21 maio 2012

Lúcifer melancólico

Cefas Carvalho

Caído sabe-se lá de onde - posto que nas coisas sobrenaturais não existe em cima nem embaixo - desde primórdias eras, Lúcifer estava melancólico. Não que alguma vez tenha estado alegre (ao contrário do que se pensa, o Mal não é necessariamente sádico, ou seja, não tem prazer na dor alheia), mas, daquela vez, sua melancolia parecia mais aguda.
Havia alguns séculos pensava se tudo aquilo realmente valia a pena. É certo que o acordo que fizera com Deus era para toda a Eternidade, seja lá o que fosse isso, mas não conseguia mais ver sentido naquele mecanismo. Não era sequer mais necessário que ele, Lúcifer, semeasse o mal, na verdade, jamais o fora... O Homem era naturalmente mal, não havia nada que ele, pobre diabo, anjo caído incompreendido, pudesse criar de novo ou original (muito menos o pecado, criado pelo próprio Deus...) nesse quesito (pelo contrário, os seres humanos diariamente o surpreendiam quanto ao repertório de atrocidades), portanto - e dissera isso centenas de vezes a Deus - seu papel já era inútil.
- E o que você sugere?, perguntou Deus, com a mistura de ira e ironia habituais: Ir embora?
Lúcifer manteve o silêncio, mas, em seu íntimo, começou a tomar uma decisão.
Contudo, durante incontável tempo continuou desempenhando o papel que dele se esperava, de administrador dos lugares infernais. No início, divertia-se com a mitologia que faziam dele e seus domínios: Somente a fértil mente humana para criar figuras como Caronte, Cérbero e inventar caldeirões fumegantes e tridentes afiados. Aliás, detestava a imagem medieval que lhe fizeram, com chifres e patas de bode... Se não conseguia entender os propósitos de Deus entendia muito menos os seres humanos. Estava cansado tanto de um como de outros.
Até que lhe veio a vontade imperiosa, quase obsessiva, de terminar com aquilo tudo. Sabia que não seria fácil, na verdade, sabia que só havia uma maneira: a de desejar morrer com toda a vontade que possuia. Tanto as criaturas infernais como as celestiais eram imortais, porém, nem mesmo a imortalidade era imune ao desejo de desvanecer, definhar.
E foi o que aconteceu.
Definhando lentamente, Lúcifer preocupava aos demônios de estirpe inferior, temerosos tanto que ele - o primeiro dos anjos caídos - desaparecesse do universo e, pior, do imaginário humano, como que atraísse a ira divina (contudo, neste aspecto Lúcifer era mais lúcido que todos: o que Deus poderia fazer com ele? Que castigo poderia receber?).
Até que chegou o dia que Deus mandou um recado a Lúcífer. Desejava encontrá-lo no limbo onde conversavam, já que nem o Pai Celestial podia pisar no Inferno e nem o senhor das trevas tinha permissão para adentrar no Paraíso (embora o próprio Deus já estivesse entediado com essas regras milenares).
Mal chegou ao limbo, alquebrado, melancólico, realmente chegando ao fim, Lúcifer foi surpreendido por Deus.
- Que pensa que está fazendo, meu filho?
Surpreso com o tratamento delicado em vez da tradicional ira (os dois não conversavam civilizadamente desde o episódio de Jó), Lúcifer preferiu não recorrer às particularidades atribuídas a ele (mentira, intriga, falsidade) e foi sincero:
 - Estou cansado de tudo! Quero morrer!
 - Sabes que és imortal!
 - Mas, há uma maneira de morrermos. E, se não percebeu, eu já estou definhando.
 - Não faça isso, meu filho.
 - Odeio quando me chama de meu filho...
 - Mas, és meu filho, como todos os anjos, caídos ou não.
 - De-me uma razão para eu não morrer.
 - Sim, a darei: Por que sem tu, eu morrerei também...
 - Já discutimos isso...
 - Sim, e chegamos sempre a mesma conclusão. Não podes morrer. Preciso de você!
 - O senhor diz isso há milênios...
 - Por que é verdade! Sabes bem disso...
 - Era uma verdade em idos tempos. Hoje as coisas mudaram.
 - Nada mudou, meu filho. A humanidade é a mesma!
 - Eu não sou mais necessário. Além disso não aguento mais o meu papel na engrenagem das coisas...
- És tão necessário hoje como no ínicio dos tempos. Porque eu não seria mais necessário sem tua presença. De qualquer forma, para acabar com sua melancolia, proponho um acordo. Que achas de trocarmos de papéis?
 - Como assim? - estranhou Lucifer.
 - De tempos em tempos, e permito que você os determine, nós trocamos os papéis. Tu assumes o reino celestial e eu, os terrenos infernais.
 - Mas, como?
 - Esquecestes que eu sou onipotente e onipresente e determino o que pode ser feito ou não. Já brincamos com Jó, já testamos até onde Jesus poderia sentir dor, por que não trocarmos de lugar durante um tempo?
Lúcifer sentiu um comichão de vida envolver-lhe, e lembrou dos tempos imemoriais em que queria ser mais do que Deus, até que, os milênios no Hades lhe mostraram que não apenas era impossível ser mais do que Deus, mas que não havia razão para desejar se-lo. O mecanismo estava em funcionamento e nem o Pai Celestial conseguiria mais interrompe-lo, ainda que houvesse todas aquelas ameaças de Apocalipse, Fim dos Tempos... Apenas artifícios para manter os homens ocupados, pois que o mundo visível jamais acabaria, tanto Deus como Lúcifer sabiam com exatidão. Ambos sabiam também que, na verdade, faziam parte de um mecanismo ainda superior a eles mesmos, misterioso, desconhecido.
Já revigorado, Lucifer sorriu e aceitou a proposta. Voltou para o Inferno cheio de alegria, à espera dos dias em que comandaria as legiões divinas. Já era sábio o bastante para saber que nada mudaria. Mas, todos necessitam de uma mudança de ares, não é mesmo?


Imagem: Gustave Doré