23 dezembro 2008

Em sonhos


Cefas Carvalho


In dreams I walk with you
In dreams I talk to you
(Roy Orbison em In dreams)



Molhado de suor, acordou de repente e ouviu aquela música lenta e repetitiva, como um mantra, e pensou que ainda estava sonhando. Percebeu, após alguns segundos, que o som vinha do CD Player, que deixara ligado. Levantou-se a contragosto e desligou o som. Aproveitou que estava de pé e arrastou-se sonambulamente até a cozinha, para beber um copo de água bem gelada. Não resistiu a um gole de Coca-Cola, bebida na garrafa, e retornou ao quarto. Tinha medo de não dormir e ao mesmo tempo, medo de dormir. Dormir significava esquecer... mas também significava sonhar, e nos últimos tempos seus sonhos eram, assim como a música, lentos e repetitivos.
O sonho era basicamente a presença dela, primeiro surgindo do nada, quase dançando, como uma Isadora Duncan etérea e irreal. Depois ela falava alguma coisa... mas ele não conseguia ouvi-la. Sabia que ela falava seu nome, podia ler seus lábios, mas o restante da mensagem lhe era misterioso, como se ela falasse uma língua estranha e há muito morta.
Por fim ela se aproximava dele e lhe beijava, suavemente, como em um balé. Ele desejava segurá-la junto a ele, mas, por alguma razão, não conseguia fazê-lo. Ela inevitável que ela se fosse. Para algum lugar misterioso e obscuro onde sua entrada não era permitida. E então ele acordava, banhado de suor, mesmo com o ar condicionado ligado na potência máxima.
Em outro sonho, quase a mesma coisa acontecia, com a diferença que a entrada dela era antecedida pela presença de um palhaço, se fazendo de mestre de cerimônias. Um palhaço colorido, mas pouco alegre, na verdade, triste em sua maquiagem desbotada e a lágrima pintada que lhe caía do olho esquerdo. Em uma linguagem exótica, como se usando de palavras arcaicas ou com um sotaque estranho, ele anunciava a entrada dela, que vinha, dançarina esvoaçante, lhe beijava e partia.
Havia um terceiro sonho, na qual ela e o palhaço chegavam juntos, e passavam vários minutos rindo descaradamente dele. Em seguida ela contraía o rosto como se arrependida e lentamente se aproximava dele, enquanto o palhaço ia sendo tragado pelas sombras. Ela o beijava suavemente e, com passos de dança, retornava para de onde veio e onde não era permitido a ele sequer avistar.
Aquela noite estava tão desesperada quanto as noites anteriores, como sempre era desde que ela se fora. Mas, resolveu enfrentar seus próprios sonhos. Decidiu que tentaria dormir, ajudado pelos comprimidos de sempre, e, uma vez sonhando, não apenas enfrentaria o palhaço triste como seguiria a amada até o reino das sombras para onde ela mergulhava.
Demorou a dormir. Cantou lentamente diversas músicas, assobiou, olhou pela janela a noite cinzenta que se fazia, ridiculamente contou carneirinhos, até que a soma de fazer tantas coisas e ao mesmo tempo nada fazer o levou ao mundo do sono.
Sonhou, como quase sempre, que o palhaço chegava. Contudo, conscientemente, resolveu nada fazer com ele. Queria esperar a chegada dela. O palhaço cantou alguma magia em alguma língua e por fim ela chegou, cheia de véus transparentes, um girassol nos cabelos, etérea e inalcançável. Fechou os olhos á espera do que aconteceria. Sentiu a respiração quente dela e anteviu o beijo suave que ela lhe daria. Recebeu o beijo como quem recebe uma benção e assistiu à sua lenta partida, em passos de balé. Subitamente, reagindo contra as leis daquele sonho, conseguiu fazer com que as pernas andassem e correu para ela. Percebeu o palhaço, com um olhar assustado caminhar em sua direção. Inútil. Com um movimento rápido, forte e inesperado, golpeou-o com a mão direita fechada e assistiu a sua queda sangrenta no chão.
Ela abriu uma cortina negra, feita de sombras e entrou. Ele, a um passo dela, fez a mesma coisa e entrou em algo que parecia uma caverna negra, um mundo infernal. Não conseguia vê-la, mas sabia que ela estava lá. De repente, ouviu ela falando algo que aos seus ouvidos pareceu uma prece: não me abandone jamais...
Acordou, então, suado, com um grito dele próprio. Demorou alguns segundos para perceber que estava lacrimando e dificilmente foi ao banheiro lavar o rosto. Sentou-se no sofá da sala e chorou copiosamente. Pensou em telefonar para ela, mesmo sendo de madrugada. Pensou em dar cabo da própria vida, como talvez fosse melhor, desde que ela se fora e sua vida mergulhara naquela sequência de sonhos e tristezas.
Pegou o celular e discou o número dela. Tocou cinco vezes até que atenderam. Para seu espanto e sua dor, ouviu do outro lado da linha a voz do palhaço triste a debochar de sua dor...
Molhado de suor, acordou de repente e ouviu aquela música lenta e repetitiva, como um mantra, e pensou que ainda estava sonhando. Percebeu, após alguns segundos, que o som vinha do CD Player, que deixara ligado. Aliás, que a esposa deixara ligado. Olhou para o lado e viu a amada dormindo, respirando pesadamente e com o lençol abraçado ao rosto. Levantou-se e desligou a música. Foi até a cozinha onde viu na mesa os pratos com os restos de atum com ervas que jantaram na noite anterior. Depois fizeram amor como havia muito não faziam e dormiram nos braços um do outro. O estranho era sonhar todas as noites o mesmo sonho: que havia sido abandonado pela amada e que ao dormir sonhava com um palhaço triste e uma dançarina enevoada. Comentara isso com a amada que sorrira: isso é medo de me perder... é normal sentir isso quando se ama, porque eu também tenho medo de te perder...
Ele sorriu para ele mesmo, abriu a geladeira e bebeu um copo de leite gelado. Em seguida aninhou-se ao lado da amada para dormir.

