19 dezembro 2012

Poema diluviano



Cefas Carvalho

Desejo meu
corpo violentado
pela tempestade

Mutilado por temporais
chuvas torrenciais...

Quero minh´alma
Afogada
Pelo dilúvio de Noé

(embriagada de

vinho tinto)


Misturada com azeite
Manjericão, orégano...

Quero que a tormenta
Afogue-me, me jogue
Aos leões pela manhã

Ser devorado com mel
Com ameixas, hortelã...



Imagem: Cezanne

26 novembro 2012

Terra à vista




 Cefas Carvalho

Após longo tempo
Em salgado mar aberto
Eis que a nau sem rumo
Do meu coração
Avistou terra ao longe...

- Preparar para abordagem!...
...

24 outubro 2012

Usuário do Facebook acredita em tudo que lê


 Cefas Carvalho

Lembro que na minha infância, em meio às conversas de crianças sobre como tinha sido o fim de semana ou o que os pais tinham nos comprado, volta e meia aparecia alguém para dizer que tinha passado o domingo em Nova York ou que o pai tinha comprado uma limusine. Eu achava estranho uma criança da minha idade mentir de forma tão evidente, mas, achava ainda mais estranho que outras crianças acreditassem naquilo. Na adolescência, histórias semelhantes. Rapazes cheios de testosterona relatavam histórias de conquistas amorosas totalmente cheias de contradições e “furos”, mas, muitos amigos acreditavam. Pior: Amigos e amigos meus em 1989 diziam que não votariam em Lula para presidente da República porque acreditavam na campanha desleal de Collor que dizia que o petista, se eleito, iria tomar os apartamentos das famílias de classe média e dividir com os sem terra.
Evoquei essa sessão nostalgia para ilustrar que ao longo da minha vida inteira percebo a paixão das pessoas por acreditar. Simplesmente acredtar, crer, em algo ou alguém. Acreditar em um deus, uma religião, um padre, um pastor, um cartomante, um pai de santo, acreditar que a história que o sujeito conta na fila do banco é verdadeira, acreditar que o cara que nos pede uma esmola vai usá-la para comprar leita para os filhos. Faz parte do ser humano crer. Seja lá no que for.
Até o surgimento das redes sociais, em especial o Facebook, esta característica humana, demasiadamente humana, me parecia até discreta, cada vez mais pontual. Contudo, hoje, tenho a percepção real da necessidade humana de acreditar.
Usuários do Facebook acreditam em tudo, absolutamente tudo. Para a média deles, tudo o que se diz, o que se denuncia, o que se divulga, é verdadeiro. O axioma de que tudo é verdadeiro até que se prove o contrário, é elevado a última potência.
Desta forma, vemos pessoas letradas, bem informadas, que sempre tiveram acesso à educação formal e à informação, terem comportamento igual a uma velhinha no interior que acredita que se comer manga com leite vai passar mal.
Passamos anos no colégio aprendendo sobre como funcionam os poderes Executivo e Legislativo. Basta alguém postar uma mensagem dizendo que se compartilharmos ela um milhão de vezes, tal coisa vai virar lei.
Sabemos que as emissoras de TV são concessões públicas e também empresas privadas com fins lucrativos, e mesmo assim compartilhamos mensagens contra o Big Brother Brasil, pois com um milhão de compartilhamentos, o problema será suspenso.
Divulgamos fotos de crianças perdidas sem informações consistentes sobre sua família, cidade e bairro onde reside, telefone fixo da família, nomes dos pais.
Compartilhamos imagens de crianças doentes sem sabermos nome, idade, onde mora e qual a doença, pois a cada compartilhamento o Facebook dará 5 centavos para a família dela.
Repassamos frases engreçadas e espirituosas de literatos, atores e gente famosa sem termos certeza se realmente as frases são dessas pessoas, sem conhecemos as obras dessas pessoas.
Enfim, acredita-se em tudo. O usuário médio do Facebook decidiu que tudo que épostado na internet é verdade. Ele não lêu Clarice Lispector, na verdade tem uma vaga idéia de quem ela é, mas, viu uma frase bonita sobre flores e passarinhos atribuída a ela e decide compartilhar com os amigos. Recebe uma mensagem de que a partir de tal data o Facebook será pago e imediatamente repassa para os amigos, preocupado. “Notícias” humorísticas de sites como Kibe Loco e o Sensacionalista são repassadas e comentadas como se fossem notícias reais.
Temos a internet, temos Ipod, Smartphone, TV a cabo, mas, nosso imaginário ainda é como o dos povos primitivos que acreditavam que se fizessem a dança da chuva, os deuses derramariam tempestade sobre a terra. Mas, vamos manter a esperança. Afinal, como disse Shakespeare, “não devemos perder a fé na humanidade e na sua evolução”. Ou terá sido Luís Fernando Veríssimo quem escreveu isso? Ou Clarice Lispector.

