número e preciso permanecer vivo para defender meu rei e meu castelo. Os malditos querem me capturar e me submeter a incontáveis torturas. Ouço ruídos e percebo que os vilões estão atrás de mim. Preciso fugir deste calabouço e partir para minhas nobres epopéias, matando dragões e salvando donzelas. Sou um cavaleiro andante, repito, e com minha armadura e minhas armas, levo a justiça até os confins do Reino, com a benção do meu rei, imperador destas terras, e de Deus Nosso Senhor. Empunho minha espada sagrada e aguardo os ímpios adentrarem o aposento. Gritos de guerra e urros quase bestiais. Percebo que a legião de feiticeiros, todos de branco, começa a me cercar. Dois dos mandriões carregam consigo um pano mágico, com o qual querem me aprisionar. Outro feiticeiro tem entre os dedos a agulha do demônio... Não se aproximem de mim, seres infernais, afastem-se de um cavaleiro ungido pelo rei, larguem-me cães do inferno...

*

- João, onde coloco essa vassoura?
- Lá no almoxarifado. Rapaz, hoje o homem estava brabo. Ele segurava a vassoura como se fosse uma espada...
- Esse aí está cada vez mais doido. Trabalhar em hospício é assim mesmo, meu caro...
- Mas com a injeção que tomou, vai dormir até amanhã. Ei, hoje tem jogo lá no caminho do bairro?
- Rapaz, acho que sim. Bater uma bola é bom depois de um dia desses. E o cara gritando que ia salvar princesas, hein?...

14 junho 2008

O carrinho de metal


Cefas Carvalho


Sujo, feio, mal ajambrado, triste em sua velha camisa do Flamengo e em seu calção roto, o menino olhava pela vitrine da loja fechada, o carrinho de ferro. Sonhara com aquele brinquedo. Imaginava a inveja dos amigos de favela ao verem o carrinho, vermelho, brilhante, novinho em folha. Não tinha comido nada naquele dia inteiro, salvo um pão com mortadela. Mas não pensava em comprar comida. Pensava no brinquedo. Percebeu que um veículo parou no meio fio, bem atrás dele. Do carro, desceu um senhor gordo, de cabelo e barbas brancas, com um sorriso no rosto. Parece Papai Noel, pensou o menino. Viu que o homem botou a mão no bolso. Ganharia uns trocados. Estava com fome, queria um sanduíche, mas se economizasse o dinheiro, poderia comprar o carrinho dali a alguns dias. Ah, quando os amigos o vissem com o brinquedo. Sentiu, de repente, uma pontada seca no peito, como uma agulha a furar sua pele. Um gosto estranho lhe subiu à garganta. Uma vontade de cuspir. Tossiu sangue e percebeu, então, a camisa do Flamengo úmida, com o tecido queimado. Olhou para o homem e só então observou a arma fumegante em sua mão direita. Caiu no chão, sentado, não sabendo se olhava para o homem ou para o brinquedo pela vitrine. Sentiu que um sono lhe invadia. Parecia Papai Noel, pensou, antes da dar a última olhada para o carrinho de metal.

