26 janeiro 2010

Sete vidas


Cefas Carvalho

Ela resolvera criar um gato. Ou melhor, nada resolvera, tudo não passou de um acaso. Andava pela calçada entretida com sua própria solidão quando se deparou com um filhote de gato no meio-fio. Jamais gostara de gatos. Quando muito, sua afeição por animais limitara-se a um poodle que tivera quando adolescente e um trio de peixes beta que morreram por excesso de alimentação.
Portanto, surpreendeu-se interrompendo a caminhada para olhar o felino: era cinza, completamente cinza, o que conferia a seus olhos azulados uma tristeza infinita. Emitiu um miado indicando fome, certamente. Quase reiniciara a caminhada quando olhou novamente para o gato; teria sido abandonado, com o ela mesma o fora? Talvez por essa associação de idéias, somada à compaixão, resolveu, com alguma repulsa, pegar o animal e levá-lo para casa.
Uma vez em seu apartamento, arrependeu-se do que fizera. O felino miava com desespero e tremia de fome. Pensou em ligar para uma miga que criava um par de gatos persas, mas, desistiu. Cortou em pedaços pequenos um peito de frango esquecido na geladeira e colocou em um pires no chão da área de serviço. O animal devorou a comida rapidamente e continuou miando. Ela lembrou-se que ele teria de beber água e colocou uma vasilha ao lado do pires. Tendo bebido a água, o gato encolheu-se em um canto perto da máquina de lavar e dormiu como guerreiro que sobrevive a uma encarniçada batalha.
Igualmente cansada e também sobrevivente, ela olhou o gato insone e teve vontade de chorar. Conseguiu controlar-se, tomou um banho e deitou no sofá tentando entender porque Roberto a deixara. Era certo que estavam brigando quase diariamente e também era certo que ela mesma pensava em separação. O que ela não conseguia aceitar era que ele tivesse feito as malas e partido, quase na calada da noite, sem uma conversa a mais, sem uma despedida, sem deixar que ela desabafasse tudo que lhe envenenava e sufocava.
Acordou no dia seguinte, molhada de suor e torta da noite no sofá, com o gato lambendo seu tornozelo. Seu primeiro impulso foi de chutar o animal, mas, controlou-se e terminou comovida com os olhos tristes que a fitavam, a pedir comida, água e, talvez, um pouco de carinho. Não sabia como alimentá-lo. Durante dois dias dividiu com o bichano os restos de hambúrgueres e enlatados. Nas compras semanais incluiu ração para gatos. Percebeu que estava se afeiçoando ao pequeno animal, que cada vez mais mostrava menos melancolia nos olhos. Superou a repulsa inicial e passou a segurá-lo, descobrindo que se tratava de um macho. Já que não vou conseguir me livrar dele e vou mantê-lo aqui, é melhor que lhe dê um nome., pensou. Resolveu chamá-lo de Victor, em homenagem ao compositor chileno assassinado pela ditadura. Com o passar dos dias passou a chamá-lo de Vitinho, mas, por aquela razão enigmática pela qual surgem os apelidos, começou a tratá-lo como Zequinha. Gato tranqüilo e silencioso – quando bem alimentado – pouco ou nada alterou a vida da nova dona, salvo, talvez, a caixa de areia que tivera de providenciar, ajudada pelo zelador do prédio.
Zequinha passou a ser a única companhia na solidão de sua dona, que, por mais que passarem os dias, semanas, esperava que Roberto entrasse pela porta adentro. Desejava mostrar ao ex-marido o gato, por quem aprendera a nutrir carinho e respeito. Até que um dia Roberto ligou, mas, não para comunicar a volta para casa. Queria o divórcio, pois pensava em se casar novamente. Ela mergulhou em pranto e vodca, naquela noite em que sua alma parecia querer sair do corpo. No dia seguinte, ressacada, tentou se recompor para tomar decisões. Ainda enjoada, saiu do banheiro e viu Zequinha na mureta da varanda. Não acostumada ao equilíbrio inerente aos gatos, desesperou-se e correu na direção dele, que, por precaução ou susto, pulou para baixo, caindo do terceiro andar. Não teve coragem de olhar para baixo, imaginando o bicho de estimação em uma poça de sangue. Sentou-se ao sofá chorando, quando ouviu a campainha. Era o zelador com o gato, vivo, inteiro, na mão. Gato tem sete vidas, dona, sorriu.
Passou a amar Zequinha. Comprou-lhe uma cesta para dormir, rações mais saborosas, brinquedos. Dormia sentada no sofá acariciando a cabeça ou o pescoço do gato, que dormia junto com ela. Sentia-se mais sozinha do que nunca, sem família, sem amigos, sem Roberto. Tinha apenas o bichano, com nome de poeta e apelido carinhoso.
Até que um dia aconteceu tudo ao mesmo tempo. Roberto ligou comunicando que se casaria em breve e os papeis do divórcio estariam prestes e sair. Foi quando ela saboreava sorvete de nata na mesa da sala e viu Zequinha saltar pela janela. Nada demais, ele retornaria em breve, guiado pelo instinto e pela afeição, ou o zelador o traria de volta. Nada disso aconteceu. Passaram os dias e o gato não retornava. Primeiro ela se desesperou, depois procurou-o na rua, na vizinhança, e, por fim, se confirmou. Não nasci para ter nada nem ninguém, pensou. Alternava sorvete, comida enlatada e uísque barato em dias mortos, até que tomou a decisão, de forma serena e natural. Comprou, com a ajuda de uma amiga farmacêutica e uma desculpa esfarrapada, duas cartelas de Drazil. À noite, juntou os comprimidos todos – dezesseis – em um pires, armou-se de um copo d´água e outro de uísque, à espera da coragem necessária para a decisão final. Bebeu duas doses de uísque e sentiu o sangue se aquecer. Em seguida, lembrou de Zequinha, do aia em que, seduzida pelo olhar triste do gato, acolheu-o em sua casa. Ele poderia ter morrido na rua, atropelado, envenenado, mas, conseguiu sobreviver. Ele tinha sete vidas, divertiu-se. Porém, eu não tenho sete vidas, mas, apenas uma!, pensou Ficou um longo tempo imóvel, ouvindo o som desconexo dos apresentadores do telejornal. Em seguida levantou-se, foi até o banheiro, onde jogou os remédios no vaso sanitário e deu descarga. Suspirou e entrou no banho tentando lembrar se o restaurante oriental da esquina ainda estaria aberto àquela hora.

06 janeiro 2010

Perdendo a cabeça


Cefas Carvalho

Amava revoltas, revoluções, turbas e tumultos. Barulho e agitação o faziam perder a cabeça. Violento, sangue quente; perdia a cabeça com freqüência, agrediu os irmãos, e a família o mandou para a Capital, onde fez amizade com os revolucionários. Gritava nas tabernas e nas ruas parisienses, tanto o vinho como a política o faziam perder a cabeça. Decidiu fazer a revolução e depor a família real. Conseguiu. Contudo, escolheu o lado errado. Traiu amigos. Foi condenado. Olhando a multidão aos gritos à sua frente, ouviu o barulho do metal e a guilhotina se aproximando do seu pescoço. Perdeu a cabeça pela última vez.