Cefas Carvalho
Essa história aconteceu há muito tempo, mas, somente agora, ganhei forças para contá-la.
Nascido em Pendências, mas órfão de pai e mãe desde a infância,
fui criado em Natal, mais exatamente em uma tranqüila rua do Alecrim por
minha tia Lucia e por seu marido, que eu chamava de Tio Baltasar. Ele,
coitado, morreu de cirrose no dia do meu aniversário de quinze anos.
Minha tia passou a ser minha única referência afetiva e vice-versa.
Jamais tive o que me queixar dela ou da vida. Fui bem criado, estudei em
ótimas escolas, entrei na universidade e por fim formei-me em Educação
Física.
Incentivado por tia Lucia, fui fazer um curso de um mês
em Recife sobre técnicas desportivas. Foi na capital pernambucana,
porém, que recebi a noticia que tia Lucia havia morrido, vítima de
infarto. Confesso que viajei chorando durante as quatro horas de ônibus
que separam Recife de Natal.
No enterro, no Cemitério do
Alecrim, poucos parentes, uma e outra amiga e eu, me sentindo pela
primeira vez sozinho no mundo. Após todos irem embora, ainda fiquei um
bom tempo a olhar para os túmulos e mausoléus, até que o zelador
gentilmente me mandou embora, advertindo que era hora de fechar.
No dia seguinte voltei ao cemitério. Depositei mais flores no túmulo
de minha tia. Sem que ninguém me visse – era proibido fumar ali, me
dissera o zelador – acendi um cigarro a vagar pelas ruas no cemitério.
Tantos anos morando no Alecrim e eu jamais entrara ali até então,
afinal, meu tio fora enterrado no interior e nenhum conhecido ou amigo
jamais fora sepultado naquele solo.
Na segunda semana sem tia
Lucia, trabalhando em uma escola apenas de manhã e com a tarde e noite
livres, passei a dedicar mais tempo a pensar na morte em si do que na
perda específica da minha tia. Não sentia vontade de sair ou beber com
os amigos, e tampouco estava atrás de companhia feminina, posto que
havia terminado um longo namoro havia alguns meses. Também comecei a ir
três vezes por semana ao cemitério, ambiente que me parecia cada vez
mais familiar. Fiz amizade com o zelador, os funcionários. Conheci a
administradora do local, dona Lenilde. O cemitério tem o poder de
convidar à reflexão e mais que morbidez a visão de tantas pessoas que se
foram me trazia uma estranha espécie de paz, em lugar de repulsa ou
morbidez.
Em uma dessas tardes, passeava pelos túmulos, contemplando
alguns imponentes, como o de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão,
quando de repente avistei uma jovem na minha frente, a me olhar como se
eu estivesse fazendo algo errado.
- Estou observando você há alguns dias...-sorriu
- É, eu estou vindo aqui com freqüência respondi, atordoado com a abordagem.
- Eu também gosto muito daqui. É calmo, tranqüilo, tão diferente do mundo...
- Você mora aqui no Alecrim?
- Exatamente.
- Qual seu nome?
- Aurélia – sorriu. Um sorriso doce, sereno. Reparei então na
menina, de longos cabelos castanhos se derramando pelo vestido azul
claro. Os olhos, imensos, vivos, fixos em mim. Deveria ter entre dezoito
e vinte anos. Bela como poucas eu tinha visto.
- Bem, vou te
deixar na sua caminhada. Até logo – sorriu, se afastando. Tentei falar
algo para impedi-la de ir, mas as palavras não saíram. Pensei em rodar
pelas ruas do cemitério, que afinal não era tão grande assim, mas
desisti. Voltei para casa com uma sensação estranha, de quem deixou para
trás algo importante.
Passei boa parte da noite pensando na menina. Aurélia, lembrei do nome.
No
dia seguinte, retornei ao cemitério. Talvez nem tanto para prantear
sobre o túmulo de tia Lucia, mas para procurar Aurélia. Não foi difícil
encontra-la. Passeava entre os túmulos, como se o local fosse um parque,
não um cemitério.
- Boa tarde.
- Boa tarde, Aurélia.
- Lembra meu nome...
- Claro. Como poderia esquecer? – sorri. Ela perguntou o meu – Carlos – o que não fizera no dia anterior.
- Gosto daqui – comentou com ar triste – Acho que já me acostumei
- Qual a sua idade?
- Quantos anos você me dá
- Vamos ver...dezoito?
- Errou...- disse, após certa hesitação. Eu estava certo que ela tinha dezoito.
- Vou tentar novamente...dezenove?
- Errou de novo. Mas desista, não vou dizer minha idade...
- Está bem, você manda.
- Vamos passear pelo cemitério? – indagou. Eu já o fizera tantas
vezes sozinho naqueles dias tristes...Que bom seria faze-lo com uma
mulher linda pela qual eu estava fascinado.
Pelas ruas do local,
contemplamos os imponentes mausoléus familiares, vimos os túmulos dos
judeus, com inscrições em hebraico...Aurélia me levou também para os
túmulos dos três soldados ingleses que morreram no oceano, em 1944,
durante a 2º Guerra Mundial e que foram sepultados em solo natalense.
- Todos os anos as famílias e oficiais ingleses vem aqui no cemitério
rezar pelas almas deles e limpar os túmulos. Pode observar que são dos
mais conservados deste cemitério... – explicou. Fiquei impressionado com
seu conhecimento do local. Algo mórbido, sem dúvida, mas todo mundo
tinha algo de louco. Das mulheres que eu conhecera até então quantas não
tinham hábitos mais estranhos que os de Aurélia?