16 dezembro 2008

Feliz Natal em junho ou dezembro!


Cefas Carvalho

Este escrevinhador leu nos blogs que um astrônomo australiano pode ter descoberto que o nascimento de Jesus não teria acontecido em dezembro e sim em junho. E dois anos antes do que se pensava. De acordo com Dave Reneke, a "estrela de Natal" que, segundo a Bíblia, teria guiado os Três Reis Magos até a Manjedoura, em Belém, não apenas teria aparecido no céu seis meses mais cedo.
O astrônomo explica que a conclusão é fruto do mapeamento dos corpos celestes da época em que Jesus nasceu. O rastreamento foi possível a partir de um software que permite rever o posicionamento de estrelas e planetas há milhares de anos.
Baseando-se no Evangelho de Mateus, que descreve a aparição de uma "estrela" como sinal do nascimento de Jesus, Reneke identificou a conjunção dos planetas Vênus e Júpiter, que teriam emitido uma forte luz que poderia ter sido confundida com uma estrela. "Vênus e Júpiter chegaram muito perto no ano 2 a.C refletindo muita luz. Não podemos dizer com certeza que esta era a estrela de Natal descrita na Bíblia, mas até agora esta é a explicação mais plausível que já vi sobre isso", disse Reneke à BBC Brasil.
A notícia não mexeu muito comigo, ateu iconoclasta que sou. Mas, diverti-me sozinho pensando que o cristianismo ocidental pode estar há dois mil anos comemorando o Natal na data errada.
Há muito já desmistifiquei a festa de natal. Não pretendo ultrajar os amigos cristãos que vêem na data o momento de pensar em Cristo e na fraternidade universal. Tampouco quero estragar a ansiedade dos filhos e da amada, à espera dos presentes de natal. Não, nada disso. Respeito a opinião dos amigos e como quase todos, troco presentes na noite natalina e me farto com a ceia de natal. Só não acredito que a data sirva para qualquer tipo de reflexão ou de transformação. Assim como datas cívicas (Dia da Independência, Proclamação da República) não fazem ninguém refletir sobre a nação, mas sim proporcionam um belo churrasco ou ir a praia com a família, que ninguém é de ferro.
Se o astrônomo tiver razão, que celebremos o nascimento de Jesus em junho. Tudo bem que na Europa e nos EUA não é época de inverno e neve, portanto, toda a mística do natal gelado e com trenó do Papai Noel iria por água abaixo.
Em julho ou em dezembro, como sempre foi, o natal é uma bela festa e serve, sim, para congregar a família, rever os amigos e sermos todos um pouquinho mais felizes, como é válido. Só não venham me dizer que a data é para refletir sobre o nascimento do menino Jesus, pobre e sofrido em uma manjedoura. É uma hipocrisia light, feita sob encomenda para nos sentirmos menos culpados. Ninguém pensa no menino Jesus ou nas crianças pobres de Felipe Camarão enquanto se farta com tender e bacalhau e se enche de vinho. Infelizmente. E feliz natal para todos nós.

10 dezembro 2008

"Ela vestia veludo azul..."


