13 junho 2008

Ele, a Realidade, os Livros e os Outros



Cefas Carvalho

Escapava à realidade se afundando nos Livros. Ou melhor, entrava – quando nos Livros – em uma realidade paralela, mais ordenada. Em mais de uma ocasião, ao longo da vida, imaginou se a realidade não consistia nos Livros, sendo o chamado mundo real uma mera ficção, de qualidade duvidosa. Quanto a escapar à realidade, fazia isso desde criança; para não ouvir os pais discutindo, para não participar das brincadeiras violentas e idiotas dos colegas de escola e dos amigos da rua onde morava. Sempre que a realidade lhe aborrecia ou lhe seria dolorosa, abria um Livro, qualquer Livro. Tinha as suas preferências: a princípio Monteiro Lobato, Julio Verne, Alexandre Dumas, a coleção Vaga Lume... Com o passar dos anos, foi se acostumando ao mundo como ele era: perigoso, misterioso, falso – mas manteve o hábito de se esconder nos Livros. Um esconderijo que, na verdade, se tornava cada vez mais voluntário, prazeroso e absorvente. A esta altura, já abandonara Conan Doyle e Agatha Christie e começava a descobrir Machado de Assis, Jane Austen, Emily Bronte... Percebia que os Livros, além de fuga à realidade, podiam não apenas relatar aventuras e convidar à elucidação de mistérios, mas também estimular a reflexão, criar imagens e retratar realidades complexas, estranhas. Cresceu, então. A realidade à sua volta mudou. Ficava cada vez mais séria, e os Livros também. Descobriu Orwell, “1984” o impressionou... Caiu em suas mãos “Fahreinheit 451”, que também o marcou... Adentrou o mundo dos espelhos e sombras de Borges, refugiou-se nos clássicos franceses e russos. Agora, o que antes era indiferença para com ele passou a ser intolerância. Havia os Livros. Havia a realidade. E havia os Outros. Eles, os Outros, ou o mundo, o que lhe era a mesma coisa, começaram a lhe tentar impor regras. Era obrigado a dançar, ouvir músicas histéricas em volume máximo, contar piadas sem graça, se divertir, enfim. Passou a ser tratado como anti-social. A princípio não levou a sério. Tinha os Livros. Tinha Balzac, Kazantzakis, Saramago, por que precisaria dos outros? Percebeu que os Outros passaram a não mais lhe dirigir a palavra. Não se importou. Afinal, o que tinha a falar com os Outros? Até que um dia, inventaram leis proibindo ler Livros em lugares públicos. Passou a ler em casa, trancado na solidão confortável do seu quarto. Ouviu dizer que ler seria proibido. Não se importou, como sempre. Leria ainda mais trancado, a sete chaves, em casa. Um dia, entraram em sua casa, de repente, e o levaram para uma espécie de tribunal, escuro, sombrio, frio, como em um livro de Kafka. Sem falar muito sobre o que estava acontecendo, tiraram-lhe os Livros. Perguntaram-lhe se os renegaria, se aceitaria queimá-los. Seria libertado e, melhor, aceito no convívio dos Outros. Viajaria, gozaria a vida. Respondeu afirmando que leria até quando pudesse. Furaram-lhe os olhos. Em meio à dor lancinante lembrou-se dos poetas cegos que tanto lera; Borges, Milton, Glauco Mattoso, lembrou de Édipo... Ó treva indescritível que me envolves, nuvem que não consigo dissipar... Não precisaria dos olhos. Tinha todos os Livros que lera em sua mente. Começou a recitar poemas que amava, de Lawrence, Neruda, Bandeira... Cortaram-lhe a língua. Sangrando, ao chão, escreveu com o dedo na poeira do piso um verso. Morreu com um sorriso nos lábios, e com cada palavra de cada Livro que lera na vida em sua mente. Os Outros correram para ver o que ele escrevera: Bendita a morte que é o fim de todos os milagres...

Um comentário:

Cláudia Magalhães disse...

Que lindo, amor meu! Como vc escreve bem... Que orgulho! Te amo! Pra sempre...