20 setembro 2012

Perfis de mulher: Aurélia, a menina do cemitério

Cefas Carvalho

Essa história aconteceu há muito tempo, mas, somente agora, ganhei forças para contá-la.
Nascido em Pendências, mas órfão de pai e mãe desde a infância, fui criado em Natal, mais exatamente em uma tranqüila rua do Alecrim por minha tia Lucia e por seu marido, que eu chamava de Tio Baltasar. Ele, coitado, morreu de cirrose no dia do meu aniversário de quinze anos. Minha tia passou a ser minha única referência afetiva e vice-versa. Jamais tive o que me queixar dela ou da vida. Fui bem criado, estudei em ótimas escolas, entrei na universidade e por fim formei-me em Educação Física.
Incentivado por tia Lucia, fui fazer um curso de um mês em Recife sobre técnicas desportivas. Foi na capital pernambucana, porém, que recebi a noticia que tia Lucia havia morrido, vítima de infarto. Confesso que viajei chorando durante as quatro horas de ônibus que separam Recife de Natal.
No enterro, no Cemitério do Alecrim, poucos parentes, uma e outra amiga e eu, me sentindo pela primeira vez sozinho no mundo. Após todos irem embora, ainda fiquei um bom tempo a olhar para os túmulos e mausoléus, até que o zelador gentilmente me mandou embora, advertindo que era hora de fechar.
No dia seguinte voltei ao cemitério. Depositei mais flores no túmulo de minha tia. Sem que ninguém me visse – era proibido fumar ali, me dissera o zelador – acendi um cigarro a vagar pelas ruas no cemitério. Tantos anos morando no Alecrim e eu jamais entrara ali até então, afinal, meu tio fora enterrado no interior e nenhum conhecido ou amigo jamais fora sepultado naquele solo.
Na segunda semana sem tia Lucia, trabalhando em uma escola apenas de manhã e com a tarde e noite livres, passei a dedicar mais tempo a pensar na morte em si do que na perda específica da minha tia. Não sentia vontade de sair ou beber com os amigos, e tampouco estava atrás de companhia feminina, posto que havia terminado um longo namoro havia alguns meses. Também comecei a ir três vezes por semana ao cemitério, ambiente que me parecia cada vez mais familiar. Fiz amizade com o zelador, os funcionários. Conheci a administradora do local, dona Lenilde. O cemitério tem o poder de convidar à reflexão e mais que morbidez a visão de tantas pessoas que se foram me trazia uma estranha espécie de paz, em lugar de repulsa ou morbidez.
Em uma dessas tardes, passeava pelos túmulos, contemplando alguns imponentes, como o de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, quando de repente avistei uma jovem na minha frente, a me olhar como se eu estivesse fazendo algo errado.
- Estou observando você há alguns dias...-sorriu
- É, eu estou vindo aqui com freqüência respondi, atordoado com a abordagem.
- Eu também gosto muito daqui. É calmo, tranqüilo, tão diferente do mundo...
- Você mora aqui no Alecrim?
- Exatamente.
- Qual seu nome?
- Aurélia – sorriu. Um sorriso doce, sereno. Reparei então na menina, de longos cabelos castanhos se derramando pelo vestido azul claro. Os olhos, imensos, vivos, fixos em mim. Deveria ter entre dezoito e vinte anos. Bela como poucas eu tinha visto.
- Bem, vou te deixar na sua caminhada. Até logo – sorriu, se afastando. Tentei falar algo para impedi-la de ir, mas as palavras não saíram. Pensei em rodar pelas ruas do cemitério, que afinal não era tão grande assim, mas desisti. Voltei para casa com uma sensação estranha, de quem deixou para trás algo importante.
Passei boa parte da noite pensando na menina. Aurélia, lembrei do nome.
No dia seguinte, retornei ao cemitério. Talvez nem tanto para prantear sobre o túmulo de tia Lucia, mas para procurar Aurélia. Não foi difícil encontra-la. Passeava entre os túmulos, como se o local fosse um parque, não um cemitério.
- Boa tarde.
- Boa tarde, Aurélia.
- Lembra meu nome...
- Claro. Como poderia esquecer? – sorri. Ela perguntou o meu – Carlos – o que não fizera no dia anterior.
- Gosto daqui – comentou com ar triste – Acho que já me acostumei
- Qual a sua idade?
- Quantos anos você me dá
- Vamos ver...dezoito?
- Errou...- disse, após certa hesitação. Eu estava certo que ela tinha dezoito.
- Vou tentar novamente...dezenove?
- Errou de novo. Mas desista, não vou dizer minha idade...
- Está bem, você manda.
- Vamos passear pelo cemitério? – indagou. Eu já o fizera tantas vezes sozinho naqueles dias tristes...Que bom seria faze-lo com uma mulher linda pela qual eu estava fascinado.
Pelas ruas do local, contemplamos os imponentes mausoléus familiares, vimos os túmulos dos judeus, com inscrições em hebraico...Aurélia me levou também para os túmulos dos três soldados ingleses que morreram no oceano, em 1944, durante a 2º Guerra Mundial e que foram sepultados em solo natalense.