Cefas Carvalho


Tive minha vida mudada por um filme. É certo que livros, músicas, bandas de rock também mudaram minha vida, de uma forma ou de outra, mas neste texto falaremos de cinema. Cinéfilo desde a pré-adolescência, daqueles de adorar a magia da projeção cinematográfica, como o menino Totó de “Cinema Paradiso”, poderia listar uma penca de filmes que me encantaram e me impressionaram. Contudo, foi “Veludo azul” o filme que mudou efetivamente minha forma de ver o cinema, de ver a vida em geral e a minha própria vida. Porém, não se trata do filme da minha vida (que é “Verão de 42”) nem o que mais vezes assisti (“Jesus Cristo Superstar”, que vi 19 vezes contadas, cantadas e catalogadas). Tudo bem que assistir “Hair”, em 1988, foi uma espécie de revelação divina e o filme foi responsável direto por eu deixar crescer os cabelos nos anos dourados da juventude, mas nesta altura “Veludo azul” já tinha feito minha cabeça.
A paixão começou nos idos de 1986, quando, adolescente tímido recém chegado no Rio de Janeiro, passava boa parte do meu tempo assistindo filmes, fosse na TV (nos bons tempos em que a Rede Globo exibia clássicos à noite), vídeo-cassete e cinema. Na tela grande, gostava de filmes bem hollywoodianos, tipo “Passagem para a Índia” e “Amadeus”, sucessos à época. Mas, nas resenhas dos cadernos culturais dos jornais os críticos só falavam de um tal “Veludo Azul”, do americano David Lynch, que era instigante, macabro, melhor filme do ano etc. Bateu a curiosidade de assisti-lo, claro, mas deparei com um problema: a censura do filme - sim ela existia naquele tempo e era razoavelmente rigorosa - era 18 anos. Eu mal contava dezesseis. Preferi não arriscar ser barrado no cinema e convenci papai e ir comigo, me autorizando para o bilheteiro a entrar. Lá fomos nós em uma tarde de sábado na sala 1 do finado (tornou-se uma sede da Igreja Universal...) Cine Lido, na Praia do Flamengo. Entrei na sala como uma pessoa e duas horas depois, saí outra.
Tudo me encantou e me impressionou no filme. Papai pouco se impressionou com o filme e até cochilou uma meia hora - velho hábito dele - na sala de projeção. Para quem desgraçadamente não viu o filme, um resumo: a trama é extremamente simples. Jeffrey (Kyle McLaughan, alter-ego e sósia do diretor) vive uma existência pacata naquelas cidadezinhas insípidas dos Estados Unidos quando de repente encontra uma orelha em um jardim. A partir deste fato corriqueiro, ele trava contato com a bela e misteriosa Dorothy (Isabela Rosselini) e com o perigoso Frank (Dennis Hopper, espetacular!) e se envolve com pessoas e situações que mostram a ele que o mundo não era exatamente cor de rosa como ele pensava.
Em suma, a experiência que Jeffrey viveu na trama, vivi durante a exibição do filme. Ao se acenderem as luzes eu tinha certeza que, como Jeffrey, jamais veria o mundo da mesma forma. Como diz a namorada de Jeffrey (Laura Dern) em uma cena, “este é um estranho mundo”.
E coisas estranhas não faltam no filme: um vilão que respira gás hélio e chora com músicas antigas, um travesti dublando Roy Orbison, perversões sexuais, gente morta em pé, como um abajur... uma série de bizarrices tão comuns que evocam Caetano Veloso: “de perto, ninguém é normal”.
Há a trilha sonora... está gravada no HD da minha mente a cena em que Isabella Rosselini canta o clássico “Blue velvet” aos sussurros, na boate... “she wore blue velvet, bluer than velvet was her eyes…” E Dean Stockwell dublando “In dreams” do mestre Roy Orbison? E o uso da belíssima “Love letters”? Mas nada se compara ao cinismo agridoce da cena final, um pastiche de final feliz com Julee Cruise - cantora fetiche de Lynch - cantando a macabra “Mysteries of Love”. Seria impossível eu sair imune a tal filme. Não saí. Tanto que no dia seguinte comecei a abandonar - embora não totalmente - os dramas tradicionais de Hollywood e adentrar no terreno pantanoso de Scorcese, Woody Allen, Jim Jarmush, à procura de sensações como a que “Veludo azul” me proporcionou. Daí para mergulhar no universo de Bergman, Almodóvar,Pasolini, Saura e Scola foi um passo. E adeus dramas lacrimosos com Sally Field e Sissy Speacek. E adeus filmes como “Robocop” e “Os Goonies”. Passei a economizar meus trocados para descobrir filmes estranhos nos cineclubes.
Quatro anos depois, David Lynch faria mais um filme que se inscreveria a fogo em minh´alma: “Coração selvagem”, um on the road maluco com Nicholas Cage e Laura Dern, músicas de Elvis Presley, sangue a rodo e uma estética alucinada. Assisti ao longa sozinho, em um cinema vazio e sujo em São Paulo, com a consciência que aquele filme também mudaria minha vida. Mudou, mas aí já seria uma outra história. Lynch continuaria agradando aos devotos com a série “Twin Peaks”, que para quem não se lembra mudou a história da televisão americana e filmes como “A estrada perdida” e “Mullholland drive - Cidade dos Sonhos”. Filmes sem pé nem cabeça e sem lógica, mas, que diabos, quem precisa de lógica na vida ou no cinema? Assistir a um filme de Lynch é uma experiência extra-sensorial. Nem todos gostam, é claro. Mas, quem vai ver um filme de Lynch é bom saber que vai adentrar um universo alucinado, pessoal e surreal. Este ano ele lançou nos EUA e na Europa seu mais novo filme, “Inland Empire”, que dificilmente chegará nestas terras cinematográficas tomadas por Piratas e Aracnídeos e comédias americanas cretinas. Enquanto isso, resta aos lynchmaníacos, espécie de confraria de gente que não bate muito bem da bola (alô, Rosa Williams!) e que sabe que o mundo real não é este que vemos, rever toda a cinematografia do cineasta mais esquisito do mundo. Afinal, she wore blue velvet...

