15 outubro 2010

O encontro marcado


Cefas Carvalho

Parecia um sonho. Talvez o fosse. O convite para sair – uma cerveja, um jantar, talvez uma pizza – se assemelhava a uma irrealidade. Havia quanto tempo não recebia um convite daquela natureza? Não, Raquel, você deve estar sonhando, disse, em voz alta para si mesma, enquanto fazia com o lápis o contorno dos olhos.
Olhando seu reflexo no espelho, sentiu-se aliviada por não estar com olheiras. Dormira cedo na noite anterior, beneficiada por uma leva enxaqueca e pelo movimento fraco na casa. Quando dormia tarde acordava com olheiras imensas que perduravam até a noite, lhe conferindo aparência mais envelhecida que a de seus vinte anos.
Conferiu mais uma vez o bilhete que Rômulo havia lhe escrito no verso de uma comanda de bar. Você é linda. Beijo. Rômulo. Não recebia uma mensagem romântica de verdade, havia quantos anos, meu deus do céu?
Conhecera Rômulo havia dez dias. Tímido, sentou-se sem olhar com atenção à sua volta e pediu uma cerveja. As outras meninas mal o perceberam, mas ela encantou-se com seu embaraço, seu cabelo mal penteado e seus enormes olhos acastanhados. Inventou um pretexto (Você tem cigarro?) para sentar-se à mesa dele. Passada a timidez inicial, a conversa fluiu e ele se mostrou educado, interessado em sua vida e cobriu-lhe de elogios. Teve que ir embora uma hora depois, mas, deixou pagas duas cervejas para ela. Prometeu voltar.
E voltou. Três dias depois, Raquel chegou ao bar e o viu sentado a uma mesa isolada, olhando fixamente para um ponto na parede. Desta feita, não precisou de pretextos e abordou-o como se fossem velhos amigos. Conversaram sobre a vida, riram, ele teve paciência para ouvir seus desabafos. Ele não parecia pertencer àquele ambiente. Por sua vez, sentia que ele pensava o mesmo em relação a ela. Por mais que ela precisasse de dinheiro, por mais que a casa estivesse cheia e ela não pudesse ficar apenas à mesa dele, Raquel sentiu uma festa no coração quando ele a convidou para jantar dali a alguns dias. Sim, um jantar, com direito a pizza, cerveja (ou vinho, que ela adorava), e não um programa, ele deixou bem claro.
No intervalo de dias entre o convite e a noite do jantar, Raquel realizou um inventário sobre sua vida. Entrara naquele estranho universo havia dois anos, incentivada por uma amiga que despertava inveja por ganhar em dois dias o que as vizinhas recebiam por um mês de trabalho. De início, era apenas uma aventura. Ganhara algum dinheiro, não passara por maus bocados, chegara a se divertir um pouco. Depois, venho a segunda vez (“Quem faz uma, faz duas”, ria a amiga) até que, quando percebeu, estava fazendo um programa por semana e com uma espécie de “carteira de clientes”. Pagava as contas e tinha dinheiro para mandar para a mãe, que morava no interior, isso era certo, mas, também gastava mais do que deveria (cigarros, perfumes em excesso, roupas caras, sapatos...) até que, mal sabia como, acabou por estabelecer-se uma casa (com vários nomes, mas, conhecida como “boate”), o que lhe dava – pelo menos aparentemente – mais segurança e possibilidades de ganhar dinheiro. Pensara em passar um mês na boate e lá estava havia quase oito meses, que se passavam sem sobressaltos e sem boas novas. Apenas na rotina de trabalhar até as quatro da manhã (ou até quando houvesse clientes na casa), arrastar-se para a quitinete que chamava de “minha casa” e acordar depois do meio dia para juntar os cacos da sua vida até a hora de reiniciar o trabalho, às sete da noite.
Até que Rômulo surgiu.
Era para ele se pintava – de forma discreta, não exagerada – e imaginava para onde iriam. Ao telefone, ele disse que havia economizado dinheiro e que pensou em um restaurante sofisticado. Falou de dormirem em um hotel, caso ela não quisesse ir à casa dele.
Olhou-se no espelho. Ainda eram dezenove horas. O encontro estava marcado para as vinte e trinta. Como Rômulo não tinha carro, combinaram se encontrar em uma praça, no Centro da cidade, para, de táxi, jantarem, passearem pela orla.
Enfim, sentindo-se linda como nunca, considerou-se arrumada. Pegou a bolsa e saiu. Eram dezenove e dez, havia tempo de sobra, Rômulo talvez ainda estivesse trabalhando. Decidiu passar na boate, para ver as amigas (na verdade, para esfregar sua felicidade incontida nas amigas que teriam de trabalhar no salão naquela noite) e para carregar a bateria do seu celular, antes que descarregasse.