20 setembro 2012

Perfis de mulher: Aurélia, a menina do cemitério

Cefas Carvalho

Essa história aconteceu há muito tempo, mas, somente agora, ganhei forças para contá-la.
Nascido em Pendências, mas órfão de pai e mãe desde a infância, fui criado em Natal, mais exatamente em uma tranqüila rua do Alecrim por minha tia Lucia e por seu marido, que eu chamava de Tio Baltasar. Ele, coitado, morreu de cirrose no dia do meu aniversário de quinze anos. Minha tia passou a ser minha única referência afetiva e vice-versa. Jamais tive o que me queixar dela ou da vida. Fui bem criado, estudei em ótimas escolas, entrei na universidade e por fim formei-me em Educação Física.
Incentivado por tia Lucia, fui fazer um curso de um mês em Recife sobre técnicas desportivas. Foi na capital pernambucana, porém, que recebi a noticia que tia Lucia havia morrido, vítima de infarto. Confesso que viajei chorando durante as quatro horas de ônibus que separam Recife de Natal.
No enterro, no Cemitério do Alecrim, poucos parentes, uma e outra amiga e eu, me sentindo pela primeira vez sozinho no mundo. Após todos irem embora, ainda fiquei um bom tempo a olhar para os túmulos e mausoléus, até que o zelador gentilmente me mandou embora, advertindo que era hora de fechar.
No dia seguinte voltei ao cemitério. Depositei mais flores no túmulo de minha tia. Sem que ninguém me visse – era proibido fumar ali, me dissera o zelador – acendi um cigarro a vagar pelas ruas no cemitério. Tantos anos morando no Alecrim e eu jamais entrara ali até então, afinal, meu tio fora enterrado no interior e nenhum conhecido ou amigo jamais fora sepultado naquele solo.
Na segunda semana sem tia Lucia, trabalhando em uma escola apenas de manhã e com a tarde e noite livres, passei a dedicar mais tempo a pensar na morte em si do que na perda específica da minha tia. Não sentia vontade de sair ou beber com os amigos, e tampouco estava atrás de companhia feminina, posto que havia terminado um longo namoro havia alguns meses. Também comecei a ir três vezes por semana ao cemitério, ambiente que me parecia cada vez mais familiar. Fiz amizade com o zelador, os funcionários. Conheci a administradora do local, dona Lenilde. O cemitério tem o poder de convidar à reflexão e mais que morbidez a visão de tantas pessoas que se foram me trazia uma estranha espécie de paz, em lugar de repulsa ou morbidez.
Em uma dessas tardes, passeava pelos túmulos, contemplando alguns imponentes, como o de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, quando de repente avistei uma jovem na minha frente, a me olhar como se eu estivesse fazendo algo errado.
- Estou observando você há alguns dias...-sorriu
- É, eu estou vindo aqui com freqüência respondi, atordoado com a abordagem.
- Eu também gosto muito daqui. É calmo, tranqüilo, tão diferente do mundo...
- Você mora aqui no Alecrim?
- Exatamente.
- Qual seu nome?
- Aurélia – sorriu. Um sorriso doce, sereno. Reparei então na menina, de longos cabelos castanhos se derramando pelo vestido azul claro. Os olhos, imensos, vivos, fixos em mim. Deveria ter entre dezoito e vinte anos. Bela como poucas eu tinha visto.
- Bem, vou te deixar na sua caminhada. Até logo – sorriu, se afastando. Tentei falar algo para impedi-la de ir, mas as palavras não saíram. Pensei em rodar pelas ruas do cemitério, que afinal não era tão grande assim, mas desisti. Voltei para casa com uma sensação estranha, de quem deixou para trás algo importante.
Passei boa parte da noite pensando na menina. Aurélia, lembrei do nome.
No dia seguinte, retornei ao cemitério. Talvez nem tanto para prantear sobre o túmulo de tia Lucia, mas para procurar Aurélia. Não foi difícil encontra-la. Passeava entre os túmulos, como se o local fosse um parque, não um cemitério.
- Boa tarde.
- Boa tarde, Aurélia.
- Lembra meu nome...
- Claro. Como poderia esquecer? – sorri. Ela perguntou o meu – Carlos – o que não fizera no dia anterior.
- Gosto daqui – comentou com ar triste – Acho que já me acostumei
- Qual a sua idade?
- Quantos anos você me dá
- Vamos ver...dezoito?
- Errou...- disse, após certa hesitação. Eu estava certo que ela tinha dezoito.
- Vou tentar novamente...dezenove?
- Errou de novo. Mas desista, não vou dizer minha idade...
- Está bem, você manda.
- Vamos passear pelo cemitério? – indagou. Eu já o fizera tantas vezes sozinho naqueles dias tristes...Que bom seria faze-lo com uma mulher linda pela qual eu estava fascinado.
Pelas ruas do local, contemplamos os imponentes mausoléus familiares, vimos os túmulos dos judeus, com inscrições em hebraico...Aurélia me levou também para os túmulos dos três soldados ingleses que morreram no oceano, em 1944, durante a 2º Guerra Mundial e que foram sepultados em solo natalense.