05 dezembro 2008

Deixem o Tom fumar em paz


Cefas Carvalho


Torturar, fatiar, eletrocutar, agredir, esfaquear, esbofetear, trair, enrolar, pode! Fumar não pode. Esta é a conclusão a que este escrevinhador forçosamente chegou ao ler em um site uma informação bizarra: o desenho animado de Tom e Jerry, que fez a minha alegria na infância e a de onze em cada dez crianças de várias gerações, vem sendo duramente criticado na Inglaterra depois que um espectador telefonou para o Ofcom (órgão regulador da programação de TV no país) reclamando que o gato Tom costuma fumar, e isso representava um péssimo exemplo para as crianças.
Efetivamente no episódio "Texas Tom", o gato azarado tenta impressionar uma gatinha enrolando um cigarro, acendendo-o e fumando-o com uma mão. No outro episódio, o "Tennis Chumps", o adversário de Tom fuma um grande charuto. Resultado: em boletim publicado em seu website, a Ofcom apontou preocupações de que fumar na televisão possa influenciar a esse hábito. A empresa que licencia o desenho concordou em editar algumas cenas de fumo de Tom e Jerry. Quem diria, Tom e Jerry censurados e com cenas cortadas em um país democrático e em pleno século 21!
Mas, o curioso é perceber que o mesmo espectador que tanto se ofendeu com o cigarro do felino não se importou com toda a violência do desenho. Sim, pois Tom e Jerry, ao lado do Papa Léguas, é um manual quase didático de como impingir dor e sofrimento a um inimigo. Já assisti a Tom ser retalhado, esquartejado, torrado, agredido com bigornas, ter os dentes quebrados um a um, sempre pelo rato Jerry que o faz com um sádico sorriso e sem nenhum resquício de culpa. O curioso é que eu não lembrava de ter assistido aos episódios que Tom fuma cigarros. Devo ter assistido, mas nem por isso comecei a fumar.
Da mesma forma, também adorava Tom e Jerry nem por isso retalhei ou carbonizei minhas irmãs e meus amigos. Ah, e também ouvi muito heavy metal quando adolescente, em especial Iron Maiden e Metallica, meus preferidos nesta seara. A obra prima do Iron Maiden é "666-the number of the beast" (666 – o número da besta), que evidentemente fala sobre o demônio, ou como queria mestre Guimarães Rosa, o cramulhão, o capiroto, o tinhoso. Bem, o fato é que embora ouvisse a música com razoável freqüência, nem por isso adentrei nos caminhos de adoração do demo. O politicamente correto é positivo porque luta pela cidadania e defende os direitos das minorias, mas tem lá seus exageros. Desenho animado não influencia criança alguma. Nem os mais violentos tipo Papa Léguas, nem os alucinados tipo Pokemon e nem os edificantes e mimosos como Bambi, Cinderela ou Pocahontas. Criança alguma fica boazinha ou adentra os caminhos da maldade com base em desenhos animados. Animação só diverte, mesmo com excessos. Discutir a qualidade dos desenhos é outra coisa. E neste aspecto, convenhamos que Tom e Jerry são dos melhores. Deixem o pobre Tom fumar em paz!