14 abril 2015

Quarteto de degustação


















1

O que me engole e devora
É o súbito, o indigitado
O alimento que me apavora
O vômito regurgitado

2

O que me tange e apascenta
É o cajado, adestrado
Cujo golpe me arrebenta
Como o verbo bem amado

3

O que me desce à garganta
É a vida, mal mastigada
Que ainda nos espanta
E faz de nós quase nada

4

O que me sustenta e redime
É o verso em decomposição
Como quem comete um crime
E sonha com a redenção



Imagem: Gravura de Goya



16 janeiro 2015

Gólgota

Cefas Carvalho

crucificado, lembrou
de quando era
um menino

e brincava de falar
com deus
em desatino

(esqueceu que os adultos
não querem deus
falando com eles
ironia do destino...)


Imagem: O Cristo Amarelo, de Gauguin

12 janeiro 2015

Gestação















Cefas Carvalho 

violentada por um anjo 
engravido 
de um poema 

entre riscos e arabescos 
dou a luz 
a um dilema... 



Imagem: Vitral de Marc Chagall 



...

08 janeiro 2015

Delta de Vênus

Cefas Carvalho

Ele tirou da estante um livro de Anais Nin. "Delta de Vênus". Abriu, leu uns trechos, escolhidos a dedo, claro. Ela riu, apertando os olhinhos pervertidos e provocantes. Sabia quais as intenções dele com aquilo. Também eram as intenções dela, ao pedir que escolhesse um livro na estante cheia deles. Sabia que ele possuía - danado como era - de Marques de Sade a Henry Miller, de Gregório de Mattos ao Drummond mais picante. Pediu para ele ler um trecho de Anais, enquanto o olhava: a boca dele em movimento a excitava. Sempre fora assim, desde que haviam se conhecido anos antes, em um sarau e ele, timidamente, recitou uma poesia de Florbela Espanca. Ela foi falar com ele, logo após, percebeu que ele já havia bebido uns vinhos a mais e trocaram telefone, apesar da inibição dele. Ao se despedirem, trocando um aperto de mãos e dois beijos no rosto, ela sentiu um formigamento no meio das pernas. 
Por sua vez, ele lia parágrafos de Anais no piloto automático, sem concentrar realmente no texto. Com o chamado "rabo do olho", prestava atenção aos movimentos dela. Sempre fora fascinado com a forma como ela se movia, como ela segurava com as duas mãos a xícara de café, como se fosse um filhote desprotegido; a maneira como arregalava e cerrava os olhos diante de uma alegria ou contrariedade. Era uma mulher de movimentos contidos, delicados, como uma gueixa morena e pós-moderna. Mas, essa contenção de gestos não chegava à cama... Naquele espaço retangular e místico, ela se tornava polvo, sereia, Medusa, Messalina e ao pensar nisso, tentou se concentrar na leitura para que ela não desconfiasse de seus devaneios.
Contudo, ela sabia muito bem que ele estava lendo mecanicamente, já havia - após tantas leituras, tantos gemidos e sussurros - aprendido a diferenciar as modulações da voz dele. Sabia que ele estava olhando para ela e isso a excitava. Conhecia bem seu corpo e, talvez até mais que sua pele, os efeitos que o homem ao seu lado causava em sua libido. Jamais esquecera a primeira vez que fizeram amor, história que parecia saída de um romance (erótico, claro). Após se conhecerem no sarau, ela telefonou para ele e marcaram um encontro para ela mostrar a ele seus escritos. Escolheu aqueles que jamais mostrara a ninguém e não sabia porque diabos iria mostrar justamente a um desconhecido.
