Cefas CarvalhoMerda, borrei o olho!, murmurou, sentindo o lápis escorregar para a direita. Rápida e habilmente, consertou o traço preto embaixo da pálpebra. Terminado o desenho dos olhos, parte da maquiagem que mais lhe dava prazer, cuidou de passar o batom. Adorava o cheiro exalado pelos batons, principalmente os vermelhos, mas, não gostava do efeito que produziam em seus lábios. De batom, não se sentia uma mulher, ou mais mulher, ao contrário das amigas, mas, sim, como um palhaço triste que representa uma tragédia com ares de comédia.
Minha tragédia não é ter o corpo de um homem, mas, a alma de uma mulher, pensou. Talvez por esta razão, sentia-se sempre estranha com aquele vestido, os seios postiços – incômodos, pavorosos – a peruca ruiva, os olhos pintados, o batom ultrajante... Por mais de uma ocasião implorou para fazer seu show sem aquela fantasia. Mas, era inútil.
Jorge pensava que a insistência em se apresentar era pelo cachê. Que ele pensasse assim, afinal, o dinheiro quase sempre ia parar nas mãos dele. Mas, ela concordava em se fantasiar de mulher – mesmo sendo, em alma, uma mulher verdadeira – para poder cantar. Mais exatamente para poder interpretar as canções de Piaf.
Ele se apaixonou por mim quando me viu em uma boate cantando Je ne regrette rien, pensou, retocando o batom. Isso acontecera seis meses antes. A partir dali, mergulhou – com Jorge – em um universo de amor, sexo, bebida, drogas, violência física e humilhações, em doses cavalares. Já expulsara Jorge do apartamento milhares de vezes e, outras mil vezes telefonaram, em prantos, para que ele voltasse. Com Jorge, vivera céu e inferno, som e fúria, como jamais havia experimentado com homem algum.
Pensando nisso, estremeceu levemente e sorriu para si mesmo no espelho. Seu corpo soltava choques elétricos quando pensava em Jorge. E a lembrança dele se unia ao amor por Piaf... Cantarolou sua música preferida...
C'est sûr que j'en mourrais
Que j'en mourrais d'amour,
Mon amour, mon amour...Assim como Piaf, se eu tivesse que morrer, seria de amor. Ela está enterrada em um cemitério chamado Pére Lachaise, em Paris, Recordou. Havia lido isso em alguma revista, e desde então, economizava dinheiro para ir à capital francesa e visitar o túmulo da cantora.
Foi quando lembrou - como uma pedra que lhe golpeasse a cabeça – que Jorge não estaria no apartamento quando retornasse. Havia ido embora, e, daquela vez, definitivamente, como mostrava a carta que mandara de muito longe. Voltara para a mulher e os três filhos, no interior onde nascera. Não iria mais a Paris, não conseguiria viajar sem ele.
Mas, não, não se arrependia de nada. Segurou a lágrima que iria, mais uma vez borrar a maquiagem, sorriu para sua face no espelho, levantou-se e foi para o lar onde não existia nenhum Jorge, onde não existia ninguém além dela mesma e de Piaf: o palco.
Si jamais tu partais,
Partais et me quittais
Me quittais pour toujours...