24 janeiro 2013

A biografia da pele

Cefas Carvalho

Se a pele, mundo palpável onde governo e de onde arranco meus parzeres, pode ser suplantada pela abstração poética que chamamos espírito, abdico de bom grado desta existência física e aceito seu fim, possivelmente rumo ao nada, como inevitável destino e última instância onde refugiar meu inconformismo. De que me valeria viver em um universo onde algo invisível (imaginário?) tem o poder (por quem outorgado?) de comandar aquilo que tenho de mais sagrado, meus desejos mais primevos, aqueles que encontram sua essência na carne mais sangrenta. Sendo asssim, além de conviver com a satisfação de aceitar o fim de estrada da minha vida carnal, ainda sou gracejado com a suprema ironia de que - em nada acreditando, posto que somos pó e ao pó voltaremos literalmente - acabo me tornando menos suscetível à morte dos que aqueles muitos que acreditam - de maneira tortuosa, sei - que a morte é apenas a passagem para outra vida, quiça melhor (se assim é, por que tanto temos de perder a vida terrena?...). Devaneios à parte, o que importa é que renovo meus votos de hedonista e, mais uma vez, refuto qualquer freio sobrenatural para os desejos e chamados da carne, a mesma carne responsável pela perpetuação da vida humana neste planeta e que dita nossos passos desde a mais tenra infância até o momento derradeiro de nos encontrarmos com a imensidão do nada. Sendo assim, nada mais justo e adequado que relatar a história da minha vida através da biografia do meu corpo, de seus desejos, fluídos e movimentos, de forma a construir o esboço malfeito, mas autêntico, daquilo que posso timidamente chamar de minha vida!

Imagem: Egon Schiele ("O abraço")




03 janeiro 2013

O natalense, esse bicho esquisito...

Cefas Carvalho

Meu pai, o saudoso escritor e publicitário Padre Zé Luiz, costumava brincar dizendo que o natalense era um bicho esquisito. Talvez mais até que o mossoroense, que, por viver em nação diferente (o País de Mossoró, tão mítico quanto Pasárgada e São Saruê) tem reconhecidamente hábitos e idiossincrasias diferentes dos norte-riograndenses e brasileiros. Contudo, os nascidos e moradores da Cidade do Sol possuem características estranhas, dignas de serem estudadas pela antropologia.
Começa que, como sentenciava Zé Luiz, o natalense não gosta de ganhar dinheiro. Há inclusive uma frase famosa, atribuída ao jornalista Cassiano Arruda Câmara, que reza que "o natalense gasta 200 para o outro não ganhar 20". Recordo que na minha infância, lá pelo início dos anos 80, saíamos em família para almoçar fora aos domingos. Qual não foi nossa surpresa quando uma vez nos deparamos com um cartaz na porta de um restaurante: “Fechado para almoço”. Quantas outras vezes aos domingos não saíamos para jantar o os restaurantes fechavam às oito da noite. Já na vida adulta cansei de estar em bares e restaurantes com amigos e ver garçons e donos nos olhando feio, quase expulsando (experimente contar para um empresário paulista que em Natal se expulsa do estabelecimento justamente os clientes que o mantém funcionando...)
Sobre essa vocação natalense, vivi história igualmente curiosa dia desses. Perto de onde moro há uma lanchonete que freqüento há cerca de um ano. Embora o dono - um senhor bigodudo com ares de português - não fosse um exemplo de simpatia, resmungava um bom dia quando eu aparecia lá para degustar a especialidade da casa: salgado + suco por um real. Em um belo dia, desejoso de tomar um café preto (normal, puro), perguntei a ele se não poderia substituir o suco por um café. O homem respondeu que não, que o café custava 70 centavos e o salgado fora da promoção, 80, totalizando 1 real e 50.
Argumentei que nem precisava ser um copo abarrotado de café. Bastava uma xicara pequena. Ele respondeu que o café pequeno custava 30 centavos. Com mais 80 do salgado, 1 real e 10. Tentei explicar que não se tratava de dinheiro (claro que eu tinha mais que 1,50) mas uma questão de lógica: ele ganharia mais dinheiro comigo se eu bebesse um copinho de café (mais um salgado) a um real do que bebendo um suco - em copo grande - de acerola ou cajá (mais o salgado) pelo mesmo um real.
O homem se invocou e, me olhando como se eu quisesse enrola-lo, sentenciou que somente a promoção suco-salgado era um real. Se eu quisesse o café, que pagasse a mais. Não contei conversa. Atravessei a rua e fui para a lanchonete do outro lado, onde o café pequeno era 20 centavos e  a coxinha saiu por 70 centavos, totalizando 90 centavos, claro. Achei curioso como o cidadão perdia um cliente fiel por um café (ou uma diferença de dez centavos). Definitivamente, aquele comerciante  - bem natalense - não gosta de ganhar dinheiro.
O nativo da Cidade do Sol também tem particularidades curiosas, como o fato de se enxergar com mais glamour que os demais nordestinos. Isso não quer dizer bairrismo. Cearenses e pernambucanos nos dão um banho em se tratando de valorizar as coisas da terra onde se nasce. É que o natalense no fundo se considera um lorde inglês, mais ou menos como um argentino se sente em relação aos demais latino-americanos. O natalense médio (principalmente da famigerada classe média, claro) tem sempre que estar bem arrumado, endinheirado e automotivo. Natal é uma das raras cidades do mundo onde não possuir um carro é quase um crime de lesa-capital. Um pecado mortal. Inaceitável.
Recordo, por exemplo, de um casal amigo meu que morava em Neópolis. Ambos trabalhavam no centro, um na Deodoro outro na Princesa Isabel, a quinze metros um do outro, e nos mesmos horários. Apesar disto, ambos iam para o trabalho cada qual em seu carro, afinal, acho que pensavam, o que os colegas de trabalho iriam imaginar se os vissem chegando no escritório a pé. Em São Paulo mesmo quem tem um carro zero do ano reza para pegar um carona com alguém que vá para um destino próximo. Além de economizar gasolina, desafoga o trânsito. Depois se reclama que o trânsito natalense está ficando caótico...
Mas, o senso de coletividade não é uma das características do natalense. Basta observar o número de veículos estacionados ocupando duas vagas. Em shoppings, estacionamentos privados, bares, restaurantes... Deve ser chique para o natalense impedir que outro motorista ocupe a vaga ao lado.
Um amigo que conhece bem outras capitais nordestinas, tais como Recife e Fortaleze, jura de pés juntos que Natal é a recordista mundial em babacas que postam veículos em bares e lanchonetes e abrem o porta malas do carro para irradiar as novas pérolas de Calcinha Preta, Raparigueiros do Forró e Chibata Nela. E ai de quem se atrever a questionar o som alto. os próprios donos dos estabelecimentos parecem não gostar de quem critique este abuso.
Definitivamente, o natalense é um bicho estranho, que se arruma para andar na areia da praia (só em Natal se vê mulheres de salto alto em Lual na praia), se orgulha de ter sua cultura influenciada por soldados norte-americanos e paga fortunas para cantores e cantoras de outros estados enquanto negligencia os artistas locais. E o natalense ainda faz piada dos bravos mossoroenses, que expulsaram Lampião de seus domínios e libertaram os escravos antes de todo o resto do país. Eu hein! 

