Cefas Carvalho
Chamava-se Dolores. Como Dolores Duran, uma das heroínas de minha vida. Mas ela não conhecia Dolores Duran, não sabia nem quem era. Talvez sua mãe também não conhecesse a cantora e tivesse escolhido o nome por gosto, capricho ou influência, sabe-se lá. Mas, nada disso importa. Conheci Dolores em uma noite sem lua e sem estrelas, quase amaldiçoada, em um bar tipo inferninho nas Rocas. Surgiu na minha frente como quem vinha do nada – ou de algum dos quartos fétidos do bar onde as meninas operavam seus programas rápidos – e sorriu como se já me conhecesse havia muito. Também sorri e com um movimento sutil de cabeça convidei-a para sentar à mesa. Ela aceitou e bebeu da minha cerveja. Conversamos sobre a vida em geral e sobre nada em especial e pude perceber o quanto era estranhamente bela e triste. De uma beleza sofrida, claro, pele queimada, não de manhãs de praia, mas de quem veio do sol do interior. Cabelos maltratados, olheiras emoldurando um olhar castanho melancólico. Talvez meus amigos a achassem feia. Mas, aos meus olhos – também sofridos, admito – Dolores me pareceu bela como poucas.
Bastou meia hora para que eu me resolvesse a convidá-la para sair. Paguei sua saída do bar (exigência inegociável da dona do estabelecimento para quem quisesse sair com as meninas da casa) e fomos no meu carro para um motel em Mãe Luíza. Pedi cerveja, um jantar – ela estava morrendo de fome – e depois mergulhamos no mar sem fundo dos amores carnais envolvidos em dor e carência. No fim das contas e dos gozos, percebi que – como muitas vezes acontecia comigo – eu era um náufrago a me agarrar na bóia de amores circunstanciais e comprados. A diferença é que Dolores não parecia apenas estar trabalhando. Era como se ela também fosse uma náufraga.
No dia seguinte paguei o motel e deixei-a no inferninho onde morava. Trocamos números de celular e prometi telefonar e também voltar para outra noite juntos. Horas depois, já no trabalho, dei-me conta que Dolores em espanhol, significava “dores”. Os nomes femininos em língua espanhola muitas vezes evocam sentimentos: Dulce (Doce), Soledade (Saudade), Angustias, Martírio... e lembrei-me de um livro de Jack Kerouac – Tristessa – sobre uma jovem mexicana, igualmente bela e triste. Uma mulher chamada Tristeza..., pensei, com amargura, lembrando que a mulher sem destino e sem futuro que povoava meus pensamentos, ela mesma carregava no nome a antítese na alegria e da felicidade.
Voltei à minha vida normal, seja lá o que isso significasse, e confesso, esqueci-me de Dolores por alguns dias. Passada uma semana, porém, a lembrança dela me veio e me doeu na pele como uma agulha. Corri para as Rocas. Tudo continuava igual, o inferninho decadente, as mesas sujas, os sorrisos falsos das meninas... também Dolores estava lá e continuava igual. O mesmo olhar sofrido, a mesma atenção para comigo... era como se o tempo não se movesse naquele bar. Pedi uma cerveja, depois outra, depois uísque com coca para ambos e por fim acabamos em outro motel, novamente afogando nossas mágoas no corpo um do outro. Desta vez, contudo, consegui saber mais coisas sobre ela... já tinha sido casada duas vezes, tinha dois filhos, um de cada pai, era de Sousa, na Paraíba, mas com família em Pau dos Ferros... gostava de viajar e samba... Tinha estudado, fizera o segundo grau completo, gostava de escrever, chegara a sonhar, em certa altura imprecisa da vida, em ser professora numa cidadezinha do interior... Propus que viajássemos juntos. Para onde?, perguntou. Para lugar nenhum, respondi, na estrada decidimos... Pipa, João Pessoa, Recife, Tibau, Areia Branca... o vento seria nosso mapa. Com um sorriso triste ela concordou. Acordamos que faríamos a viagem no final de semana seguinte, quando eu prepararia tudo e ela inventaria uma desculpa para a dona do bar para não termos que pagar a saída. Vivi uma semana normal, mas algo excitante com a perspectiva da insólita viagem. Nada comuniquei aos amigos nem à família (como fazê-lo?). Na manhã de sábado, por fim, estacionei o carro em frente ao prédio abandonado nas Rocas onde havíamos combinado. Esperei durante quarenta minutos. Eu já me preparava para telefonar para ela quando aproximou-se do veículo uma mulher que eu conhecia do inferninho. Vinha me trazer um bilhete de Dolores, que fora embora com todos os seus pertences no dia anterior e nada dissera sobre seu destino: “Meu querido, descobri que sou dona das minhas dores e não quero dividi-las com você nem com ninguém. Não nasci para ser feliz. Melhor eu ir embora enquanto é tempo. Beijo. Dolores”. Guardei o bilhete no porta-luvas e peguei a estrada. Para onde? Quem sabia? Que importava?
Um comentário:
Meses depois que escrevi este conto em homanagem a Dolores Duran, um amigo me informou que Murilo Rubião, salvo engano, tem um conto em homanagem a Maysa, que hoje está na tela da Globo em minissérie.
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