29 julho 2009

Beleza não põe mesa


Cefas Carvalho

Não, a estética convencional não me agrada e não pretendo ser escrava da beleza tradicional, esta beleza das estátuas gregas e dos astros e estrelas de cinema. Por esta razão, arranquei as unhas, sim, uma por uma, com uma tesourinha afiada... depois foram os dedos, não todos, claro, mas, arranquei fora o dedo mindinho da mão esquerda... Ora, por que se precisa do dedo mindinho, para quê ele é necessário. Cabelos? Arranquei os fios, primeiro um por um, depois, sem paciência, em chumaços, em tufos, mas ainda sobraram alguns fios desconectados entre si... Já disse que a beleza convencional não me atrai, e, por mim, pode ser destruída, como fiz com os lábios, primeiro, enchi-os de batom, depois com uma chave de fenda, despedacei-os, quero ver eles se abrirem para um sorriso sedutor, pois sim... Bem, depois lanhei as pernas, com a mesma chave de fenda, sim, passei a chave nas pernas como quem passa um giz em um quadro negro, com conhecimento e decisão. Para completar a obra, rasguei as roupas, fúteis, banais, tecido em farrapos... Repito que a beleza não me interessa, gosto do feio – que para mim é belo - do destroçado, do imperfeito, sempre fui assim, fazer o quê? Ora, mãe, não faça essa cara! Eu digo há anos que detesto bonecas, odeio bonecas!, e você ainda me compra esta Barbie!... Sinceramente, mãe! No ano que vem posso ganhar de presente de aniversário um Banco Imobiliário?

14 julho 2009

Ícaro


Cefas Carvalho

“One day I am going grow wings/ a chemical reaction”
(Thom Yorke, da banda Radiohead)


Era como um inseto, uma formiga, um besouro, andando pelas suas costas, na altura das costelas e subindo para os ombros. Pelo menos começou assim. Uma comichão nas costas, às vezes na pele, outras vezes como se fosse um formigamento nos ossos. No início desprezou a coceira, mas ela se tornou forte, imperiosa, quase insuportável. Desprezou o conselho da namorada - procure um médico, ela disse - e resolveu ignorar o desconforto, até que em uma tarde tediosa de julho, enquanto caminhava pela avenida principal da cidade, sentiu a dor nas costelas de forma lancinante. Contorcendo-se de joelhos, percebeu que as pessoas o olhavam com medo e fascínio, e em meio a tanta dor – como um punhal cravado em sua carne – sentiu que algo lhe brotava da pele. Olhou, aturdido, para trás e viu o imenso par de asas, viscosas e sangrentas, que lhe nascera. Percebeu tudo, então, e, entre as lágrimas da dor que não mais sentia, e uma saudade que já se anunciava, levantou vôo...