Por fim, andando
por uma rua solitária, entre túmulos mal conservados, paramos
subitamente, como se tivéssemos combinado. Olhei-a com atenção, enquanto
sentia meu coração disparar.
- O que foi? - perguntou
- Você é muito linda... – respondi. Não precisamos de mais nada para
nos enlaçarmos em um beijo. Assim ficamos por um bom tempo, sem
palavras. Apenas os lábios e os braços em movimento.
- Está na hora de eu ir... – comentou, vendo que já estava anoitecendo
- Eu te deixo em casa
- Negativo. Você vai, e eu fico. Depois vou para casa.
- Por que isso?
- Eu quero assim.
- Mas eu quero te ver.
- Você vai me ver. Mas, aqui.
- Por que? Não consigo entender.
- Não precisa entender, basta concordar. Amanhã á tarde aqui mesmo, está bem, meu amor?
Como resistir? Concordei com aquela maluquice. Fui para casa
meio apaixonado meio aborrecido. Por um lado, estava enfeitiçado por
aquela mulher, por aqueles beijos...Por outro pensava se ela não queria
me fazer de palhaço. Teria ela se comportado da mesma forma com outros
homens? Seria uma tara dela querer se encontrar apenas no cemitério?
De
qualquer maneira, no dia seguinte lá estava eu no cemitério. Estava
acontecendo um sepultamento, portanto, de início não consegui
encontra-la com o fluxo de pessoas. Por fim, na rua colada ao muro da
rua Rafael Fernandes, bem próxima ao mausoléu da Liga Operária
Norte-riograndense, encontrei a minha Aurélia.
Durante duas horas
praticamente só nos beijamos e trocamos palavras de carinho. Mas, eu
estava decidido a dar um rumo novo à nossa história.
- Vamos ao cinema,
- Não quero.
- Para onde você quer ir? Basta dizer que iremos.
- Quero ficar aqui mesmo
- Mas Aurélia...
Ela começou a lacrimar... – Quero que goste de mim do jeito que sou... – murmurou.
Como não ceder? Ficamos lá, entre os túmulos e fugindo do olhar
desconfiado e vigilante do zelador. Ao ir embora –sozinho – pensei em
ficar de tocaia na porta do cemitério e segui-la quando saísse, mas
fiquem temerosos de ser flagrado e envergonhado de minha baixeza, fui
para casa. Passamos a nos encontrar no cemitério. Em duas semanas, foram
pelo menos seis encontros. Era estranho, admito, e parece absurdo, mas
eu estava feliz, e quando se está feliz, tudo parece normal. Imaginei
que ela tivesse vergonha de sua família, com um pai alcoólatra ou coisa
parecida. Poderia ser também que fosse muito humilde e não quisesse que
eu visse onde morava. Seja como for, decidi que enquanto eu estivesse me
sentindo bem com a situação, não forçaria a barra. Um dia ela vai
querer ir a um cinema, à praia, e então poderemos viver como um casal
normal, pensei.
Contudo, em uma tarde algo nublada, fui ao
cemitério e Aurélia não apareceu no local combinado, em frente ao túmulo
de João Câmara. Esperei por uma, duas, três horas, até o cemitério
fechar, e nada. Andei a esmo pelas ruas em volta do cemitério, entrei em
bares, procurei em paradas de ônibus e nada. Voltei para casa com uma
tristeza sólida sobre a minha cabeça.
No dia seguinte, lá estava eu
de volta ao cemitério. Andei pelas ruas e nada. Até que, próximo à
capela, encostei-me em um tumulo deteriorado e coloquei as mãos nos
olhos. Fui despertado deste breve transe por um funcionário do
cemitério, um rapaz alto que eu sempre via mas jamais havia trocado duas
palavras. – Tudo bem com o senhor? – perguntou.
- Mais ou menos – respondi.
- Eu posso ajudar em alguma coisa?
- Na verdade, não. Estou esperando uma menina...
- Se é para visitar algum túmulo, eu até posso ajudar a
encontra-la. Se for para namorar, como tantos aqui tentam fazer, o
zelador não vai gostar nada disso.
- Bem, eu fico até sem
jeito, mas é quase isso... – confessei. Ansioso para contar minha
história insólita para alguém, resolvi fazer daquele trabalhador meu
cúmplice. Relatei minha história com detalhes, e no fim, olhei-o como se
pedindo uma solução.
- Eu moro aqui na Ary Parreiras desde moleque
e conheço quase todo mundo por aqui. Qual é o nome da menina? Se ela
morar por essas bandas eu devo conhecer.
- O nome dela é Aurélia. Aurélia Galvão Barreto, se não me engano.
- Aurélia Galvão Barreto? – assustou-se - Você está maluco, homem?
- Por quê?
- Olhe para o seu lado, homem e deixe fazer brincadeiras para
me apavorar - Você está encostado justamente no túmulo de Aurélia Galvão
Barreto. Ela morreu em 1932, aos dezoito anos, em um incêndio aqui
mesmo no Alecrim...
Quais países usam o cedilha?
-
[image: Quais países usam o cedilha?]
O cedilha é um característico símbolo da língua portuguesa, mas poucos
sabem que ele também é utilizado em outras l...
Há 18 horas
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