13 junho 2008

Ele, a Realidade, os Livros e os Outros



Cefas Carvalho

Escapava à realidade se afundando nos Livros. Ou melhor, entrava – quando nos Livros – em uma realidade paralela, mais ordenada. Em mais de uma ocasião, ao longo da vida, imaginou se a realidade não consistia nos Livros, sendo o chamado mundo real uma mera ficção, de qualidade duvidosa. Quanto a escapar à realidade, fazia isso desde criança; para não ouvir os pais discutindo, para não participar das brincadeiras violentas e idiotas dos colegas de escola e dos amigos da rua onde morava. Sempre que a realidade lhe aborrecia ou lhe seria dolorosa, abria um Livro, qualquer Livro. Tinha as suas preferências: a princípio Monteiro Lobato, Julio Verne, Alexandre Dumas, a coleção Vaga Lume... Com o passar dos anos, foi se acostumando ao mundo como ele era: perigoso, misterioso, falso – mas manteve o hábito de se esconder nos Livros. Um esconderijo que, na verdade, se tornava cada vez mais voluntário, prazeroso e absorvente. A esta altura, já abandonara Conan Doyle e Agatha Christie e começava a descobrir Machado de Assis, Jane Austen, Emily Bronte... Percebia que os Livros, além de fuga à realidade, podiam não apenas relatar aventuras e convidar à elucidação de mistérios, mas também estimular a reflexão, criar imagens e retratar realidades complexas, estranhas. Cresceu, então. A realidade à sua volta mudou. Ficava cada vez mais séria, e os Livros também. Descobriu Orwell, “1984” o impressionou... Caiu em suas mãos “Fahreinheit 451”, que também o marcou... Adentrou o mundo dos espelhos e sombras de Borges, refugiou-se nos clássicos franceses e russos. Agora, o que antes era indiferença para com ele passou a ser intolerância. Havia os Livros. Havia a realidade. E havia os Outros. Eles, os Outros, ou o mundo, o que lhe era a mesma coisa, começaram a lhe tentar impor regras. Era obrigado a dançar, ouvir músicas histéricas em volume máximo, contar piadas sem graça, se divertir, enfim. Passou a ser tratado como anti-social. A princípio não levou a sério. Tinha os Livros. Tinha Balzac, Kazantzakis, Saramago, por que precisaria dos outros? Percebeu que os Outros passaram a não mais lhe dirigir a palavra. Não se importou. Afinal, o que tinha a falar com os Outros? Até que um dia, inventaram leis proibindo ler Livros em lugares públicos. Passou a ler em casa, trancado na solidão confortável do seu quarto. Ouviu dizer que ler seria proibido. Não se importou, como sempre. Leria ainda mais trancado, a sete chaves, em casa. Um dia, entraram em sua casa, de repente, e o levaram para uma espécie de tribunal, escuro, sombrio, frio, como em um livro de Kafka. Sem falar muito sobre o que estava acontecendo, tiraram-lhe os Livros. Perguntaram-lhe se os renegaria, se aceitaria queimá-los. Seria libertado e, melhor, aceito no convívio dos Outros. Viajaria, gozaria a vida. Respondeu afirmando que leria até quando pudesse. Furaram-lhe os olhos. Em meio à dor lancinante lembrou-se dos poetas cegos que tanto lera; Borges, Milton, Glauco Mattoso, lembrou de Édipo... Ó treva indescritível que me envolves, nuvem que não consigo dissipar... Não precisaria dos olhos. Tinha todos os Livros que lera em sua mente. Começou a recitar poemas que amava, de Lawrence, Neruda, Bandeira... Cortaram-lhe a língua. Sangrando, ao chão, escreveu com o dedo na poeira do piso um verso. Morreu com um sorriso nos lábios, e com cada palavra de cada Livro que lera na vida em sua mente. Os Outros correram para ver o que ele escrevera: Bendita a morte que é o fim de todos os milagres...

05 junho 2008

E meu coração precisa dos seus passos



Cefas Carvalho

Acelerado, aos coices, feito cavalo indomado, meu coração dispara quando meus olhos testemunham a entrada dela na sala. Aos olhos, meros escravos do coração, cabe o deleite de testemunhar sua beleza, a pele de porcelana, o olhar luminoso saído de uma musa de Da Vinci, o sorriso que muito insinua e pouco revela... ao coração, navio na tempestade, desgraçado que se perde a bombear sangue aos saltos, cabe a sensação que o corpo inteiro vai explodir. Percebo, com o coração aos arranques, que ela se aproxima de mim; é a vez do olfato entrar em cena, mal cerro os olhos... sinto seu perfume, cujo aroma não consigo identificar, mas que se torna inconfundível quando mesclado à sua pele... Ela fala algo, mas também não consigo identificar, talvez pronuncie verbos sagrados na língua dos anjos, linguagem que não domino e jamais dominarei, posto que aprendi desde cedo a linguagem terrível dos mundos infernais... mas sua voz faz meu coração aumentar seu ritmo, como vendaval que sacode freneticamente as plantas... Abro os olhos então e testemunho seu sorriso. Ela se volta, suave e elegantemente e anda em direção ao sacro lugar onde, adivinhava eu com o instinto infalível dos que amam, seria nosso encontro. Percebo, então que meu coração precisa dos seus passos e a acompanho como as crianças seguem a melodia mágica do flautista...

