Cefas CarvalhoReceoso de ferir os brios patrióticos dos amigos e amigas do país de Mossoró, resisti bravamente a escrever o texto que se seguirá. Temia que ele colocasse mais lenha na centenária rixa entre natalenses e mossroenses, com os primeiros geralmente tecendo piadas ferinas e comentários maldosos a respeito do comportamento das gentes de Mossoró.
Contudo, durante recente confraternização cultural (e etílica) na 1ª Feirinha de Livros de Currais Novos, o comandante em chefe da Revista Papangu, Tulio Ratto, garantiu não somente a publicação de tal texto sem censuras como minha integridade física (tendo em vista a pouco hercúlea compleição física de Tulio, não estou certo que sua garantia de segurança me valerá de muita coisa...). Ainda assim ganhei coragem para escrever sobre uma aventura gastronômica que vivi na terra de Santa Luzia. Que os amigos Cid Augusto e Kydelmir Dantas, pacatos e bons companheiros, que viram gladiadores na hora de defender Mossoró, me perdoem.
Bem, vamos à história. O episódio aconteceu nos idos de 1992, quando eu acabava de ter o prazer de entrar na redação da Gazeta do Oeste, nos bons tempos em que Canindé Queiroz comandava uma equipe de até hoje bons amigos como Carlos Santos, Cesar Santos, Gutemberg Moura, Augusto Paiva, Emerson Linhares, e outros. Mas, deixemos de nostalgia. O fato é que eu acabava de chegar a Mossoró, cidade que conhecia apenas superficialmente, e ainda não havia me detido na vida cotidiana e nas particularidades mossoroenmses.
Na minha primeira semana, lanchava (e almoçava, diga-se) baurus no treiller de Titi, ao lado da Gazeta. Em uma bela tarde, o trailler se encontrava fechado e resolvi sair a esmo pelo centro à procura de uma lanchonete. Numa rua, cujo nome não recordo, lá perto do legendário Restaurante do Mathu, descobri uma lanchonetezinha. Estava vazia e parecia agradável, apesar de simples. Senti ao balcão caçando o cardápio ou coisa que o valasse. Inútil.
Por fim, surgiu da cozinha um rapaz resmungando um boa noite que mais parecia um convite para me retirar. Resolvi ficar, e perguntei se tinha algum salgado, tipo pastel ou empada. Secamente, ele respondeu que não. Perguntei então se tinha cachorro quente... O cidadão coçou a barba por fazer e disparou: “Amigo, você quer cachorro quente ou hot dog?”. Senti no momento um vazio mental, tal a irrealidade da pergunta.
“Mas, qual a diferença entre um e outro?”, perguntei, inocentemente. O cara me olhou como se eu fosse imbecil – talvez o fosse, naquele instante – e respondeu, todo senhor de sua secura: “Cachorro quente é com carne moída, hot dog é com salsicha!”. “Ah, é claro...”, concordei, como se respaldando uma verdade absoluta. Acostumado que era a comer os tradicionais cachorros-quentes com salsicha, à moda americana, lá no jurássico Passport, na Praça Cívica, em Natal, desde a mais tenra infância, deveria ter optado pelo que conhecia. Mas, a vontade de desbravar culinárias estrangeiras falou mais alto. “Me veja um cachorro quente aí”, pedi.
O camarada foi para a cozinha. Retornou logo trazendo em um prato azul, um pão cheio de carne e verduras, fumegante e cheiroso. Contudo, um detalhe: no prato, garfo e faca! Educadamente, peguei os talheres e coloquei-os no balcão. “Obrigado, mas não vou precisar”. O rapaz nada falou. Empolgado, com o aroma, puxei dois guardanapos de papel e avancei as mãos para o prato, dando início à minha tragédia. Mal levantei o pão á boca, o bicho começou a se liquefazer. Nervoso, inclinei o pão, derramando um caldo marrom em minha calça jeans. Ainda mais nervoso, coloquei o pão no prato e ele – já mais liquido do que sólido – praticamente se desmanchou. Olhei para a calça e parte da camisa, todas sujas e pensei em protestar, quando reparei na expressão impassível do cidadão, me olhando com a superioridade natural que um nativo de Mossoró encara forasteiros de culturas primitivas. Concluí que era inútil reclamar. O culpado, afinal de contas, era eu. Olhei para o cachorro quente que havia pedido, na verdade quase uma sopa, e não um sanduíche. Não havia como resistir àquele caldo onde boiavam pão molhado, carne, cebola, tomate e pimentão. Recolhido à minha insignificância, olhei com humildade para o sujeito, que esboçava um sutil sorriso nos cantos da boca e pedi: “Amigo, por favor, me veja garfo, faca e uma colher...”
(Publicado originalmente na Revista Papangu de 31 de agosto de 2006)
7 comentários:
Adorei! Principalmente porque amo cahorro-quente, não me venha com pitts, bobs, mc... Tem que ser cachorro-quente. Em Natal o de Tantico, ali na esquina do CNA da Hermes. Em mossoró no sebosão. Já comi horrores no passaporte, mas caiu muito dos tempos de antigamente.
Ri horrores com o garfo e faca. Acho que como todo cidadão natalense quando vai ao sebosão e se depara com a situação.
Quando fui pela primeira vez com uns amigos, pedi o tal k-galo e os amigos também. Quando vejo vem um pão esborrotado de coisas e eles mais que depressa pegam o garfo e a faca, eu? nããããã
sou mestre em cacho-quente, comi igual uma lady com o guardanapo.
até hoje não sei como consegui, mas, mesmo morando uma temporada por aí, essa tradição não fez minha cabeça. e eu sempre brinco com essa situação.
Hot-dog não! tem que ser cachorro-quente e com salsicha.
Eita, Gabi, obrigado pela primeira visita ao blog. E alguns amigos já confessaram ter passado por experiências semelhantes às nossas. Abraço e volte sempre!
cefas, me tornei vegetariana há alguns anos. nunca sent falta de carne ou frango, mas quando passo perto d'uma barraqinha de cachorro quente, auuuuuuuuu... rsrsrs...
muito bom o texto, impagável, mas eu pago tudo.
beijos.
ah, sim, quando comia, adorava me lambuzar. adoro comidas que lambuzam, aliás, como caquis, mangas, graviolas, e até gente.. rsrsrs...
Eu, ao contrário, Nina, era dos que evitaram tomar sorvete para não se lambuzar. Volte sempre ao blog. Beijo.
Nooooosa que situação...Este é nosso povo...brasileiros, diversidade cultural, mas felizes cada um de sua maneira.
Adoooooorei e já havia escutado essa de garfo e faca, mas não acreditava.
Abraços,
Incrivel mesmo essa de usar garfo e faca, mas é uma particularidade especial de Mossoró, essa maravilhosa cidade; Dizemos isso por experiência própria; Quem puder, não desperdice a chance de saborear o "cachorro quente", feito com carne, mas não dispense garfo e faca, porque são imprescindíveis.
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