19 março 2010

Noite passada sonhei que alguém me amava


Cefas Carvalho

Ela olha para a taça de vinho como quem observa uma escultura de Rodin, entre a contemplação e o espanto. Olhos fixos na bebida, mas como se nem ela - a mulher – nem o vinho estivessem ali, mas, muito longe. É estranho que esteja bebendo vinho. Normalmente bebemos vinho quando acompanhados, não sozinhos. A solidão é mais convidativa para uísque, aperitivos, coquetéis. Mas, ela bebe vinho tinto e isso torna a solidão dela mais extensa, como se fosse crescer e engolir todo o bar, todo o mundo.
O nome dela é Luiza. Tem trinta anos. Talvez durante o dia pareça ter menos e seja mais bonita, mas, sentada à mesa com os olhos fixos na bebida, parece carregar todo o peso e a tristeza do universo. Rugas e olheiras despontam de seu rosto como plantas. Mas, nada disso importa.
Quanto a mim, me chamo Carlos, trabalho como barman neste local há seis meses e estou completamente apaixonado por ela.
Ela jamais me olhou, isto é, jamais me viu como um ser humano. Sou apenas o barman a quem ela pede vinho, cigarros e isqueiro. Depois paga a conta, desfralda um sorriso amargo e vai embora. Mas, repito, não importa. Eu a considero a mulher mais linda do mundo e se ela me dignasse a trocar três frases comigo, eu iria para casa feliz, sozinho, mas feliz.
Sei que se chama Luiza porque, uma noite, ela pagou a conta com cheque. Chama-se Luiza Nunes dos Santos. Pela tonalidade mais clara no dedo anelar da mão, deduzo que usava aliança até pouco tempo. Era casada, portanto.
Que mais sei sobre ela? Que quando gosta da música ambiente tamborila na madeira do balcão, como se acompanhando a melodia. Por vezes, sua tristeza parece ceder espaço a um encantamento produzido pela música. Recordo de uma noite, antevéspera de natal, quando coloquei no som uma canção antiga do The Smiths:
Last night I dreamt that somebody Love me
No hope, but no harm, just another false alarm

Ela olhou para o teto como se esperando algo – uma revelação, um manual de instruções – cair do céu. Em seguida, roeu as unhas, o que fazia quando estava mais tensa que o habitual, eu o percebia, e pediu outra taça de vinho.
Jamais se embriagava. Jamais perdia a compostura. Apenas bebia vinho e respirava seu próprio desespero. Quantas noites não pensei em tirá-la do seu transe e dialogar com ela. Saber se tinha filhos, o que fazia durante o dia, onde trabalhava, do que gostava de comer. Mas, como resgatá-la do poço onde ela se jogara com sua solidão?
Hoje, ela se foi mais cedo. Com mais tristeza no olhar do que o habitual. Também bebeu mais vinho que de costume. Usava um vestido preto com manchas esbranquiçadas. Sem maquiagem, seu rosto parecia precocemente envelhecido. Não importa, eu continuo apaixonado por ela.

*

Ela olha para o copo de uísque com amargura milenar, como se o peso de séculos tivessem caído sobre sua cabeça. Ela tem cabelos loiros amarrados com negligência. Usa batom e tem os olhos moldurados por rímel preto. Termina a dose com rapidez pede outro uísque. Reclama que a dose poderia ser maior e que coloquei gelo em excesso no copo. Depois reclama que está calor no bar. Em seguida pede o isqueiro e comenta sobre as chuvas que caíram na cidade na noite anterior.
Não, a mulher sentada ao balcão não é Luiza. Chama-se Julia, e sei disso porque ela se apresentou tão logo servi a segunda dose. Sorri para mim, depois diz que está sem cigarros. Pergunta se eu fumo e respondo que não. Ela está sentada onde Luiza costumava sentar, para beber vinho tinto em lentas taças, tamborilar ao som de velhas canções e exalar toda a tristeza que uma pessoa pode sentir.
Sirvo mais uma dose para Julia. Em seguida, atendo a outros clientes. Tenho dificuldade para olhar em direção onde ela está sentada. Onde Luiza costumava ficar.
Luiza tirou a própria vida na noite de ontem. Tomou dezenas de anfetaminas com vodca. Não houve dúvida que foi suicídio. A polícia encontrou junto ao corpo um breve bilhete dela despedindo-se da vida. O dono do bar, passando pelo prédio onde morava, testemunhou o corpo, embalsamado em plástico preto, ser retirado do local.
Descobri, então, que morava duas rias depois do bar. Nada mais sei sobre ela. Nem quero saber mais nada. Sei que eu a amava, por estranho que possa parecer.
Julia pede uma porção de azeitonas e sorri para mim. Com uma súbita dor nas costas e na cabeça, sirvo-a com educação e me volto para colocar um CD:
Last night I felt real arms around me
No hope, no harm, just another false alarm…

