Cefas Carvalho
Para meu deleite e minha desgraça, devo dizer que, sim, eu me lembro bem de tudo. Começou em uma tarde cinzenta de agosto, quando, desgostoso com a vida e com mim mesmo, procurei refúgio nas areias da Praia do Meio, sentado próximo à estátua de Iemanjá. Foi quando a percebi, olhar pedido no horizonte, sentada a alguns metros de mim, também na areia.
Estava com os joelhos à barriga e os braços segurando os joelhos. Olhava o horizonte com o mesmo desespero que eu julgava existir no meu olhar. Foi o que me atraiu, a princípio. Segundos depois, percebi o quanto era linda, com os cabelos castanhos, imensos, caindo sobre o rosto de menina em um corpo de mulher, para usar de um clichê. Subitamente, uniu os braços em concha e abaixou a cabeça, como se chorando. Movido tanto por compaixão como pela atração que senti, aproximei-me dela, e, ganhando coragem, perguntei:
- Algum problema?
- Muitos problemas... – respondeu, levantando a cabeça. Não chorava, mas parecia desesperada. Sentei-me ao lado dela.
- Qual o seu nome? – indaguei.
- Não me lembro – respondeu
- Como assim? – estranhei.
- Não lembro meu nome. Não lembro onde moro... não lembro de nada...
Parecia estranho, mas pelo seus olhos percebia-se que ela não estava brincando. Uma linda menina que perdeu a memória, pensei.
- Você não tem uma carteira, identidade, um celular, nada que possa dar uma pista...
- Tenho apenas a roupa do corpo. E não tenho uma só lembrança de absolutamente nada. Não sei se moro com meus pais, se sou casada, menina de rua... É como se eu tivesse acordado aqui na Praia do Meio.
- Vamos brincar de detetives... sorri – Se você sabe o nome desta praia e chegou sem ajuda até aqui é porque mora em Natal. Se você fosse casada, teria uma aliança na mão esquerda ou pelo menos uma marca e não estou vendo nada disso – analisei, pegando suavemente sal mão – Quanto a ser menina de rua, esqueça. Pelas roupas, percebe-se, você é de classe média.
- Você é mesmo um detetive... – divertiu-se, rindo pela primeira vez desde que a abordei. Contudo, a situação não convidava a risos. Urgia decidir o que fazer com aquela menina desmemoriada. Procurar a polícia? Leva-la aos jornais?
- Que tal rodarmos pela cidade para ver se você se lembra de algum lugar. Talvez a visão de um local que lhe seja importante faça sua memória voltar.
Hesitante, mas sem muitas opções, ela aceitou a insólita proposta, que, não nego, também tinha como objetivo, além da ajuda, fazer com que passássemos mais tempo juntos. Desnecessário registrar que eu estava mais que atraído pela bela desconhecida. Estava me apaixonando rapidamente. Olhei o relógio: eram treze e meia, e às catorze horas eu deveria estar na agência de propaganda onde trabalhava como arte-finalista. Não hesitei em tomar uma decisão: telefonei para a agência dizendo que desmaiei na rua e que amigos estavam me levando para um hospital.
- Você não consegue nem lembrar seu nome? Cláudia? Vanda? Tatiana? Maria? Eduarda?
Ela riu, para, segundos depois, deixar uma névoa escura atravessar sua expressão: - parece engraçado, mas não consigo lembrar mesmo... – e começou a chorar. Colhi seu rosto em meu ombro – Tenho que inventar um jeito de te chamar. Enquanto você não lembra seu verdadeiro nome, vou te chamar de Afrodite, está certo?
- Afrodite... – repetiu
- A deusa grega da beleza. Afinal, você parece tão bela quanto ela...
Envergonhada, baixou os olhos. Parecia sorrir, apesar da sua situação. Mas eu não queria que se entristecesse. Puxei-a pela mão.
- Vamos para Ponta Negra. Talvez algo por lá clareie a situação.
Sentados na areia, ficamos conversando horas a fio. Isto é, tentamos um arremedo de conversa, posto ser virtualmente impossível conversar com quem não tem o que contar. Mas ela sabia, sabe-se lá como, algumas piadas sujas, e afirmava amar algumas músicas clássicas, embora não soubesse o nome delas, apenas assobia-las.
Desta forma o tempo foi passando e subitamente, atentei que já anoitecia. - Que tal irmos para o Natal Shopping? – propus.
Pegamos um ônibus e o vento no rosto a fez sorrir melancolicamente.
