26 julho 2010

Crime perfeito


Cefas Carvalho

Depois de borboletearem, indecisos, entre mesas, sentaram-se, à mesa ao meu lado. Eram quatro. O casal - o homem grisalho, a mulher loira e magra, de olhos de hamster - o de bigode felpudo e o mal barbeado, banhado de suor. Formavam uma orquestra de barulhos em tons diferentes, um grupo estranho e heterogêneo. Contudo, sentaram-se na mesa da praça de alimentação do shopping, entreolharam-se e conversaram baixinho entre si.
Bebendo minha cerveja, percebi que eles destoavam do público do shopping: casais sorridentes, crianças alegres com mães estressadas, adolescentes barulhentos. O quarteto parecia ansioso e com ares de sujeira. De repente, o grisalho sussurra algo no ouvido da mulher, que esboça um sorriso falso e se volta para o mal barbeado, que esfrega as mãos nervosamente.
Não, não havia mais dúvidas. Era como se fossem cometer um crime. Pior; como se já o tivessem cometido.
Decidi observá-los com atenção. O homem de bigode, com ar de tédio, olhava o cardápio com ar distraído. O grisalho e a mulher – que pareciam casados, ou fingiam ser um casal – conversaram alternadamente com os outros dois. Deduzi que o crime já havia sido cometido, certamente um roubo. Havia duas ou três agências bancárias naquela área. Além do escritório financeiro do próprio shopping, claro. Deviam ter roubado uma boa quantia, mandado o dinheiro embora pelos cúmplices e ali estavam para disfarçar o crime e combinar os próximos passos.
Bebiam cerveja, os quatro. Barulhenta e sofregamente. Chamaram o garçom por mais duas, três vezes. Até, com dificuldade, se decidirem. Pediram algo caro, pude perceber. Um deles, o suarento, chegou a dizer para os outros que dinheiro não era problema. A mulher, com aqueles olhinhos inquietos de rato, começou a fumar, nervosamente. Trocou três ou quatro frases com o grisalho (seu marido?). O de bigode felpudo percebeu, enfim, o cantor que se apresentava, e bateu palmas, de forma exagerada. Tudo naquele quarteto parecia suspeito. Mais que isso: denunciador.
Quando chegou o pedido, notei que era um imenso prato de carne em tiras com batatas e legumes. Mas, veio também uma tábua de frios, muitos queijos. Ainda que fossem em quatro, parecia um excesso. Dinheiro não era problema, disse (ou teria dito, um deles). Comiam com voracidade, como se o mundo fosse acabar naquele instante. Comiam como se fossem seus últimos momentos em liberdade.
O homem com o bigode felpudo não se cansava de bater palmas, para qualquer tipo de música. Dir-se-ia que desejava chamar atenção. Mas, por que alguém que comete um crime gostaria de chamar a atenção? Como disfarce, talvez. Os seguranças o olhavam como um homem barulhento, não como um criminoso.
De repente, o grisalho sacou do bolso uma caderneta de anotações e uma caneta. Certamente iriam repartir o fruto do roubo. Talvez planejar o próximo crime. O grisalho escreveu algo e entregou o papel para a mulher. Em seguida, o mal barbeado, sempre suando, apesar do ar condicionado, pegou caderneta e caneta e rabiscou algo. Chamaram o garçom, que recebeu da mão suada o papel e o entregou ao músico. Então, pediam músicas ao cantor... certamente para mostrarem normalidade. Ao fim da música, o bigodudo bateu palmas ruidosamente. Tudo muito estranho. A mulher magra acendeu mais dois ou três cigarros, incrível, como não pediam para que parasse de fumar. Talvez ela quisesse justamente isso, que a proibissem de fumar. Para despistar suas verdadeiras atividades nocivas. Contudo, ninguém se dirigiu a ela. O grisalho, pegou na sua mão, como se tentando acalmá-la e me pareceu que iniciaram uma espécie de discussão. Estariam brigando devido à divisão do dinheiro?
Foi quando o cantor anunciou que tocaria a última música da noite. Bateram palmas com mais entusiasmo e barulho do que o normal. Tudo para não despertar suspeitas, certamente. Mas, a mim não enganavam. Terminaram de comer (o suarento chegou a raspar o prato de carne e comer toda a alface, como se precisasse provar que estava faminto) e pediram a conta, com barulho.
Minutos depois, o garçom a trouxe. Deliberaram sobre algo (o pagamento da conta? Como usar o dinheiro do roubo? Novas estratégicas e disfarces?). Até que, os três homens, sacaram cada um das respectivas carteiras uma certa quantia de dinheiro e as depositaram na mão do garçom, sorridente com a possível gorjeta. Típico. Tinham muito dinheiro para gastar.
Em seguida, levantaram-se, despediram-se e foram embora, o suarento e o bigodudo para um lado (o esquerdo, do estacionamento) e o casal para o outro (o direito, onde ficava o posto de táxis). Fiquei na praça de alimentação do shopping ainda uns minutos, terminando minha cerveja e avaliando o que tinha testemunhado. Na verdade, nada tinha acontecido. Na verdade, sempre acontece algo, apenas não queremos admitir. Embora nem sempre as coisas sejam como pensamos que são, confesso.
Penso que tinham cometido um crime. Ou talvez não.

6 comentários:

Paulo Jorge Dumaresq disse...

Conto perfeito para "Crime perfeito".
Parabéns, amigo.
Forte abraço.

Rô Moreira disse...

Meu Deus, que imaginação srrsrs
muito legal!

Anônimo disse...

hamister?

Anônimo disse...

parei de ler aí, mas como outros dizem ser bom, vou arriscar.

Cefas Carvalho disse...

Olá caro "Anônimo". Obrigado pela sua gentil correção, afinal, escapou um "i" na grafia do animalzinho, falha já prontamente corrigida. Agradeço a visita ao blog e o risco de ter se aventurado a leitura até o final, se é que o fez. Que bom que os outros, como você disse, gostaram do conto. Ah, e na próxima vez pode se idenficar sem sustos, já que aceito correções e sugestões sem problema. Aí a gente troca idéias e opiniões sem a sombra sempre chata do anonimato. Grande abraço!

Sulla Mino disse...

Perfeito!

Bjks, Sulla Mino