05 abril 2010

"Para o inferno"


Cefas Carvalho

Entrou no táxi apressado – os olhos injetados e doentios - e instalou-se no banco traseiro. O taxista, envolto em suor e tédio perguntou: “O senhor quer ir para onde?” "Para o inferno", respondeu o passageiro. O taxista virou-se. Percebeu no olhar do estranho passageiro - um homem maduro, corpulento e de modos sombrios - um desespero mesclado com uma inusitada serenidade. O homem sustentou o olhar do taxista e implorou: "Por favor, siga em frente". O taxista suspirou e obedeceu. Esperou que alguns segundos se passassem para perguntar novamente: "Para onde o senhor vai?". "Se eu soubesse...", suspirou o passageiro, para completar: "Quem sabe para onde vai? Você sabe para onde vai?". O taxista hesitou: "Eu vou para onde o senhor disser que iremos". "Se eu não sei para onde vou, como pode dizer isso?". "Preciso que o senhor diga para onde quer ir, ou vou ter que parar o carro para não gastar gasolina". "Eu entrei no seu táxi dizendo para onde queria ir: para o inferno.". "Não posso te levar para o inferno". "Então me leve para algum lugar parecido". O taxista hesitou novamente. Que lugar lhe assemelharia mais aos mundos infernais? Sua própria casa, com sua esposa que mal lhe dirigia a palavra havia anos e os filhos adolescentes que não o respeitavam? O clube no domingo com os amigos interesseiros e as brigas que fatalmente aconteciam? Os encontros semanais com o dono do táxi, que lhe cobrava impiedosamente o aluguel do veículo e sempre reclamava de alguma coisa? De repente todos os aspectos de sua vida lhe pareceram infernais, e em uma questão de segundos se perguntou se valia a pena estar vivo. Mais: se queria ainda continuar vivendo. Realmente vivera ao longo daqueles anos todos de necessidades e humilhações. Freou o carro, subitamente. "O que houve?", perguntou o passageiro. "Que houve?". "Não posso te levar para o inferno. Descobri que já vivo nele". "Então, faça o que tem que fazer". "É o que o senhor quer?". "Com certeza. Vamos, homem, resolva tudo por nós dois". O taxista então deu partida e rumou para a ponte quebrada e abandonada na zona noroeste da cidade. Sempre quis passar direto pelos cones que alertavam os motoristas do perigo. Sempre quis saber se a água do rio era realmente gelada e lodosa, como diziam. Sempre quis descansar de sua própria vida. Ainda que fosse no inferno.

4 comentários:

Alan Capriles disse...

Muito bom!
Daria um ótimo roteiro para o antigo seriado "Além da Imaginação". Porque, provavelmente, aquele taxista deu carona para o próprio diabo...

Cefas Carvalho disse...

É uma leitura possível para o conto. E valeu a lembrança do velho "The twilght zone", seriado que ainda pretendo ter em DVD. Abraço!

Rafael Duarte disse...

Cefas, rapaz! Porque você não levou o homem para o show do Garota Safada no dia em que a gente se encontrou lá no Centro? Depois de uma posse enfadonha como aquela, o cenário estava perfeito! Pobre do diabo... beleza de texto. Abração, Rafael Duarte

líria porto disse...

como um soco no estômago - gosto!!
vou colocar teu blog entre os favoritos.
besos