21 julho 2008

O amor é um pássaro rebelde



Cefas Carvalho

Era tão simples. Bastava pedir perdão. Eu sabia que ela iria me perdoar. Bastava um telefonema, portanto. Ou mandar um buquê de rosas com um cartão de desculpas. Ela já havia me perdoado antes, como eu a ela. Desde o dia em que nos conhecemos, em uma festa, apresentados por uma amiga em comum. Eu jamais vira uma mulher com os olhos tão brilhantes, como mais tarde confessei. Ela assinalou que seus olhos brilhavam por minha causa. Naquela noite, dançamos muito, e em mais de uma oportunidade tive de pedir desculpas quando pisei em seu pé, mau dançarino que sempre fui, o que gerou muitas risadas. Horas mais tarde, já na cama, no porto seguro de meu apartamento, ela me pediu desculpas por ter pensado em pedir um táxi e sair às pressas, como quem foge. Estava feliz e sentia dificuldade em administrar a própria felicidade, confessou. Com o perdão de lado a lado, iniciamos nosso romance, amalgamando o mais terno dos carinhos com o fogo da paixão. Ela pediu em uma tarde chuvosa, enquanto passeávamos em um parque, que eu definisse o amor. O amor é um pássaro rebelde, respondi. Ela sorriu, sabia que era um trecho da ópera Carmem. Gostava de ópera, como de música, como de literatura, teatro, poesia e comida japonesa, como eu. Cuidado, pois os pássaros rebeldes não suportam ficar na gaiola e podem morrer nas grades, tentando sair dela, sorriu. Respondi que, da gaiola onde eu estava, jamais tentaria sair. E era verdade. Contudo, mesmo dentro da gaiola, dois pássaros rebeldes bem poderiam, mesmo sem querer, se ferir. Em alguns momentos fui eu quem a feriu, exaltado diante de tanto sentimento. Outras vezes, foi ela quem me agulhou, desconcertada com a profusão do mesmo sentimento. Ambos pedimos perdão um ao outro e a paz voltava a reinar em nosso castelo feudal de amor, onde costumeiramente levantávamos uma ponte levadiça para nos protegermos dos falsos amigos, do mau olhado, das leviandades, inimigos implacáveis do amor. Desta forma, o tempo foi passando e nosso amor, tal como um pássaro rebelde, perseverava, mas se debatendo nas grades da gaiola. Alternamos planos – ter filhos, viajar para os lugares dos nossos sonhos – com os fantasmas do rompimento. Chorei e gerei lágrimas. Até que em uma noite quente como o inferno, ela perguntou se eu a amava. Respondi que sim, mas com uma distração fatal, posto que minha mente vagueava em idéias diversas e meu coração estava pesado, graças a uma discussão tola na noite anterior. Diante da minha resposta ela nada falou. Foi para o quarto, leu um livro e adormeceu. Rabisquei em um papel minhas malditas idéias, tomei um copo de leite quente e fui dormir ao seu lado. Religiosamente, estivesse ela dormindo ou acordada, eu a beijava no rosto, à guisa de boa noite. Mesmo dormindo, ela ensaiava um meio sorriso quando eu a beijava. Naquela noite desgraçada, por sono ou negligência, não a beijei. Quando acordei, na manhã seguinte, ela não estava na cama. Nem no quarto ou em qualquer lugar na casa. Suas roupas não estavam no armário, perto das minhas. Encontrei na mesa um bilhete, escrito em letra nervosa, onde ela explicava que percebera que eu não a amava mais. E que não suportaria mais viver comigo sem ter a certeza do meu amor. Pensei em ligar imediatamente para seu celular, ou para a casa da sua mãe, mas, por alguma razão, não fiz nem um nem outro. Não tenho nada que pedir perdão, pensei comigo mesmo e voltei a dormir. Horas depois, ao acordar novamente, a dor me acertou em cheio, como um soco. Era tão simples, bastava pedir perdão, como das outras vezes. Mas, o orgulho era um pássaro tão rebelde quanto o amor, de maneira que fiquei me jogando nas paredes da minha gaiola imaginária até me decidir por procurá-la e pedir perdão. Seu celular estava desligado. Liguei para a casa dos pais dela. Uma tia, aos prantos, atendeu e me deu a sentença: ela havia se matado, com uma mistura de tranqüilizantes, uísque e formicida. Era tão simples. Bastava ter pedido perdão na hora certa. Abri a geladeira, bebi um copo de leite gelado e saí pela casa fechando todas as janelas, para em seguida vedá-las com massa. Abri a tampa do forno, liguei o botão do gás e descansei a cabeça na grade de ferro, esperando o momento em que eu teria a chance, felizmente, de pedir perdão a ela. E dizer que sim, eu a amava. Até à morte

4 comentários:

Cláudia Magalhães disse...

Amei, amor meu! É maravilhoso te ver em versos, prosa, traduções, contos, crônicas... Ô homem talentoso...
Da sua esposa-admiradora que te ama muito... Beijos e queijos e...

VERBO SOLTO disse...

muy loco y triste.....

Moacy Cirne disse...

Um texto construído no limite da tensão, entre o amor e a morte, E também construído com a devida competência literária. Um abraço.

Anônimo disse...

Uma clara e evidente experiência literaria, um literato de top de linha, fazendo aquilo que sabe.