23 junho 2009

Quando Piaf ressurgir das cinzas


Cefas Carvalho

Merda, borrei o olho!, murmurou, sentindo o lápis escorregar para a direita. Rápida e habilmente, consertou o traço preto embaixo da pálpebra. Terminado o desenho dos olhos, parte da maquiagem que mais lhe dava prazer, cuidou de passar o batom. Adorava o cheiro exalado pelos batons, principalmente os vermelhos, mas, não gostava do efeito que produziam em seus lábios. De batom, não se sentia uma mulher, ou mais mulher, ao contrário das amigas, mas, sim, como um palhaço triste que representa uma tragédia com ares de comédia.
Minha tragédia não é ter o corpo de um homem, mas, a alma de uma mulher, pensou. Talvez por esta razão, sentia-se sempre estranha com aquele vestido, os seios postiços – incômodos, pavorosos – a peruca ruiva, os olhos pintados, o batom ultrajante... Por mais de uma ocasião implorou para fazer seu show sem aquela fantasia. Mas, era inútil.
Jorge pensava que a insistência em se apresentar era pelo cachê. Que ele pensasse assim, afinal, o dinheiro quase sempre ia parar nas mãos dele. Mas, ela concordava em se fantasiar de mulher – mesmo sendo, em alma, uma mulher verdadeira – para poder cantar. Mais exatamente para poder interpretar as canções de Piaf.
Ele se apaixonou por mim quando me viu em uma boate cantando Je ne regrette rien, pensou, retocando o batom. Isso acontecera seis meses antes. A partir dali, mergulhou – com Jorge – em um universo de amor, sexo, bebida, drogas, violência física e humilhações, em doses cavalares. Já expulsara Jorge do apartamento milhares de vezes e, outras mil vezes telefonaram, em prantos, para que ele voltasse. Com Jorge, vivera céu e inferno, som e fúria, como jamais havia experimentado com homem algum.
Pensando nisso, estremeceu levemente e sorriu para si mesmo no espelho. Seu corpo soltava choques elétricos quando pensava em Jorge. E a lembrança dele se unia ao amor por Piaf... Cantarolou sua música preferida...
C'est sûr que j'en mourrais
Que j'en mourrais d'amour,
Mon amour, mon amour...

Assim como Piaf, se eu tivesse que morrer, seria de amor. Ela está enterrada em um cemitério chamado Pére Lachaise, em Paris, Recordou. Havia lido isso em alguma revista, e desde então, economizava dinheiro para ir à capital francesa e visitar o túmulo da cantora.
Foi quando lembrou - como uma pedra que lhe golpeasse a cabeça – que Jorge não estaria no apartamento quando retornasse. Havia ido embora, e, daquela vez, definitivamente, como mostrava a carta que mandara de muito longe. Voltara para a mulher e os três filhos, no interior onde nascera. Não iria mais a Paris, não conseguiria viajar sem ele.
Mas, não, não se arrependia de nada. Segurou a lágrima que iria, mais uma vez borrar a maquiagem, sorriu para sua face no espelho, levantou-se e foi para o lar onde não existia nenhum Jorge, onde não existia ninguém além dela mesma e de Piaf: o palco.
Si jamais tu partais,
Partais et me quittais
Me quittais pour toujours...