Lá, tratou de espalhar sua alegria como quem atira arroz em recém-casados. Riu, falou sobre Rômulo, ouviu piadas maliciosas das colegas, trocou o sapato por um, de uma amiga, com o salto maior.
Para descontrair (estava nervosa com a proximidade do encontro. Havia quanto tempo não tinha um encontro sem envolvimento financeiro?...), pediu um rum com coca-cola. Sentou-se à mesa com uma colega, que reclamava da falta de dinheiro, quando dois homens entraram no salão, sentaram-se a uma mesa e acenaram com a mão para Raquel e a amiga. Eu tenho um compromisso, reagiu Raquel. Sente-se comigo só uns vinte minutos para quebrar o gelo. Quero ver se faço um programa com um deles e aí você vai embora, pediu a amiga. Raquel concordou. Na mesa com os homens, teve de agüentar as perguntas de sempre, os comentários de sempre, a mão na perna, o alisar de cabelos e teve ganas de sumir daquele lugar. Suportou meia hora para ajudar a amiga e preparava-se para sair quando o dono da boate chamou-a ao balcão. Raquel descobriu que um dos seus clientes telefonara para ele para saber se ela estava na casa.
Hoje nem é meu dia de trabalho, tenho um compromisso daqui a pouco, explicou.
Sim, minha filha, mas, dinheiro a gente não joga fora não. Deixe-o chegar, peça umas bebidas e tente levar uma menina que o agrade para a mesa, aí depois você vai para seu compromisso, argumentou.
Sem poder de reação (estava devendo ao dono da boate) concordou e tão logo o cliente chegou, Raquel sentou-o a uma mesa e explicou que teria de ir, mas que o deixaria em boa companhia. Conseguiu fazê-lo, mas, tendo que ouvir antes algumas piadas sem graça e alguns desabafos sobre a vida, perdeu mais tempo que o esperado. Olhou para o relógio: 20h20. Vou pegar um táxi, pensou. Contudo, já na rua – mal iluminada e deserta, como convinha – nenhum táxi. Andou – atrapalhada pelo salto alto com que não estava acostumada – até o posto de táxi mais próximo. Nenhum no ponto. Decidiu andar um quarteirão até a parada de ônibus mais próxima. Eram 20h35. Percebeu que naquele trecho os ônibus para o centro demorariam a passar e começou a se desesperar. Decidiu ir andando até o centro. Já conseguira fazer aquele percurso em vinte minutos, seria melhor que esperar o maldito ônibus! Começou a andar quando se lembrou de passar uma mensagem para Rômulo, avisando que estava a caminho.
O celular desligara, estava descarregado. Esquecera-se de carregar a bateria.
Hesitou entre caminhar rapidamente – se é que isso era possível com aquele salto! – ou parar em algum bar e pedir para carregar o celular durante dez minutos, tempo suficiente para poder ligar para Rômulo ou passar-lhe uma mensagem.
Acabou não fazendo nem uma coisa nem outra. Parou para pensar e desesperou-se ao ver passar um taxi vazio. Então, decidiu tirar os sapatos e caminhar até o centro. Quando chegasse perto da praça, os colocaria nos pés, entraria em um bar nas imediações para olhar-se no espelho (estaria descabelada? A maquiagem estaria desfeita?) e garantir que estaria linda para Rômulo.
Ofegante – o caminho para o centro tinha ladeiras e subidas – Raquel chegou na rua que antecedia a praça. Calçou os sapatos e olhou o relógio, eram 21h20. Mesmo com quase uma hora de atraso, não queria estar feia ao encontrar Rômulo e manteve a decisão de entrar no bar para ver como estava. Ajeitou-se rapidamente, e foi para a praça. Ele não estava lá. Na expectativa que ele tivesse isso comprar cigarros e voltasse, esperou quase meia hora. Um pouco antes das dez da noite, concluiu que ele não voltaria e que o mais sensato a fazer era tentar carregar o maldito celular. Voltou ao bar e conseguiu fazê-lo. Quinze minutos depois, percebeu – com o celular já ligado – que Rômulo fizera quatro ligações para seu número. Teve medo de ligar para ele e preferiu passar uma mensagem: “Meu amor, me perdoe pelo atraso. Ligue para mim. Beijos”.
Sentou-se no meio fio, esperando um retorno. Dez minutos depois, ouviu o ruído que indicava a chegada de mensagens. Com o coração aos pulos, leu a mensagem: “Me esqueça”.
Raquel pediu um copo d´água no bar e viu um táxi parado em frente ao local. Pagou a corrida até a boate. Lá, pediu um conhaque sem gelo, abriu o botão da blusa para deixar parte de seus seios à mostra e sentou-se a uma mesa, olhando para os clientes que chegavam e pensando na longa e amarga noite que teria pela frente.