25 abril 2011

Semana Santa

Cefas Carvalho


Sexta-feira da Paixão


Cristo morreu pelos meus pecados. É o que dizem. Sempre detestei esta afirmação, como detesto qualquer coisa que tenha a ver com o não-visível. Não quero que ninguém morra pelos meus pecados. Dos meus pecados cuido eu. E meu pecado maior naquela sexta-feira maldita foi ter deixado Clarissa ir embora. Ou será que eu quem a mandei embora? Talvez as duas coisas. Só recordo que a vi jogando algumas roupas na mochila velha e sair de casa batendo ruidosamente a porta. Ainda pensei em correr atrás dela, mas desisti. Fiquei em casa ouvindo CDs de blues e olhando com cara de idiota para o bacalhau dessalgado em cima da pia. Iríamos fazer um bacalhau a Gomes de Sá. Clarissa não comia carne nos dias da semana santa. Para mim isso era uma besteira, eu teria adorado preparar uma picanha mal passada naquela noite, mas a paixão por Clarissa me fazia respeitar suas opiniões, pelo menos algumas delas.
Pensei que Clarissa voltaria, mas, me enganei. Tomei alguns tranqulizantes para poder dormir, com o coração pesado de tristeza e paixão.

Sábado de Aleluia

Aleluia! Clarissa telefonou. Não falou praticamente nada, balbuciou meia dúvida de palavras. Mas, telefonou. Disse que estava tudo terminado e que na semana seguinte pegaria suas coisas no apartamento. Pensei em implorar para que voltasse, em sugerir que conversássemos, mas nada falei. Escutei o que ela falou até que pareceu que ela fosse chorar e ela então desligou o celular.
Resolvi ir uma igreja católica. Claro, desprezava o catolicismo, como a todas as demais religiões, mas senti vontade de ver os fiéis louvando a um ser superior. Contudo, quando estacionava o carro próximo a uma igreja, mudei de idéia repentinamente e decidi beber algo na praia. Olhar o mar costumava me acalmar. Bebi demais, contudo, e voltei para casa totalmente bêbado, arriscando bater o carro ou ser pego pela polícia dirigindo embriagado. Não aconteceu nem uma coisa nem outra. Talvez fosse melhor se eu tivesse morrido.

Domingo de Páscoa

Acordei de ressaca. Bebi quase um litro de água e tive de ver na geladeira os ovos de chocolate que Clarissa havia comprado para a gente. Estávamos juntos havia três anos e todo domingo de Páscoa ela me dava um ovo de chocolate. Como sabia que eu não compraria um para ela, tratava de se presentear com um ovo, quase sempre de chocolate branco. Joguei os dois ovos fora. Também atirei o bacalhau na lata de lixo. Em seguida, vomitei e, me sentindo menos enjoado, decidi recomeçar minha vida. Tomei um bom banho, recorri a um analgésico potente e me resolvi a sair da cidade. Joguei em uma mochila algumas roupas, laptop, escova de dentes e alguns livros. Iria para uma pousada litorânea para pensar na vida nova que teria de levar.
Estava abrindo a porta do carro quando o celular tocou. Clarissa, com voz lacrimosa, disse que queria conversar e retomar nosso casamento. Pediu desculpas e exigiu que eu as pedisse. Perguntou se eu não queria encontrá-la em um bar-restaurante onde costumávamos ir. Concordei. Subi ao apartamento para deixar a mochila e rumei para o supermercado mais próximo, para comprar dois ovos de chocolate...

07 abril 2011

O matador

Cefas Carvalho

Ele era magro, mirrado mesmo, baixo, uma coisinha assim de gente. Pálido e com o rosto cheio de cravos e caroços, feio até não poder mais. Tranquilo, bebia seu conhaque de alcatrão com o rosto sereno e compenetrado. Mas, era um matador. Dos melhores. Era conhecido em toda a região, não havia cidade ou vilarejo que não temesse Jão Bicheira, cujo nome ninguém sabia, nem a origem do apelido. O que se sabia era que ele já havia mandado uns dez sertanejos desta para melhor e era conhecido nos beréus e bares mal afamados como “fabricante de viúvas”.
Cá por mim, eu bebia quieto minha cana quando percebi o homem se aproximando. Claro que tremi nas bases. Não era bem medo, afinal, tenho lá minha coragem e sou de família de homens altos e parrudos. Mas Jão Bicheira tinha uma arma - talvez mais de uma - e eu não. Pois que o cidadão sentou-se no tamborete ao meu lado e perguntou meu nome. Raimundo Nonato, ao seu dispor, respondi.
O homem pegou um palito, limpou os dentes com zelo, tomou um gole do conheque de alcatrão, cuspiu no chão uma saliva preta e voltou-se para mim. Quero te pedir um favor! Minhas mãos tremeram. O cabra havia matado uns dez homens. Certo que uns não valiam nada, ficaram bem melhores mortos mesmos. Mas, metade deles, eram pais de família. Mas, engrossei a voz e respondi: Se eu puder ajudar...
Jão Bicheira tirou um papel dobrado do bolso. Sabe ler?, perguntou. Respondi que sim. Ele me passou o papel. Leia isso para mim. Abri o pedaço de folha. Era uma letra infantil, difícil de ler. Mas, de qualquer maneira, li em voz alta o que estava escrito: Papai, quando for trabalhar pense em mim. Assinado, sua filha Rosinha.
Ele respirou pesadamente, Bebeu mais um gole do alcatrão e cuspiu no chão. Devolvi o papel.
Você sabe qual é meus trabalho, não é? Engoli em seco. Mas, tinha que responder. Sei sim senhor. Ele pigarreou e suspeirou: É um trabalho enjoado, mas, alguém tem que fazer. Se não fosse eu seria outra pessoa, não é mesmo?
Olhou-me tristemente, pagou a conta, pegou um chapéu meio roto que estava no balcão e passou por mim.
Obrigado, amigo. Tem alguma coisa que queira pedir?
Respondi que não, mas, sei lá que diabo me tomou que disse ao homem que tinha apenas uma curiosidade. Pois pergunte, cabra, que perguntar nunca matou ninguém.
Respirei fundo, como quem vai para uma briga de peixeira, e disparei: O senhor sente alguma raiva das pessoas que mata?
Jão me olhou como se eu fosse louco por fazer aquela pergunta para ele, e a verdade é que era loucura mesmo. Encarou-me, pensei que ia me bater ou me gritar, mas abriu um sorriso triste.
Vou lhe responder. Você fez um favor para mim e merece que eu lhe responda. Rapaz, quando me contratam, não sinto nada não. Mas quando me dão a foto do cabra em questão eu vou olhando a foto e vai me dando um ódio...
Respirou, cuspiu mais uma vez, ajeitou o chapéu na cabeça e com um movimento de mão, despediu-se de mim. Aliviado, fui para o balcão e pedi um copo de cana. Derramei um gole para o santo e bebi o resto de uma lapada só!