15 junho 2009

Loteria


Cefas Carvalho

O homem alto, corpulento, pesado como o tempo e levemente encurvado, pediu licença à senhora miúda que tentava - em vão – fechar uma sombrinha velha e postou-se na bancada lateral da casa lotérica. Tirou no bolso o papel da aposta e tentou se posicionar de forma que conseguisse enxergar o quadro de resultados. Estava ficando velho e seus olhos mais cansados.
Pediu licença ao homem – também corpulento, mas, baixo e com uns olhinhos de ave de rapina – que estava riscando um bilhete no balcão. O sujeito afastou, dando espaço, olhou para o outro e disparou:
- Vai conferir a posta, amigo? Fez uma fezinha, não? Eu também fiz a minha, está aqui, ó, na minha mão. Toda semana faço três apostas, sei que um dia vou ganhar. Quem espera sempre alcança. Não é assim que diz a Bíblia? E Deus sempre premia os persistentes. Por isso eu persisto, amigão. Já pensou se a gente ganha. A primeira coisa que faço é mandar meu chefe para o inferno... Isso para não dizer pior... Aí pego o dinheirão todo e compro uma ruma de mansões, umas coberturas... Podíamos fazer umas festas de arromba, já pensou, amigão... Tudo do bom e do melhor, churrasco, carne de primeira, caviar... Não sei nem qual é o gosto, mas faço questão de caviar... E enchemos a festa de mulheres, rapaz, porque, você sabe, mulher gosta de homem estribado, com dinheiro, aí começa a chover mulher... Já pensou uma piscina cheia de mulheres e um garçom servindo uísque para a gente... Rapaz, e podemos comprar um jatinho particular, já imaginou, viajar para todo canto na hora que a gente quer?... bla blá blá...
Enquanto o homem de olhos de ave de rapina falava sem parar, o outro conferiu rapidamente sua aposta e viu que não tinha vencido. Na verdade, não acertara nenhum dos cinco números sorteados. Murmurou um até logo para o outro, que não parava de falar e voltou para casa com a cabeça tonta... Mulheres, carros, piscinas, coberturas...
Entrou em casa e, de olhos baixos, aproximou-se da esposa.
- Então, homem. Conseguiu o dinheiro e comprou o leite?
Ele não respondeu. A mulher percebeu o peso que caía sobre ele e foi para a cozinha preparar a papa de farinha para os gêmeos, que logo iriam chorar de fome. Ele foi até o quarto, olhou os bebês no berço improvisado, lamentou não ter conseguido nem o emprego desejado e nem o empréstimo com o amigo e tirou o bolso o bilhete de loteria, amassando-o e jogando no chão, ao lado do berço. Sentindo o cheiro da papa quente de farinha, tentou não chorar.

03 junho 2009

Uma nação de cuspidores


Cefas Carvalho

Otorrinos e gastroenterogistas do Brasil, atenção! O brasileiro em geral tem seriíssimos problemas de salivação e glândulas! Pelo menos é minha humilde opinião, afinal, isso poderia explicar a paixão que o brasileiro tem pela cuspideira. É incrível como o brasileiro cospe! Em qualquer lugar que se vá, sempre vemos alguém pigarrear e, tchan!, cuspir no chão. O curioso é que os cuspidores não estão nem aí com a presença de testemunhas. Já presenciei sujeito abraçado à namorada virar a cabeça e, zás, cusparada no chão. Ela deve ter achado tão romântico... Mas, o pior é o cuspe a distância. O sujeito sequer observa se alguém está passando e puf! Lá vai o jato de cuspe meio metro à frente! Os passantes que se desviem do “atleta” (afinal, cuspe a distância é um esporte nacional). E que não se pense que cuspideira é questão de classe social. Vá em eventos sociais de “gente chique”, com “partidóns” e endinheirados... no estacionamento ou antes de entrar é a mesma cusparada. Deve ser, realmente, algo no metabolismo do brasileiro. Este escrevinhador já andou nas ruas de cidades como Londres, Paris e Lisboa e não viu ninguém cuspindo na rua. O europeu não junta saliva na boca? Não tem vontade/necessidade de cuspir? Não sei. O fato é que lá, no chamado Primeiro Mundo, não se cospe em público. Há quem diga que a questão é simples, sinal de falta de educação. Neste caso, somos uma nação de mal-educados incorrigíveis. Tanto que, em outro texto, já externei minha revolta em freqüentar banheiros químicos em eventos festivos realizados em Natal. Poucas horas após instalados, eles – pelo menos os masculinos – se tornam um amálgama de fezes, urina e papéis colocados estrategicamente para entupir o escoamento. Amigos garantem que trata-se de uma questão de Educação, um retrato do (baixo) nível do ensino nacional (seja público ou privado). Outros garantem que este tipo de educação começa em casa. Este escrevinhador não sabe e confessa já estar cansado de pensar sobre o tema. E, preciso pedir licença para cuspir. Na pia do banheiro do trabalho. Afinal, mesmo com um cesto de lixo a centímetros no meu pé direito, não preciso obrigar os colegas de redação a testemunharem minhas secreções. Com licença, e até a próxima.

PS: A foto que ilustra este post mostra o escritor marginal americano Charles Bukowski, mestre em produzir contos sobre excreções. Se não leu nada dele, sugiro começar pelos sensacionais "Crônica do amor louco" e "Mulheres".