- Todos os anos as famílias e oficiais ingleses vem aqui no cemitério rezar pelas almas deles e limpar os túmulos. Pode observar que são dos mais conservados deste cemitério... – explicou. Fiquei impressionado com seu conhecimento do local. Algo mórbido, sem dúvida, mas todo mundo tinha algo de louco. Das mulheres que eu conhecera até então quantas não tinham hábitos mais estranhos que os de Aurélia?
Por fim, andando por uma rua solitária, entre túmulos mal conservados, paramos subitamente, como se tivéssemos combinado. Olhei-a com atenção, enquanto sentia meu coração disparar.
- O que foi? - perguntou
- Você é muito linda... – respondi. Não precisamos de mais nada para nos enlaçarmos em um beijo. Assim ficamos por um bom tempo, sem palavras. Apenas os lábios e os braços em movimento.
- Está na hora de eu ir... – comentou, vendo que já estava anoitecendo
- Eu te deixo em casa
- Negativo. Você vai, e eu fico. Depois vou para casa.
- Por que isso?
- Eu quero assim.
- Mas eu quero te ver.
- Você vai me ver. Mas, aqui.
- Por que? Não consigo entender.
- Não precisa entender, basta concordar. Amanhã á tarde aqui mesmo, está bem, meu amor?
Como resistir? Concordei com aquela maluquice. Fui para casa meio apaixonado meio aborrecido. Por um lado, estava enfeitiçado por aquela mulher, por aqueles beijos...Por outro pensava se ela não queria me fazer de palhaço. Teria ela se comportado da mesma forma com outros homens? Seria uma tara dela querer se encontrar apenas no cemitério?
De qualquer maneira, no dia seguinte lá estava eu no cemitério. Estava acontecendo um sepultamento, portanto, de início não consegui encontra-la com o fluxo de pessoas. Por fim, na rua colada ao muro da rua Rafael Fernandes, bem próxima ao mausoléu da Liga Operária Norte-riograndense, encontrei a minha Aurélia.
Durante duas horas praticamente só nos beijamos e trocamos palavras de carinho. Mas, eu estava decidido a dar um rumo novo à nossa história.
- Vamos ao cinema,
- Não quero.
- Para onde você quer ir? Basta dizer que iremos.
- Quero ficar aqui mesmo
- Mas Aurélia...
Ela começou a lacrimar... – Quero que goste de mim do jeito que sou... – murmurou.
Como não ceder? Ficamos lá, entre os túmulos e fugindo do olhar desconfiado e vigilante do zelador. Ao ir embora –sozinho – pensei em ficar de tocaia na porta do cemitério e segui-la quando saísse, mas fiquem temerosos de ser flagrado e envergonhado de minha baixeza, fui para casa. Passamos a nos encontrar no cemitério. Em duas semanas, foram pelo menos seis encontros. Era estranho, admito, e parece absurdo, mas eu estava feliz, e quando se está feliz, tudo parece normal. Imaginei que ela tivesse vergonha de sua família, com um pai alcoólatra ou coisa parecida. Poderia ser também que fosse muito humilde e não quisesse que eu visse onde morava. Seja como for, decidi que enquanto eu estivesse me sentindo bem com a situação, não forçaria a barra. Um dia ela vai querer ir a um cinema, à praia, e então poderemos viver como um casal normal, pensei.
Contudo, em uma tarde algo nublada, fui ao cemitério e Aurélia não apareceu no local combinado, em frente ao túmulo de João Câmara. Esperei por uma, duas, três horas, até o cemitério fechar, e nada. Andei a esmo pelas ruas em volta do cemitério, entrei em bares, procurei em paradas de ônibus e nada. Voltei para casa com uma tristeza sólida sobre a minha cabeça.
No dia seguinte, lá estava eu de volta ao cemitério. Andei pelas ruas e nada. Até que, próximo à capela, encostei-me em um tumulo deteriorado e coloquei as mãos nos olhos. Fui despertado deste breve transe por um funcionário do cemitério, um rapaz alto que eu sempre via mas jamais havia trocado duas palavras. – Tudo bem com o senhor? – perguntou.
- Mais ou menos – respondi.
- Eu posso ajudar em alguma coisa?
- Na verdade, não. Estou esperando uma menina...
- Se é para visitar algum túmulo, eu até posso ajudar a encontra-la. Se for para namorar, como tantos aqui tentam fazer, o zelador não vai gostar nada disso.
- Bem, eu fico até sem jeito, mas é quase isso... – confessei. Ansioso para contar minha história insólita para alguém, resolvi fazer daquele trabalhador meu cúmplice. Relatei minha história com detalhes, e no fim, olhei-o como se pedindo uma solução.
- Eu moro aqui na Ary Parreiras desde moleque e conheço quase todo mundo por aqui. Qual é o nome da menina? Se ela morar por essas bandas eu devo conhecer.
- O nome dela é Aurélia. Aurélia Galvão Barreto, se não me engano.
- Aurélia Galvão Barreto? – assustou-se - Você está maluco, homem?
- Por quê?
- Olhe para o seu lado, homem e deixe fazer brincadeiras para me apavorar - Você está encostado justamente no túmulo de Aurélia Galvão Barreto. Ela morreu em 1932, aos dezoito anos, em um incêndio aqui mesmo no Alecrim...