- Não me lembro de já ter feito este passeio, mas esta sensação de liberdade, me é familiar...
Bebemos alguns chopes. Ela quis uma caipirinha. Quando dei por mim já eram quase dez da noite. O shopping iria fechar e teríamos de fazer alguma coisa.
- Quer recorrer à policia? – perguntei.
- Quero ficar com você... – respondeu – mas sei que você deve ter que ir para casa...
- Eu adoraria leva-Ia para casa, mas meus pais são complicados...
- Não tem problema, eu me viro...
Claro que eu jamais a deixaria sozinha naquelas circunstâncias e armado de toda a coragem, propus passarmos a noite em um hotel na Cidade Alta. Para minha surpresa ela concordou com a idéia. Após telefonar para meus pais e informa-los que eu dormiria na casa de um amigo, rumamos para o centro. Tentei leva-la para o Beco da Lama ou para o bar Amarelinho, para mais uma cerveja, mas ela argumentou que estava cansada. Fomos para o hotel, velho, decadente, mas barato e estranhamente luminoso.
Uma vez no quarto, eu não sabia exatamente o que fazer. Afrodite foi quem quebrou o gelo. - Estou louca para tomar banho... -sorriu. Depois que ela saiu do banheiro, foi minha vez de entrar debaixo do chuveiro. Nervoso, saí de toalha e a flagrei também enrolada na toalha penteando os cabelos.
- Encontrei um pente na escrivaninha...
- Que bom... - comentei, sentando ao lado dela na cama de casal. Preocupado, tentei explicar para ela como seria nossa noite. - Eu posso improvisar estes lençóis no chão para que você durma na cama.
- Por que isso?
- Não quero que você pense que eu me aproveitaria de você.
- E se eu me aproveitar de você?... - riu, encostando os lábios em minha orelha. Fechei os olhos, e senti sua boca na minha, depois sua língua caçando a minha... deitamos, na cama e minha deusa fez jus ao apelido que eu lhe dera...
No dia seguinte, despertamos juntos, e se durante alguns segundos vivi o torpor de quem acredita estar em um sonho - aquela mulher linda e nua deitada ao meu lado – logo me lembrei da situação insólita que vivíamos.
- Lembrou de alguma coisa?
- Só da noite de ontem... - sorriu - E do que fizemos durante o dia. Quanto ao resto, não me lembro nem do meu nome...
Continuávamos na mesma, então e decidi tirar outro dia de folga para curtir à cidade ao lado dela e à noite leva-Ia ou à Polícia ou a algum jornal. Passei no banco, tirei quase todo o dinheiro da minha conta e iniciei nosso programa: Redinha, depois Litoral Sul, Pirangi, Pium... Éramos um casal em lua de mel, enfim. Por volta das cinco da tarde, fomos à última etapa do passeio, o rio Potengi, assistir ao por do sol. Em frente ao espelho d'água, ficamos olhando o horizonte, quando ela confessou que uma tristeza imensa a invadira.
- Por quê? - perguntei
- Não sei, mas é como se não fôssemos nos ver mais... - murmurou.
De repente, um estranho vento se fez presente, nos encharcando de poeira. Tirei os óculos para tentar tirar os ciscos nos olhos, operação que não durou dez segundos, se muito. Quando recoloquei os óculos, percebi que estava só. Olhei para todos os lados, e nada. Onde estava Afrodite? Era como se ninguém tivesse estado comigo. Perplexo, olhei para a lagoa. Sua superfície estava limpa, contudo, bem à frente da margem me pareceu ter visto uma leve movimentação, como se alguém estivesse nadando, suavemente, por baixo da água. Tolice minha, pensei. Procurei Afrodite nas imediações, perguntei por ela em bares e lanchonetes próximas. Inútil. Minha Afrodite havia desaparecido tão misteriosamente quanto havia surgido em minha vida. Teria se jogado, sem barulho, sem alarde, nas águas poéticas do Potengi? Seria uma sereia retomando ao lar? Um anjo que retomara para o firmamento? Ou tudo não passara de minha imaginação? Jamais o saberei. De qualquer maneira, isso aconteceu há anos, e até hoje não se passa um dia em que eu não vá até à margem do rio Potengi na esperança de revê-la...
Onde vai a vírgula no MAS?
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[image: Onde vai a vírgula no MAS?]
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utiliza a conjunção "mas"? Neste artigo, vamos e...
Há 13 horas
Um comentário:
Que coisa linda!!! Cefas e suas mulheres...
Adorei!!! Muito!
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