23 maio 2008

Uma mulher vestida de lua



Cefas Carvalho

Quando percebeu os olhos dela fixos nos seus, compreendeu que aquela mulher entraria na sua para nunca mais sair dela. Como se ligados por algum código secreto, começaram a conversar como se o fizessem havia anos, como se conhecessem de outros tempos, talvez de outras vidas. Sem hesitação, sem pudores, ele pegou na sua mão e teceu elogios à sua beleza, aos seus olhos brilhantes. Celebrou sua pele clara, leitosa, como se fosse feita de lua. Era uma mulher toda vestida de lua. Não tardou que os lábios de um procurassem os do outro, como velhos cúmplices. O beijo se deu como se fosse impossível existir um mundo onde não se beijassem. Falaram sobre si mesmos, sobre a vida e sobre o futuro, juntos. Fizeram planos, viagens, filhos, obras, alegrias e prazeres. Juraram um para o outro não apenas uma vida eterna em comum, mas a felicidade eterna, quimera talvez mitológica, mas que estavam dispostos a tentar. Ele jamais se sentira tão feliz em sua vida de tantos dissabores. Deram as mãos e foram caminhar na floresta, sob as bênçãos da lua cheia e das estrelas que venciam o firmamento. Caminharam como se flutuassem. Até que por um único e breve instante ele largou a mão dela, e, aturdido, a viu flutuar, até levantar-se do chão e voar a uma distância onde não poderia alcançá-la. Ela olhou para baixo e percebeu o desespero dele, mas não havia o que fazer. Ele percebeu que ela se fora, se unir à lua, se perder no brilho inefável daquela noite mágica e trágica. Acordou de repente. Apertou os olhos, à guisa de despertar definitivamente e olhou em volta. O relógio marcava nove e quinze da manhã. Papéis e livros se espalhavam em volta do colchão, disputando espaço com as latas de cerveja amassadas e o cinzeiro sujo. Olhou o porta-retrato, onde a foto dela ainda perseverava, como uma ferrugem que se une ao metal. Olhou seu sorriso luminoso, seus olhos de paixão, sua pele da cor da lua... lembrou do sonho que tivera. Pensou em telefonar para ela, mais uma vez. Mas, desistiu. Não poderia ter a lua em suas mãos. Fora feliz e deixara a felicidade escapar entre seus dedos. Perdera para o firmamento.

13 maio 2008

Pai, por que me abandonaste?



Cefas Carvalho

Dor... que sabem estes infelizes sobre a dor? Não me venham com as dores da alma, as dores do espírito... estas são curáveis com o tempo, com uma palavra doce, com uma recordação dos dias felizes... a dor que conta é a gerada pelos cravos entrando na carne, dilacerando veias e ossos... uma dor que começa funda, intensa, depois vai diminuindo e se tornando estranhamente estável, como uma anestesia, só que à base de dor. Depois vem o cravo, um só, que entra nos pés entrelaçados, com uma única martelada, potente, decidida. A dor dos pés é mil vezes mais intensa que a das mãos e é possível ouvir os ruídos dos ossos estilhaçados pelo aço... Que sabem eles sobre dor, portanto? Não há dor que se assemelhe a esta. Não existe chibata ou espinhos em forma de coroa que possam gerar mais dor que os preços a grudar um corpo em dois pedaços de madeira a fazer - da carne e da madeira - uma maldita cruz, que nada tem de sagrado. É um método de infligir dor e morte a um homem, que deixa de sê-lo após pregado na madeira como um animal. E passam as horas e a dor nem aumenta e nem diminui, apenas se modifica. Vem em ondas, em camadas. Uma dor aguda, latejante, que quase leva à inconsciência, mas, infelizmente, não é forte o suficiente para trazer o sono ou tirar a vida. Dor... que sabem ou saberão tantos milhões de infelizes sobre a dor? Só sabe sobre a dor quem tem três cravos imensos mesclados ao corpo e vê àquela desgraçada mulher que teve a má sorte de me parir chorando na areia ao testemunhar com os olhos que a terra há de comer o filho maldito pregado em uma cruz de madeira. O que, em meio a tanta dor, eu poderia gritar para o mundo, senão Pai, por que me abandonaste?