Espero agora o expediente terminar para recolher os cacos de mim no bar e me arrastar até meu apartamento, desejando ardentemente que o teto caia sobre minha cabeça. Desejando morrer.

11 comentários:

Unknown disse...

admiro voce atravez do seu pai q admirava demais........................
fico feliz em saber q voce caminha na mesma direção q ele, c algumas diferenças claro!...............

Alan Capriles disse...

Seu conto me lembrou de uma frase que escrevi há muito tempo:
"uma paixão interrompida é um amor eterno"
Quase pude sentir a dor daquele barman...
Parabéns! Você é realmente um grande escritor!

Cefas Carvalho disse...

Alan Kilder, obrigado pela visita primeira a este blog, registrando que escrevemos juntos inúmeras letras de músicas nos tempos em que tínhamos uma banda do rock e achávamos que íamos mudar o mundo. Ana Maria, obrigado pela visita e pela lembrança do velho Zé Luiz. E à amada, velha visitante deste blog, beijos mil.

Nivaldete disse...

O amor e suas dores, suas cores, seus olores... Gostaria de ter mais tempo para ler seus contos, mas a vida é tão cheia de urgências que nem sempre é possível. Mas é sempre com prazer que passo por aqui. Abraços.

Sulla Mino disse...

Uau!O tempo e suas doses...Até eu queria saber mais sobre aquela mulher,detalhes maravilhosos. Satisfação sempre em vir por aqui.
Bjks,

www.pedradosertao.blogspot.com disse...

Esse é mais um dos desencontros que a vida apresenta...Gostei dos nomes escolhidos...fortes, vibrantes.
abraço

Paulo Jorge Dumaresq disse...

Cefas, a Luiza do garçom Carlos é a Luiza de todos nós eternos amantes do belo metido em saias. Mais um ótimo conto digno de encômios. Ah, eu também tomo vinho solitariamente em casa. Obrigado pela inclusão do Poema do Mar no pacote de textos da segunda. Fica o agradecimento. Forte abraço.

Cefas Carvalho disse...

Aos amigos e leitores que me perguntaram, a resposta: A letra citada no conto é "Last night I dreamt that somedoby loved me", de Morrissey e Marr (The Smiths) gravada no disco "Strangeways, here we come" de 1987.

katharina Gurgel disse...

Muito poético e bonito!
Parabéns!
Me fez pensar... e pensar...e tomar uma taça de vinho tinto sozinha, também.

Tétis Burlamaqui disse...

A vida tem muitas Luizas. Esses momentos em que a solidão nos parece eterna. Belo!

Valdecy Alves disse...

Olá!

Recentemente o Instituto Sangari publicou estudo sobre a violência nos últimos 10 anos no Brasil. Dados alarmantes, que demonstram que a violência que nos assusta no local onde moramos é um fenômeno nacional. O QUE ESTÁ ACONTECENDO? ALGUMAS REFLEXÕES? QUAL O PAPEL DE TODOS? Leia! Divulgue e deixe seu comentário:
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Veja um vídeo do qual participei comentando sobre a violência na mídia:
http://www.youtube.com/watch?v=ljsdz4zDqmE
FELIZ PÁSCOA PARA TODOS! Não deixe de seguir o meu blog e assinar o feed.