21 dezembro 2010

Morte em vida


Cefas Carvalho

Ela chamava-se Eurídice. Isto é, ela se chama Eurídice, afinal, ainda não morreu. Pelo menos não tecnicamente. Mas, e daí? Tantas pessoas parecem mortas em vida, enclausuradas em catacumbas de dor, remorso e solidão. Mas, isso não vem ao caso, pelo menos não as mortes (em vida) alheias. Quero falar de mim e de Eurídice e é isso que farei.

Conheci-a em um sarau literário, entre poesias insossas e drinques de maracujá igualmente enjoativos. Ela se aproximou de mim para comentar uma resenha que eu havia escrito sobre um livro de Faulkner. Mas, na verdade, jamais havia lido Faulkner, como vim a descobrir horas depois. Mas, não importava. Eu já estava caído de amores por ela. Era professora de francês e estudava grego, talvez para honrar o próprio nome.
Casamo-nos três meses depois daquele sarau.
Passamos a lua de mel em Petrópolis, mágica e fria cidade do estado do Rio de Janeiro. Na verdade, e lua de mel durou quase meio ano, tempo em que os demônios não tiveram acesso ao nosso mundo.
Contudo, toda Eurídíce deve ter seu quinhão de inferno. Descobri isso quando ela explodiu em ira ao ser demitida da escola de idiomas onde trabalhava. Entre xícaras quebradas, jurou de morte a diretora que a demitira e enfurnou-se em casa. Claro que imaginei que a fúria teria vida breve. Contudo, uniu-se a outro problema: a morte do gato que ela criava, envenenado por algum vizinho sem caráter.
Os dias passavam e o idílio inicial cedia lugar a uma melancolia agressiva por parte de Eurídice. Sugeri uma viagem – mesmo com nossa situação financeira não sendo das melhores – mas, ela recusou. Também não quis tentar outros empregos. Limitava-se a estudar grego e tentar traduzir trechos da Odisséia. Aos poucos, começou a negligenciar a aparência, as roupas, a casa, enfim.
Uma noite, tentou correr para a rua, para recitar versos de Homero para os mendigos, segundo ela. Foi quando percebi que havia enlouquecido. Procurei sua família para me aconselhar. Admitiram que ela já havia sofrido acessos semelhantes na adolescência, mas, imaginaram que já estivesse curada.
Decidimos – aliás, a família decidiu – interná-la em uma clínica séria e moderna, em um município vizinho. Em uma manhã ironicamente bela e ensolarada, foram buscá-la para o tratamento. Ela esperneou, agrediu fisicamente os médicos, teve de ser sedada.
Passei uma semana deprimido, em casa. Depois, tentei voltar a algo que se podia chamar de vida normal. Uma vez por semana visitava Eurídice na clínica. Parecia cada vez pior. Até que uma vez não me reconheceu mais. Um mês depois, um médico disse que ela havia tentado se matar com um pente. Estava morta em vida, na verdade, e talvez um resquício de sanidade tentava terminar de vez com aquela vida sem vida.
Repito, tentei voltar à vida normal. Comecei a ir ao cinema, jantar fora, revi os amigos. Mas, nada era mais a mesma coisa. A imagem de Eurídice me voltava à mente com freqüência. Perdi a vontade de sair. Afastei-me dos amigos. Aos poucos, enfurnei-me em casa – como ela havia feito – e percebi que também não tinha mais vontade de fazer nada. Talvez, nem mesmo de viver.
Em visita a Eurídice, fui informado que ela havia tentado se matar novamente e estava sedada. Seu estado era preeocupante e me explicaram com um emaranhado de palavras a doença dela etc e tal.; Mas, eu já não ouvia nada, já não queria saber.

Pode-se dizer que ela está viva? Que o desgraçado leitor deste relato decida-o por si só. Quanto a mim, posso dizer que morri há muito. Ora, mais uma vez ele recorre ao eufemismo da morte em plena vida, haverão de pensar, talvez cvom certo tédio. Não culpo quem pense assim. Eu mesmo cansei desta imagem, desgastada por si só e, em última instância, ilusória, já que o morto em vida come, bebe, por vezes ri, defeca e dorme - ocasionalmente sonha - como qualquer um. Daí minha decisão final, pensada e articulada. escrevo este derradeiro relato em cima de um tamborete de madeira. Com uma corda apertada em laço e nó no pescoço e tranapassada em uma viga de madeira no teto, na granja deserta de um tio, onde eu e Eurídice havíamos passado momentos maravilhosos. Se posso alongar este relato para brincar com a morte e, talvez, esperar que algo aconteça e me salve? Claro. Mas, não o farei. Basta finalizá-lo agora, largar o caderno, chutar o tamborete onde estou e esperar que o impacto e a corda me transportem da morte em vida – onde estou – para a morte real. E ponto final.