28 agosto 2012

Perfis de Mulher: Dolores

Cefas Carvalho

Chamava-se Dolores. Como Dolores Duran, uma das heroínas de minha vida. Mas ela não conhecia Dolores Duran, não sabia nem quem era. Talvez sua mãe também não conhecesse a cantora e tivesse escolhido o nome por gosto, capricho ou influência, sabe-se lá. Mas, nada disso importa. Conheci Dolores em uma noite sem lua e sem estrelas, quase amaldiçoada, em um bar tipo inferninho nas Rocas. Surgiu na minha frente como quem vinha do nada – ou de algum dos quartos fétidos do bar onde as meninas operavam seus programas rápidos – e sorriu como se já me conhecesse havia muito. Também sorri e com um movimento sutil de cabeça convidei-a para sentar à mesa. Ela aceitou e bebeu da minha cerveja. Conversamos sobre a vida em geral e sobre nada em especial e pude perceber o quanto era estranhamente bela e triste. De uma beleza sofrida, claro, pele queimada, não de manhãs de praia, mas de quem veio do sol do interior. Cabelos maltratados, olheiras emoldurando um olhar castanho melancólico. Talvez meus amigos a achassem feia. Mas, aos meus olhos – também sofridos, admito – Dolores me pareceu bela como poucas.
Bastou meia hora para que eu me resolvesse a convidá-la para sair. Paguei sua saída do bar (exigência inegociável da dona do estabelecimento para quem quisesse sair com as meninas da casa) e fomos no meu carro para um motel em Mãe Luíza. Pedi cerveja, um jantar – ela estava morrendo de fome – e depois mergulhamos no mar sem fundo dos amores carnais envolvidos em dor e carência. No fim das contas e dos gozos, percebi que – como muitas vezes acontecia comigo – eu era um náufrago a me agarrar na bóia de amores circunstanciais e comprados. A diferença é que Dolores não parecia apenas estar trabalhando. Era como se ela também fosse uma náufraga.
No dia seguinte paguei o motel e deixei-a no inferninho onde morava. Trocamos números de celular e prometi telefonar e também voltar para outra noite juntos. Horas depois, já no trabalho, dei-me conta que Dolores em espanhol, significava “dores”. Os nomes femininos em língua espanhola muitas vezes evocam sentimentos: Dulce (Doce), Soledade (Saudade), Angustias, Martírio... e lembrei-me de um livro de Jack Kerouac – Tristessa – sobre uma jovem mexicana, igualmente bela e triste. Uma mulher chamada Tristeza..., pensei, com amargura, lembrando que a mulher sem destino e sem futuro que povoava meus pensamentos, ela mesma carregava no nome a antítese na alegria e da felicidade.
Voltei à minha vida normal, seja lá o que isso significasse, e confesso, esqueci-me de Dolores por alguns dias. Passada uma semana, porém, a lembrança dela me veio e me doeu na pele como uma agulha. Corri para as Rocas. Tudo continuava igual, o inferninho decadente, as mesas sujas, os sorrisos falsos das meninas... também Dolores estava lá e continuava igual. O mesmo olhar sofrido, a mesma atenção para comigo... era como se o tempo não se movesse naquele bar. Pedi uma cerveja, depois outra, depois uísque com coca para ambos e por fim acabamos em outro motel, novamente afogando nossas mágoas no corpo um do outro. Desta vez, contudo, consegui saber mais coisas sobre ela... já tinha sido casada duas vezes, tinha dois filhos, um de cada pai, era de Sousa, na Paraíba, mas com família em Pau dos Ferros... gostava de viajar e samba... Tinha estudado, fizera o segundo grau completo, gostava de escrever, chegara a sonhar, em certa altura imprecisa da vida, em ser professora numa cidadezinha do interior... Propus que viajássemos juntos. Para onde?, perguntou. Para lugar nenhum, respondi, na estrada decidimos... Pipa, João Pessoa, Recife, Tibau, Areia Branca... o vento seria nosso mapa. Com um sorriso triste ela concordou. Acordamos que faríamos a viagem no final de semana seguinte, quando eu prepararia tudo e ela inventaria uma desculpa para a dona do bar para não termos que pagar a saída. Vivi uma semana normal, mas algo excitante com a perspectiva da insólita viagem. Nada comuniquei aos amigos nem à família (como fazê-lo?). Na manhã de sábado, por fim, estacionei o carro em frente ao prédio abandonado nas Rocas onde havíamos combinado. Esperei durante quarenta minutos. Eu já me preparava para telefonar para ela quando aproximou-se do veículo uma mulher que eu conhecia do inferninho. Vinha me trazer um bilhete de Dolores, que fora embora com todos os seus pertences no dia anterior e nada dissera sobre seu destino: “Meu querido, descobri que sou dona das minhas dores e não quero dividi-las com você nem com ninguém. Não nasci para ser feliz. Melhor eu ir embora enquanto é tempo. Beijo. Dolores”. Guardei o bilhete no porta-luvas e peguei a estrada. Para onde? Quem sabia? Que importava?