- Todos os anos as famílias e oficiais ingleses vem aqui no cemitério rezar pelas almas deles e limpar os túmulos. Pode observar que são dos mais conservados deste cemitério... – explicou. Fiquei impressionado com seu conhecimento do local. Algo mórbido, sem dúvida, mas todo mundo tinha algo de louco. Das mulheres que eu conhecera até então quantas não tinham hábitos mais estranhos que os de Aurélia?
Por fim, andando por uma rua solitária, entre túmulos mal conservados, paramos subitamente, como se tivéssemos combinado. Olhei-a com atenção, enquanto sentia meu coração disparar.
- O que foi? - perguntou
- Você é muito linda... – respondi. Não precisamos de mais nada para nos enlaçarmos em um beijo. Assim ficamos por um bom tempo, sem palavras. Apenas os lábios e os braços em movimento.
- Está na hora de eu ir... – comentou, vendo que já estava anoitecendo
- Eu te deixo em casa
- Negativo. Você vai, e eu fico. Depois vou para casa.
- Por que isso?
- Eu quero assim.
- Mas eu quero te ver.
- Você vai me ver. Mas, aqui.
- Por que? Não consigo entender.
- Não precisa entender, basta concordar. Amanhã á tarde aqui mesmo, está bem, meu amor?
Como resistir? Concordei com aquela maluquice. Fui para casa meio apaixonado meio aborrecido. Por um lado, estava enfeitiçado por aquela mulher, por aqueles beijos...Por outro pensava se ela não queria me fazer de palhaço. Teria ela se comportado da mesma forma com outros homens? Seria uma tara dela querer se encontrar apenas no cemitério?
De qualquer maneira, no dia seguinte lá estava eu no cemitério. Estava acontecendo um sepultamento, portanto, de início não consegui encontra-la com o fluxo de pessoas. Por fim, na rua colada ao muro da rua Rafael Fernandes, bem próxima ao mausoléu da Liga Operária Norte-riograndense, encontrei a minha Aurélia.
Durante duas horas praticamente só nos beijamos e trocamos palavras de carinho. Mas, eu estava decidido a dar um rumo novo à nossa história.
- Vamos ao cinema,
- Não quero.
- Para onde você quer ir? Basta dizer que iremos.
- Quero ficar aqui mesmo
- Mas Aurélia...
Ela começou a lacrimar... – Quero que goste de mim do jeito que sou... – murmurou.
Como não ceder? Ficamos lá, entre os túmulos e fugindo do olhar desconfiado e vigilante do zelador. Ao ir embora –sozinho – pensei em ficar de tocaia na porta do cemitério e segui-la quando saísse, mas fiquem temerosos de ser flagrado e envergonhado de minha baixeza, fui para casa. Passamos a nos encontrar no cemitério. Em duas semanas, foram pelo menos seis encontros. Era estranho, admito, e parece absurdo, mas eu estava feliz, e quando se está feliz, tudo parece normal. Imaginei que ela tivesse vergonha de sua família, com um pai alcoólatra ou coisa parecida. Poderia ser também que fosse muito humilde e não quisesse que eu visse onde morava. Seja como for, decidi que enquanto eu estivesse me sentindo bem com a situação, não forçaria a barra. Um dia ela vai querer ir a um cinema, à praia, e então poderemos viver como um casal normal, pensei.
Contudo, em uma tarde algo nublada, fui ao cemitério e Aurélia não apareceu no local combinado, em frente ao túmulo de João Câmara. Esperei por uma, duas, três horas, até o cemitério fechar, e nada. Andei a esmo pelas ruas em volta do cemitério, entrei em bares, procurei em paradas de ônibus e nada. Voltei para casa com uma tristeza sólida sobre a minha cabeça.
No dia seguinte, lá estava eu de volta ao cemitério. Andei pelas ruas e nada. Até que, próximo à capela, encostei-me em um tumulo deteriorado e coloquei as mãos nos olhos. Fui despertado deste breve transe por um funcionário do cemitério, um rapaz alto que eu sempre via mas jamais havia trocado duas palavras. – Tudo bem com o senhor? – perguntou.
- Mais ou menos – respondi.
- Eu posso ajudar em alguma coisa?
- Na verdade, não. Estou esperando uma menina...
- Se é para visitar algum túmulo, eu até posso ajudar a encontra-la. Se for para namorar, como tantos aqui tentam fazer, o zelador não vai gostar nada disso.
- Bem, eu fico até sem jeito, mas é quase isso... – confessei. Ansioso para contar minha história insólita para alguém, resolvi fazer daquele trabalhador meu cúmplice. Relatei minha história com detalhes, e no fim, olhei-o como se pedindo uma solução.
- Eu moro aqui na Ary Parreiras desde moleque e conheço quase todo mundo por aqui. Qual é o nome da menina? Se ela morar por essas bandas eu devo conhecer.
- O nome dela é Aurélia. Aurélia Galvão Barreto, se não me engano.
- Aurélia Galvão Barreto? – assustou-se - Você está maluco, homem?
- Por quê?
- Olhe para o seu lado, homem e deixe fazer brincadeiras para me apavorar - Você está encostado justamente no túmulo de Aurélia Galvão Barreto. Ela morreu em 1932, aos dezoito anos, em um incêndio aqui mesmo no Alecrim...

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