Cefas Carvalho
Sexta-feira da PaixãoCristo morreu pelos meus pecados. É o que dizem. Sempre detestei esta afirmação, como detesto qualquer coisa que tenha a ver com o não-visível. Não quero que ninguém morra pelos meus pecados. Dos meus pecados cuido eu. E meu pecado maior naquela sexta-feira maldita foi ter deixado Clarissa ir embora. Ou será que eu quem a mandei embora? Talvez as duas coisas. Só recordo que a vi jogando algumas roupas na mochila velha e sair de casa batendo ruidosamente a porta. Ainda pensei em correr atrás dela, mas desisti. Fiquei em casa ouvindo CDs de blues e olhando com cara de idiota para o bacalhau dessalgado em cima da pia. Iríamos fazer um bacalhau a Gomes de Sá. Clarissa não comia carne nos dias da semana santa. Para mim isso era uma besteira, eu teria adorado preparar uma picanha mal passada naquela noite, mas a paixão por Clarissa me fazia respeitar suas opiniões, pelo menos algumas delas.
Pensei que Clarissa voltaria, mas, me enganei. Tomei alguns tranqulizantes para poder dormir, com o coração pesado de tristeza e paixão.
Sábado de AleluiaAleluia! Clarissa telefonou. Não falou praticamente nada, balbuciou meia dúvida de palavras. Mas, telefonou. Disse que estava tudo terminado e que na semana seguinte pegaria suas coisas no apartamento. Pensei em implorar para que voltasse, em sugerir que conversássemos, mas nada falei. Escutei o que ela falou até que pareceu que ela fosse chorar e ela então desligou o celular.
Resolvi ir uma igreja católica. Claro, desprezava o catolicismo, como a todas as demais religiões, mas senti vontade de ver os fiéis louvando a um ser superior. Contudo, quando estacionava o carro próximo a uma igreja, mudei de idéia repentinamente e decidi beber algo na praia. Olhar o mar costumava me acalmar. Bebi demais, contudo, e voltei para casa totalmente bêbado, arriscando bater o carro ou ser pego pela polícia dirigindo embriagado. Não aconteceu nem uma coisa nem outra. Talvez fosse melhor se eu tivesse morrido.
Domingo de PáscoaAcordei de ressaca. Bebi quase um litro de água e tive de ver na geladeira os ovos de chocolate que Clarissa havia comprado para a gente. Estávamos juntos havia três anos e todo domingo de Páscoa ela me dava um ovo de chocolate. Como sabia que eu não compraria um para ela, tratava de se presentear com um ovo, quase sempre de chocolate branco. Joguei os dois ovos fora. Também atirei o bacalhau na lata de lixo. Em seguida, vomitei e, me sentindo menos enjoado, decidi recomeçar minha vida. Tomei um bom banho, recorri a um analgésico potente e me resolvi a sair da cidade. Joguei em uma mochila algumas roupas, laptop, escova de dentes e alguns livros. Iria para uma pousada litorânea para pensar na vida nova que teria de levar.
Estava abrindo a porta do carro quando o celular tocou. Clarissa, com voz lacrimosa, disse que queria conversar e retomar nosso casamento. Pediu desculpas e exigiu que eu as pedisse. Perguntou se eu não queria encontrá-la em um bar-restaurante onde costumávamos ir. Concordei. Subi ao apartamento para deixar a mochila e rumei para o supermercado mais próximo, para comprar dois ovos de chocolate...