30 junho 2008

Cavaleiro andante


Cefas Carvalho


Sou um cavaleiro andante. Por Deus que, com minha arma e meu escudo, honrarei o brasão de minha família e não perecerei nas mãos destes malditos que me perseguem! Se me escondo neste aposento escuro deste castelo amaldiçoado é porque os infiéis são em grande número e preciso permanecer vivo para defender meu rei e meu castelo. Os malditos querem me capturar e me submeter a incontáveis torturas. Ouço ruídos e percebo que os vilões estão atrás de mim. Preciso fugir deste calabouço e partir para minhas nobres epopéias, matando dragões e salvando donzelas. Sou um cavaleiro andante, repito, e com minha armadura e minhas armas, levo a justiça até os confins do Reino, com a benção do meu rei, imperador destas terras, e de Deus Nosso Senhor. Empunho minha espada sagrada e aguardo os ímpios adentrarem o aposento. Gritos de guerra e urros quase bestiais. Percebo que a legião de feiticeiros, todos de branco, começa a me cercar. Dois dos mandriões carregam consigo um pano mágico, com o qual querem me aprisionar. Outro feiticeiro tem entre os dedos a agulha do demônio... Não se aproximem de mim, seres infernais, afastem-se de um cavaleiro ungido pelo rei, larguem-me cães do inferno...

*

- João, onde coloco essa vassoura?
- Lá no almoxarifado. Rapaz, hoje o homem estava brabo. Ele segurava a vassoura como se fosse uma espada...
- Esse aí está cada vez mais doido. Trabalhar em hospício é assim mesmo, meu caro...
- Mas com a injeção que tomou, vai dormir até amanhã. Ei, hoje tem jogo lá no caminho do bairro?
- Rapaz, acho que sim. Bater uma bola é bom depois de um dia desses. E o cara gritando que ia salvar princesas, hein?...

14 junho 2008

O carrinho de metal


Cefas Carvalho


Sujo, feio, mal ajambrado, triste em sua velha camisa do Flamengo e em seu calção roto, o menino olhava pela vitrine da loja fechada, o carrinho de ferro. Sonhara com aquele brinquedo. Imaginava a inveja dos amigos de favela ao verem o carrinho, vermelho, brilhante, novinho em folha. Não tinha comido nada naquele dia inteiro, salvo um pão com mortadela. Mas não pensava em comprar comida. Pensava no brinquedo. Percebeu que um veículo parou no meio fio, bem atrás dele. Do carro, desceu um senhor gordo, de cabelo e barbas brancas, com um sorriso no rosto. Parece Papai Noel, pensou o menino. Viu que o homem botou a mão no bolso. Ganharia uns trocados. Estava com fome, queria um sanduíche, mas se economizasse o dinheiro, poderia comprar o carrinho dali a alguns dias. Ah, quando os amigos o vissem com o brinquedo. Sentiu, de repente, uma pontada seca no peito, como uma agulha a furar sua pele. Um gosto estranho lhe subiu à garganta. Uma vontade de cuspir. Tossiu sangue e percebeu, então, a camisa do Flamengo úmida, com o tecido queimado. Olhou para o homem e só então observou a arma fumegante em sua mão direita. Caiu no chão, sentado, não sabendo se olhava para o homem ou para o brinquedo pela vitrine. Sentiu que um sono lhe invadia. Parecia Papai Noel, pensou, antes da dar a última olhada para o carrinho de metal.