22 agosto 2012

Perfis de mulher: Lana


Contendo nada menos que três obras primas, a trilogia chamada “Perfis de mulher” foi escrita pelo cearense José de Alecar e consiste em verdadeiras pérolas da literatura brasileira. Composta pelos romances “Diva”, “Lucíola” e “Senhora”, a série é subestimada e confundida com obras de menor cunho (como “Inocência” e “A moreninha”). Bem, como homenagem a Alencar e à  alma feminina, este espaço começa, a partir desta edição, a sequência “Perfis de mulher”, com textos já publicados neste blog (como o conto abaixo) e outros totalmente inéditos que virão. Confira agora o conto “Lana”.

Cefas Carvalho

Chamava-se Lana, como na canção de Roy Orbison. Ela era bela e triste, como todas as canções do Roy. Conheci-a em um bar, lugar sagrado onde geralmente conhecemos as pessoas importantes que marcam a nossa vida. É tolice tentar descrevê-la. Bem sei que não tinha uma beleza convencional, tampouco era dona de imensos olhos azuis, como nos clichês românticos. Era bela e normal. Estava sozinha na mesa, iluminando o local com seus olhos melancólicos e oblíquos, como diria Machado de Assis de sua Capitu. Ganhei coragem para abordá-la e me convidei para sentar à sua mesa. Ela concordou, disse como se chamava – Lana... – e conversamos sobre tudo e sobre nada... Compartilhamos nossas tristezas, rimos das nossas parcas alegrias nesta vida, descobrimos que ambos estávamos sozinhos e à deriva, tanto naquela noite como na própria vida, e por fim convidei-a para passar a noite no meu apartamento. Compramos uma garrafa de vinho tinto barato, pegamos um táxi e nos trancamos em nosso pequeno universo. Foi uma noite inesquecível, com Lana em meus braços...daquelas noites que não deveriam terminar nunca. Terminados os jogos amorosos, cogitei pedir seu número de telefone e perguntar onde ela morava, e talvez jurar aos seus pés que queria vê-la mais mil vezes, mas considerei que, quando acordássemos, pela manhã, eu faria tudo isso e muito mais. Dormi o sono dos justos e dos exaustos de tanto amar. Acordei com uma leve ressaca por volta das onze e, quando dei por mim, percebi que Lana não estava mais no quarto. Não estava mais no apartamento, havia ido embora. Dando uma geral pela casa, percebi que tudo estava em ordem, ela não levara nada, mas também não deixara nada. Talvez, só, ainda mais tristeza dentro de mim. Recordei, mais melancólico do que nunca da canção de Roy : Oh beautiful Lana...

Imagem: Egon Schiele