12 maio 2008

Caiu a máscara de Jajá



Cefas Carvalho

Pessimista (ou realista) que sou, nunca fui muito de acreditar que as pessoas podem mudar para melhor. Geralmente, mudam para pior. Também nunca fui muito de crer que de um rio poluído pudesse sair água potável. Mas, eis que a realidade por vezes nos surpreende e nos brinda com coisas inusitadas. Neste sentido, tive uma alegria nos últimos tempos com o ilustre senador José Agripino Maia, de quem jamais esperei ter qualquer tipo de satisfação. Após tantos anos acompanhando os "rabos de palha" de Jajá e seus vitupérios contra o Governo Lula e qualquer coisa se assemelhe à Esquerda e aos movimentos progressistas, tive a satisfação de assistir a um ato falho do "democrata" em pleno Senado, por ocasião da sabatina à ministra Dilma Roussef sobre o dossiê contra os "tucanos". Agripino, tomando como base uma entrevista da ministra à Folha sobre seus tempos de presa política na época da ditadura militar, questionou se ela não mentiria no Senado como mentiu quando presa e torturada. A resposta de Dilma já entrou para a história da política brasileira e dos Direitos Humanos no país. "Numa democracia, se fala a verdade, mas numa ditadura se mente para salvar a vida dos iguais, para não morrer". Lembrou ainda que estavam em lados opostos nos anos 70, Dilma, guerrilheira, e Jajá, curtindo com a família as benesses da ditadura, prefeito biônico que foi. Dilma foi aplaudida e se entrou como investigada, saiu como heroína. Na opinião de muita gente, e minha, Agripino lançou a candidatura de Dilma à presidência da República. Leio que muitos oposicionistas se irritaram com Jajá, posto que ele não deveria ter colocado Dilma na condição de torturada por um regime brutal. É que no processo mental de Agripino, não houve ditadura e sim "revolução", como muitos ainda tratam o Golpe Militar de 64, que privou o país dos diretos básicos durante duas décadas. Talvez o ex-pefelista tenha saudades dos tempos em que familiares seus eram nomeados governadores sem disputa de votos democrática. Talvez o senador ache realmente que os jovens que se insurgiram contra um regime opressor devessem sofrer um pouco no pau de arara para "tomarem jeito". O ato falho de Agripino reflete como pensa e sente parte da elite brasileira na faixa dos 50 anos, que, no fundo, tem nostalgia dos tempos em que os militares batiam primeiro e perguntavam depois e que os prefeitos eram ungidos com base na amizade que tinham com os militares mandatários de plantão. Caiu a máscara do senador. Bem vindo à democracia, Jajá.

02 abril 2008

Nascente


Cefas Carvalho




Descobri, enfim, a nascente

do Potengi

Ele nasce na minha infância...



Rio feito de água e memórias

de uma Natal que não mais existe

(Se é que Natal existiu algum dia

a não ser na minha imaginação

e nos delírios de Cascudo...)



Assisto ao pôr do sol

no Potengi

Como se fosse a última vez que o faço...

14 março 2008

Não, não e não!



Cefas Carvalho

Tarde dessas, na Livraria Siciliano, depois de tomar um café expresso, folheei, por alguma mórbida curiosidade, um destes livros de auto-ajuda, que me provocam verdadeiro asco e que fazem a fortuna de gente como Leo Buscaglia, Shiniashiki e picaretas do gênero. Já havia dado uma olhada rápida naqueles livros que versam sobre como encontrar o amor e naqueles com analogias sobre águias e passarinhos, mas naquela tarde descobri um livro onde o autor – cujo nome felizmente não lembro – tinha fascinação pela palavra “sim”. Com base em supostas teorias psicanalíticas e sociológicas (pobres Freud e FHC) o autor defende que devemos ser “afirmativos e positivos” e que devemos dizer mais “sim”, para nós mesmos, para nossos amigos, para os filhos... Pois instantaneamente reagi ao “psicólogo-sociólogo” e inventei minha própria filosofia do “não”. Pois, em tom de auto-bravata e, confesso, deboche, decidi me aferrar ainda mais ao “não”. Não acho que o Brasil seja o país do futuro, não tenho orgulho em ser brasileiro, não choro ao ouvir o hino nacional, não torço pela seleção canarinho na Copa do Mundo, não, não e não. Não acredito mais na Esquerda brasileira, não confio na polícia do nosso país (principalmente depois de assistir a “Tropa de Elite”). Não vou conversar miolo de pote na fila do banco, nem vou dar umas moedas para o mendigo profissional que dá expediente na pracinha. Não vou dizer que respeito todas as religiões, posto que respeito as pessoas, mas não os credos, e não vou acreditar que deus está em todas as coisas, pois ainda que ele exista duvido que esteja nas baratas, nos pedófilos e nos serial killers. Não vou achar que tudo vai dar certo num passe de mágica ou por obra divina, já que acredito no postulado de Geraldo Vandré que quem sabe faz a hora não espera acontecer. Não, não vou acreditar que devo sorrir para todos porque isso vai me fazer bem. Não vou deixar de tomar café em quantidades industriais porque a última pesquisa na Suécia decidiu que cafeína faz mal. Não deixarei de comer pizza, massas e de beber minha sagrada cerveja gelada. Não vou fazer tudo que meus filhos pedem, para que não cresçam mimados e alienados, achando que o mundo é deles, correndo o risco de queimarem índios pensando se tratar de mendigos. Não vou deixar de ler à noite de me madrugada para poupar minha vista, assim como não vou deixar de ouvir música em alto volume para preservar meus tímpanos. Também não vou deixar de me entregar ao amor com medo de sofrer e não vou poupar esforços para este amor cresça tal qual o musgo na pedra, cantado por Violeta Parra em “Volver a los 17”. Em suma, minha vida é cercada de “nãos” em vez de “sims” e é com estes “nãos” que vou a tocando até o dia malfadado em que em vá desta para melhor ou que, como é mais provável que aconteça, eu volte a ser pó, posto que do pó devo ter vindo.