01 janeiro 2013

O futuro "previsto" pelos videntes


Cefas Carvalho

Eis que findou 2012 e 2013 já se chegou. Não sou ligado às tradições do reveillon (vestir-se de branco, lentilhas, entrar no mar) mas gosto do simbolismo da mudança de ano (quiçá de comportamento e de vida, muitas vezes). Contudo, o que gosto mesmo é de ler e assistir reportagens sobre previsões de ano novo. Acho mais  divertido que Mr. Bean e Woody Allen juntos.
É fascinante ver repórteres sérios em noticiários supostamente jornalisticos ouvindo pais de santo, videntes e picaretas similares preverem o que vai acontecer no ano que entra. Na verdade, não é preciso ter poderes do além para saber o que tais seres iluminados vão prever para o ano  que entra: um artista famoso vai morrer... outro, igualmente famoso, vai se  separar... em algum lugar do Brasil, um avião com passageiros vai cair... um  grande time de futebol vai passar por dificuldades no campeonato brasileiro...  Em suma, uma criança de dez anos percebe que as "previsões" não passam de fatos vagos que acontecem todos os anos e que certamente acontecerão em 2013. Mas,  admito, é engraçado ver o pessoal cheio de badulaques, jogando búzios e fazendo  cara de espiritualizado para as câmaras.
Sei que estas performances de ano novo  garantem aos “videntes” muitos clientes no decorrer do ano e como defendo veementemente que todo cidadão tem o direito inalienável  de perder seu dinheiro da forma que quiser (seja com videntes, dando grana para  o bispo Macedo comprar emissoras de TV ou adquirindo revistas de fofocas) acho legal que o mercado de trabalho de “previsões” ganhe uma aquecida. Lembro  de uma amiga que recorreu a uma vidente, uma Mãe Jaciara da vida, talvez a  própria, e assim que sentou em frente a ela, ouviu: “Você está com  problemas...” Ora, quem vai a um vidente é porque está com problemas (geralmente amorosos e/ou financeiros). E assim, videntes, ciganos, pais de santos, gente desta qualidade vai ganhando a vida, a custa do dinheiro de gente que não se contenta em viver cada dia e fazer a cada dia “que ele seja  melhor”, sem esta bobagem de saber o futuro, que, como reza a crendice popular, a deus pertence. No fim das contas, pragmático que sou, não faço a menor  questão de saber meu futuro e sigo, cá para mim, os versos de Geraldo Vandré:  “Quem sabe, faz a hora, não espera acontecer...”