Cefas Carvalho
Olhou-se no espelho, radiante de felicidade, e disse para si mesmo: “Hoje vou conseguir morrer!” Sentiu-se então mais leve com este pensamento, sem aquele peso nas costas que lhe parecia todo o peso do mundo. Coçou a barba cerrada que sujava seu rosto e pensou em raspá-la. Tolice, raciocinou, não fará diferença posto que hoje vou morrer. Pegou o barbeador manual na pia e suavemente passou pelo braço, passeando a lâmina, na sua pele. Mas não moveu a lâmina no sentido horizontal, o que cortaria suas veias. Não queria morrer sangrando em um banheiro de hotel e tinha dúvidas se a pequena lâmina conseguiria provocar um ferimento que o levasse a uma morte rápida e indolor. Sim, queria morrer, mas não desejava sofrimento. Já tivera seu quinhão de sofrimento na vida e não queria mais uma cota na hora sagrada em que decidira deixá-la.
Saiu do banheiro e atirou-se na cama. Era como se estivesse em casa, como se estivesse em um lugar familiar. Foi quando atinou que não se lembrava do nome do hotel onde estava. Procurou descobrir nos lençóis, nas fronhas, em um possível cardápio em cima do frigobar. Nada. Não se importou mais com isso. Queria apenas pensar em morrer. Pensou em se atirar pela janela, mas o que menos desejava era alarde e espalhafato. Pensava também que tal tipo de morte atrapalharia muitas pessoas, talvez interrompesse o trânsito lá embaixo e não queria que isso acontecesse. Também imaginou com horror que a queda livre, ainda que brutal, talvez não o matasse, e sim apenas o deixasse tetraplégico. Seria pior que a morte. Começou a idealizar outro tipo de suicídio, quando percebeu que não sabia em que andar se encontrava. Na verdade, não recordava de ter entrado no hotel ou de ter preenchido a ficha na recepção. Pensou em abrir a janela para respirar ar puro e calcular onde estava, mas por alguma estranha razão desistiu da idéia. Também desprezou a idéia de telefonar para a recepção ou descer. Por alguma razão, tinha a certeza de que deveria permanecer naquele quarto e levar a cabo a decisão de simplesmente morrer. Foi quando observou, em cima da mesa ao lado da cama, um revólver calibre 38, velho e funcional. Jamais usara uma arma na vida, mas quando pegou o revólver experimentou uma sensação de familiaridade, como se já tivesse vivido aquela cena.
Acariciou a arma como quem faz carinho em um gato e conferiu se estava carregada. Tinha uma bala apenas, mais que suficiente para sua empreitada. Conferiu o cão da arma, engatilhou a bala e instalou o dedo indicador da mão direita no gatilho. Levou o revólver à têmpora, onde, sempre lera sobre isso, não havia a menor possibilidade escapar vivo uma vez atirando. Olhou em volta na tentativa derradeira de encontrar algo, um objeto, uma cor, um símbolo, que lhe parecesse familiar ou que fizesse lembrar algo. Inútil. Tudo lhe parecia inócuo e distante. Queria morrer e sabia que aquela era a hora. Pressionou o gatilho e ouviu dentro de sua cabeça, como um trovão, o barulho demente do tiro. Morri, pensou, tremendo de felicidade.
De repente, abriu os olhos. Sentiu o buraco em sua cabeça e a bala presa na parede. No mais, tudo continuava silencioso e deserto. Estava em pé, consciente e sem sentir dor. Aliás, não sentia qualquer sensação. Pegou um canivete do bolso e talhou um corte na mão esquerda. O sangue, ou um líquido parecido com ele, escorreu, mas não sentiu qualquer dor. Sabia que poderia retalhar dedo por dedo da mão que não sentiria rigorosamente nada. Descobriu então, entre o horror e o conformismo: já estava morto havia tempo. Só não havia percebido isso...