13 junho 2008

Ele, a Realidade, os Livros e os Outros



Cefas Carvalho

Escapava à realidade se afundando nos Livros. Ou melhor, entrava – quando nos Livros – em uma realidade paralela, mais ordenada. Em mais de uma ocasião, ao longo da vida, imaginou se a realidade não consistia nos Livros, sendo o chamado mundo real uma mera ficção, de qualidade duvidosa. Quanto a escapar à realidade, fazia isso desde criança; para não ouvir os pais discutindo, para não participar das brincadeiras violentas e idiotas dos colegas de escola e dos amigos da rua onde morava. Sempre que a realidade lhe aborrecia ou lhe seria dolorosa, abria um Livro, qualquer Livro. Tinha as suas preferências: a princípio Monteiro Lobato, Julio Verne, Alexandre Dumas, a coleção Vaga Lume... Com o passar dos anos, foi se acostumando ao mundo como ele era: perigoso, misterioso, falso – mas manteve o hábito de se esconder nos Livros. Um esconderijo que, na verdade, se tornava cada vez mais voluntário, prazeroso e absorvente. A esta altura, já abandonara Conan Doyle e Agatha Christie e começava a descobrir Machado de Assis, Jane Austen, Emily Bronte... Percebia que os Livros, além de fuga à realidade, podiam não apenas relatar aventuras e convidar à elucidação de mistérios, mas também estimular a reflexão, criar imagens e retratar realidades complexas, estranhas. Cresceu, então. A realidade à sua volta mudou. Ficava cada vez mais séria, e os Livros também. Descobriu Orwell, “1984” o impressionou... Caiu em suas mãos “Fahreinheit 451”, que também o marcou... Adentrou o mundo dos espelhos e sombras de Borges, refugiou-se nos clássicos franceses e russos. Agora, o que antes era indiferença para com ele passou a ser intolerância. Havia os Livros. Havia a realidade. E havia os Outros. Eles, os Outros, ou o mundo, o que lhe era a mesma coisa, começaram a lhe tentar impor regras. Era obrigado a dançar, ouvir músicas histéricas em volume máximo, contar piadas sem graça, se divertir, enfim. Passou a ser tratado como anti-social. A princípio não levou a sério. Tinha os Livros. Tinha Balzac, Kazantzakis, Saramago, por que precisaria dos outros? Percebeu que os Outros passaram a não mais lhe dirigir a palavra. Não se importou. Afinal, o que tinha a falar com os Outros? Até que um dia, inventaram leis proibindo ler Livros em lugares públicos. Passou a ler em casa, trancado na solidão confortável do seu quarto. Ouviu dizer que ler seria proibido. Não se importou, como sempre. Leria ainda mais trancado, a sete chaves, em casa. Um dia, entraram em sua casa, de repente, e o levaram para uma espécie de tribunal, escuro, sombrio, frio, como em um livro de Kafka. Sem falar muito sobre o que estava acontecendo, tiraram-lhe os Livros. Perguntaram-lhe se os renegaria, se aceitaria queimá-los. Seria libertado e, melhor, aceito no convívio dos Outros. Viajaria, gozaria a vida. Respondeu afirmando que leria até quando pudesse. Furaram-lhe os olhos. Em meio à dor lancinante lembrou-se dos poetas cegos que tanto lera; Borges, Milton, Glauco Mattoso, lembrou de Édipo... Ó treva indescritível que me envolves, nuvem que não consigo dissipar... Não precisaria dos olhos. Tinha todos os Livros que lera em sua mente. Começou a recitar poemas que amava, de Lawrence, Neruda, Bandeira... Cortaram-lhe a língua. Sangrando, ao chão, escreveu com o dedo na poeira do piso um verso. Morreu com um sorriso nos lábios, e com cada palavra de cada Livro que lera na vida em sua mente. Os Outros correram para ver o que ele escrevera: Bendita a morte que é o fim de todos os milagres...

05 junho 2008

E meu coração precisa dos seus passos



Cefas Carvalho

Acelerado, aos coices, feito cavalo indomado, meu coração dispara quando meus olhos testemunham a entrada dela na sala. Aos olhos, meros escravos do coração, cabe o deleite de testemunhar sua beleza, a pele de porcelana, o olhar luminoso saído de uma musa de Da Vinci, o sorriso que muito insinua e pouco revela... ao coração, navio na tempestade, desgraçado que se perde a bombear sangue aos saltos, cabe a sensação que o corpo inteiro vai explodir. Percebo, com o coração aos arranques, que ela se aproxima de mim; é a vez do olfato entrar em cena, mal cerro os olhos... sinto seu perfume, cujo aroma não consigo identificar, mas que se torna inconfundível quando mesclado à sua pele... Ela fala algo, mas também não consigo identificar, talvez pronuncie verbos sagrados na língua dos anjos, linguagem que não domino e jamais dominarei, posto que aprendi desde cedo a linguagem terrível dos mundos infernais... mas sua voz faz meu coração aumentar seu ritmo, como vendaval que sacode freneticamente as plantas... Abro os olhos então e testemunho seu sorriso. Ela se volta, suave e elegantemente e anda em direção ao sacro lugar onde, adivinhava eu com o instinto infalível dos que amam, seria nosso encontro. Percebo, então que meu coração precisa dos seus passos e a acompanho como as crianças seguem a melodia mágica do flautista...