11 agosto 2010

Chuva de fogo


Cefas Carvalho

O ruído que vinha de trás era ensurdecedor, mais que isso, espetacular, sedutor. Era absurdo não poder voltar-se e contemplar o espetáculo. Na verdade, pouco ou nada em sua vida de menos de quarenta anos tivera algo que pudesse se chamar de intenso. Casara cedo com um homem mais velho. Engravidara duas vezes, em um par de anos, sem saber o que fosse carinho ou prazer. Ouvira – longe dos homens que tanto a fiscalizavam, claro – as mulheres falar nos gozos escondidos nos meio das pernas das filhas de Eva, mas, aquele era um mundo que não lhe pertencia. O que lhe cabia era a obediência. Desde tenra idade, primeiro ao pai, depois ao marido, e sempre, sempre a deus, aquele ser todo-poderoso que tudo poderia em sua onipotência. Contudo, apesar de boa filha, boa esposa, mãe irrepreensível, guardava desde seu nascimento em meio a vísceras uma rebeldia, uma tendência à desobediência que sempre estivera oculta, embora latente.
Era uma filha de deus, sim, mas era mulher! E como tal, fazia dos seus desejos incompletos, insatisfeitos, uma ponte para um derradeiro e alucinado ato de rebeldia contra tudo e contra deus. O que perderia com a desobediência? Sua vida, um amontoado de gozos não vividos, suor e resignação. O marido - bom, honesto e temente a deus – não a via como senão uma companheira de luta e abnegação. Sim, nada perderia com um instante de arrebatamento, uma desobediência calculada e que lhe poderia abrir as portas de um outro mundo. Era filha de Eva, e como tal, tinha direito ao seu pecado, a sua traição às leis divinas e humanas em prol da curiosidade inata ao seu sexo e à sua vida sem paixões.

Decidiu olhar para trás – desafiando seu marido, seu deus – quando viu as cidades vizinhas, Sodoma e Gomorra, engolidas por uma chuva de fogo e enxofre. Pareceu-lhe bela a profusão de luzes e fumaças, quando sentiu um formigamento em todo o corpo e a uma estranha sonolência. Ainda teve tempo de pensar no marido, Ló, e nas filhas, que deviam estar longe e que – sabia ela – jamais olhariam para trás. Em poucos segundos estava transformada em uma estátua de sal.

8 comentários:

Anônimo disse...

Muito interessante. Muito bem escrito apesar do conflito com o cristianismo e com a divindade.

Paulo Jorge Dumaresq disse...

Todo mundo tem direito a uma alegria fugaz, inclusive a mulher objeto em questão.
Excelente conto, Cefas.
Abração.

Danclads disse...

Muito interessante o texto e a forma de abordagem, mostrando que os personagens bíblicos eram antes de tudo - parece que às vezes algumas pessoas esquecem disso - pessoas falíveis, como qualquer outra.

No caso do conto, a curiosidade feminina - e aqui me recordei da caixa de Pandora - é bem demonstrada. Um momento de desobediência e... Sal. Excelente texto.

Cácian.Castro disse...

Incrível!
Tens uma fã :)

Parabéns pelo blog, gostei!

Abraços,
Cácian Castro

Unknown disse...

Concisão, com bom gosto, mistura com resultado sempre interesante. Parabéns!

Rizolete

Cefas Carvalho disse...

Olá Rizolete, velha amiga desta blog. Sim, Danclads, há a brincdeira com a "caixa de Pandora", sim, o velho símbolo da milenar curiosidade feminina. E, bem vinda ao blog, Cácian. Fiz uma visita no seu blog e achei-o bem legal. Abraços.

Unknown disse...

Cefas, coincidência incrível. Sobre o tema, no dia de ontem (18/08) escrevi uma crônica com o título Estátuas de Sal. Posso enviá-la via e-mail? Meu texto tem uma outra abordagem, é lógico, mas o seu é tremendamente interessante.
Abraço fraterno,

Luciene Danvie disse...

Reinvenção bíblica no século XXI? A religião nos mostrar a história antiga de forma tão informativa. Adorei o texto, principalmente porque escavou da bíblia um lado "romântico", relatando a tragicidade de uma história estranha, que deixa espaços para questionamentos inusitados e não menos estranhos. Foi ótimo ler este texto, ultimamente estou lendo a Bíblia e não consigo parar de ver as construções narrativas de formas poéticas e subjetivas.
Ótimo texto
Um abraço.