10 março 2008

Quase o paraíso



Cefas Carvalho


“Sabia que sua imediata obrigação era o sonho”
Jorge Luis Borges em “As ruínas circulares”





Aportou na praia cansado, ofegante, após longa e difícil navegação. Saboreou os pés descalços na areia molhada e olhou em volta. Como sabia, como sempre soube, a ilha estava absolutamente deserta. Afastou a jangada da praia e observou-a perder-se no oceano, não mais precisava dela, sua viagem era só de ida. Contemplou a praia, a ilha, a vegetação, as árvores, imaginou-se entre os animais, livrando-se de insetos, tendo de improvisar uma cabana com pedaços de pau e cipós e percebeu que poucas vezes na vida estivera tão feliz. Na primeira noite dormiu na relva, sob a música suave dos mosquitos que tentaram dilacerar sua carne. Não importava, estava feliz. Com o passar dos dias, construiu uma cabana improvisada para se proteger das chuvas fortes que viriam e de possíveis animais selvagens. Descobriu um pequeno córrego, onde a água era límpida e cristalina. Se alimentava de frutas e pequenos animais, fazia fogo friccionando varetas, como aprendera quando criança. Decidiu não contar o tempo e o tempo se passou sem que se desse conta. Decidiu não se preocupar com a aparência (por que o faria?) e passou a andar nu cada vez mais e a não cortar cabelo, barba ou bigode. De vez em quando cantava ou assobiava uma velha canção, dos tempos em que ainda vivia no mundo (no inferno?) apenas para passar o tempo, embora tivesse perdido a noção do que era o tempo. Os dias se passavam, as luas traziam as noites, ele dormia, acostumado com os mosquitos, acordava com o sol no dia seguinte e recomeçava sua vida baseada em se alimentar e se proteger das chuvas. Estava no paraíso. Ou, assim pensava. E o tempo, sempre implacável, continuava a trabalhar sob a ilha, sob seu corpo e sua alma, e subitamente, como uma pedra que cai sobre a cabeça, ele percebeu que não estava totalmente feliz, não estava totalmente satisfeito com a vida que levava e que ali talvez não fosse o paraíso. Faltava algo. Inquietou-se durante dias para descobrir o que poderia lhe faltar, posto que abdicara do mundo e das felicidades ilusórias. Um dia, percebeu o que lhe faltava. Faltava a dor. Não se vive sem dor, não se pode ser feliz sem se sentir dor. A vida sem dor é ilusória, descobriu ele, entre o alívio e o desespero. Começou a se impingir dor física. Com uma pedra, cortou-se na barriga. Fez talhos nas pernas, deixou sangrar as feridas e espalhou areia nelas. Sentiu dor, mas não como queria. Não como era para se sentir dor. Tomou uma decisão. Com a faca de sílex que improvisou, arrancou de si uma costela. Achou que fosse morrer vendo o mar de sangue na areia da praia e os ossos fraturados. Não importava. Talvez fosse melhor morrer. Dormiu então, aquele sonho entre a febre e o devaneio. Dormiu acreditando que não mais acordaria. Mas, despertou, não soube quanto tempo depois, e ao acordar, viu diante de si, uma mulher, sentada com as mãos abraçando os joelhos, observando-o atentamente. Não demorou a perceber que ela nascera de sua costela e que em sua pele uma imensa cicatriz se fazia ver. A mulher sorriu. Ele então percebeu que a amaria. E que, por esta razão, começaria a sofrer. Sentiria dor. Seria arrancado do paraíso. Para sempre. E sorriu, tremendo de felicidade.