05 novembro 2008

A Ilha do Fim do Mundo


Cefas Carvalho

Começou como uma brincadeira.
Abrindo o mapa mundi para planejarmos nossa viagem a Lisboa, imaginamos uma outra viagem, esta, para algum lugar distante, perdido, algo como o fim do mundo.
Entre vinhos e queijos, sonhos e risos, elegemos a Escócia como o nosso fim do mundo particular e ideal. Razões para isso não faltavam: a Escócia ficava próxima a Londres, metrópole que conhecíamos e que serviria como ponto de apoio para a aventura. Também porque queríamos um fim do mundo estruturado, confortável, preferencialmente com clima frio. Também favorecia o fato da Escócia ter algo de mágico... talvez pelos castelos, pelo Lago Ness e seu lendário monstro...
Do sonho, passamos ao mapeamento, à prática: descobrimos ilhas isoladas ao oeste da Escócia, bem distantes de Glasgow e Edinburgh. Nomes como Ilha de Berneray, Ilha de Skye, Castlebay e Benbecula começaram a fazer parte do nosso imaginário. Eu e Clarissa pesquisamos itinerários, pousadas idílicas, preços de passagens aéreas e férreas, cotação da libra. Pela Internet sondamos instalações, preços... logo a viagem algo irreal para a Ilha do Fim do Mundo ganhou mais espaço em nossos corações e mentes do que a viagem real, a ser empreendida para Lisboa. O que poderia frear nosso sonho? Éramos jovens, ambos com a idade de Cristo quando morreu, não tínhamos filhos e estávamos profissional e financeiramente estruturados. Queríamos conquistar o mundo, e certamente riríamos de quem nos dissesse que o mundo não existia apenas para ser conquistado por nós.
Viajamos a Lisboa, como tinha de ser. O que relatar da viagem às terras portuguesas? É certo que conhecemos a linda capital lusitana, que andamos de mãos dadas pela Avenida da Liberdade até desembocar no Tejo, que experimentamos todas as delícias de bacalhau disponíveis nos restaurantes e bares e que fizemos amor na mais linda das pousadas de Coimbra, olhando o sol nascer. Mas, também trocamos ofensas muitas e diversos espinhos verbais.Maculamos o Castelo de São Jorge com uma briga estúpida e que beirou a violência física e encharcamos a bela cidade do Porto com os ciúmes dela e com minha intolerância.
Retornamos ao Brasil decididos não apenas a nunca mais viajar juntos, como a terminarmos nosso relacionamento. Não havíamos sequer desarrumado as malas da viagem com os presentes para amigos e parentes quando me vi obrigado a, com o coração comprimido, a arrumar minhas malas com roupas e coisas básicas. Foram dois dias em um hotel, imaginando o que fazer da vida e procurando um apartamento para alugar. Até que Clarissa me telefonou, propondo um encontro. Marcamos em um restaurante oriental perto da praia, onde costumávamos ir com freqüência.
Quando eu a vi, no restaurante, mais linda do que nunca e com os olhos ainda soltando faíscas, apesar da vermelhidão e do cansaço, pensei em me ajoelhar aos seus pés e implorar para que voltássemos. Não foi necessário. Serenamente, ela propôs que puséssemos uma pedra no passado recente e que retomássemos nosso casamento, mais que isso, nossa história de amor.
Na mesma noite peguei minhas coisas no hotel e rumamos para uma pousada em uma praia num município litorâneo próximo. Jurei para ela, mas, principalmente para mim mesmo, que jamais a deixaria novamente.
Retomamos o casamento, o cotidiano e também os sonhos. Voltamos ao mapa da Escócia. Encontramos mais cidadezinhas com nomes estranhos, próximas da Islândia e do Pólo Norte. Começamos a comprar libras e a economizar dinheiro. Passamos a trabalhar e a fazer planos unicamente em prol da viagem para a Ilha do Fim do Mundo. Clarissa sugeriu que, se nos apaixonássemos pelo lugar, fizéssemos planos de morar lá definitivamente. Talvez comprar uma pousada. E vivermos de amor, cerveja preta, rosbife, livros e músicas. O que mais da vida eu poderia pedir?
Tudo isso que relato aconteceu há alguns anos. Hoje, moro em Ullapool, uma cidadezinha bem ao norte da Escócia, como se saída de um conto de fadas. Trabalho em um pub local, servindo cervejas. Todos são educados e gentis comigo e me chamam de The solitary man, por razões que o apelido, em inglês, explica por si só e que sintetiza minha vida e o que ela será para sempre.
Quanto a Clarissa? Morreu em um acidente de trânsito na avenida principal da cidade. Voltava para casa com uma pizza e duas garrafas de vinho no banco de trás do carro e nossas passagens para Londres e conexão para Glasgow no porta luvas do carro. Era o nosso sonho materializado, porém, destruído pela precipitação de um motorista de caminhão que tentou uma ultrapassagem arriscada e desnecessária. Ele fugiu sem prestar socorro, após o acidente. Espero sinceramente que tenha ido para o inferno e que lá permaneça por várias eternidades. Meu consolo é que Clarissa não sofreu, tendo morrido na hora e, segundo a médica que atendeu, com um estranho sorriso nos lábios. Após a tragédia, queimei uma das passagens aéreas juntamente com os mapas, guias de viagens e informações sobre a Escócia. Em seguida, vendi tudo que tinha e rumei para as terras frias – onde estou até hoje – para conhecer a Ilha do Fim do Mundo, ver seus lagos, seus castelos, suas montanhas, por mim e por Clarissa. Coisa que faço todo dia. Até a hora sagrada em que terei de morrer, aqui nesta Ilha do Fim do Mundo onde encontro Clarissa todos os dias e de onde não sairei jamais...

Um comentário:

Cláudia Magalhães disse...

Lindo, amor meu!

Triste e cheio de ternura. Tão doce...

Te amo. Beijos e queijos e... muita admiração!