Encontraram-se em um barzinho no centro boêmio da cidade. Ele queria um café, ele pediu uma cerveja. Conversaram sobre a vida, o tempo, os livros que estavam lendo, os casamentos e as separações de cada um. Ele não tirava os olhos das mãos dela, delicadas, como de uma boneca, nervosas, tamborilando na mesa de metal. Ela se fixava na barba mal feita dele e quando ele virava o rosto para chamar o garçom ela se detinha na nuca dele. Apertou as pernas, o que era um sinal inequívoco de seu corpo indicando que estava em vias de se excitar. Cada frase fosse sobre cinema, família, zodíaco ou as taxas de juros do Banco Central pareciam carregar uma eletricidade erótica. Ela se afogueava com a voz dele e as mãos gesticulando como se estivesse regendo uma orquestra. Ele, começava a se abrasar com os olhos dela se apertando como se estivesse tentando ler um texto em letras miúdas, e com os gestos contidos, intimistas. Ele citou um livro de Vargas Llosa (escritor que ela amava e cuja vertente erótica conhecia desde a adolescência) e prometeu emprestar a ela. Era a chance que ela estava esperando. Propôs que fossem ao apartamento dele, ali mesmo no Centro, pegar o livro, já que viajarei depois de amanhã e não sei ao certo quando volto, disse ela. Oh, claro, não se deve deixar para amanhã o que se pode fazer hoje!, Concordou ele, entrando no jogo. Terminaram as bebidas e rumaram para a quitinete dele, duas ruas dali. O lugar era de certa forma arrumado - mais do que ela poderia imaginar tratando-se de um homem sozinho - e de outra, completamente anárquico, com pôsteres colados nas portas em paredes e livros empilhados sobre outros livros, como se brotassem pela casa. Aquilo a atraiu e quando ele propôs abrirem um vinho, ela aceitou na hora. Brindaram e continuaram conversando, sobre tudo e sobre nada. Até que ela pediu para ver um livro de cara preta no alto da estante  - parecia de Poe - e subiu no banquinho. Cuidado!, ele disse, mas, ela nem ligou, além de ser ousada, gostou da sensação de atiça-lo subindo os degraus (qual seria o efeito em ele vê-la de baixo para cima?...) quando pegou o livro (não era Poe, mas, um livro sobre a Wicca) distraiu-se olhando outros volumes e o pé deslizou na madeira do tamborete, de maneira que - levando consigo duas dúzias de livros - caiu no chão de forma atabalhoada. Ele, tentando aparar a queda dela, caiu também ao chão. Atônitos, deitados sobre livros e um pouco doloridos, se perguntaram mutuamente se estavam bem. Antes que respondessem, ela aproximou o rosto do dele e o beijou (queria fazer aquilo havia horas, desde que se encontraram no bar...). Aprovou o sabor do beijo dele, a forma de movimentar a língua em sua boca, a rispidez do bigode e da barba, e, excitada com a forma como - mesmo entre os livros abertos - ele a segurava com os braços, pela nuca e pela cintura, começou a desabotoar a blusa. Ele desvencilhou-se também da dele e começou a beijá-la o corpo inteiro, detendo-se nos vãos e fendas, até que ela não aguentou mais e pediu que ele entrasse nela. Fizeram amor rápida e furiosamente, em meio a Saramagos, Jorge Amados e sob as bênçãos de Florbela e Hilda Hilst.
Recordando aquilo tudo, ela sentiu o formigamento no corpo, em especial no meio das pernas, e constatou que estava molhada. Ele, olhando fixamente para ela, também recordou o que acontecera. Despediram-se prometendo um reencontro, que não aconteceu. Ele teve de viajar, a trabalho, durante quase um ano e não se preocuparam em manter contato, por negligência ou esperança que se encontrassem por acaso, em um passe de mágica. Neste tempo, ela se casou. Retornando à cidade, ele soube do novo estado civil dela e terminou por se casar também, com uma namorada da adolescência que também voltara a morar na cidade.
Foi em um lançamento literário, como era para ser, que se reencontraram. Olharam-se, cumprimentaram um ao outro e sentiram, como se ensaiado, a mesma sensação, de um fogo interior. Estavam ambos sozinhos (a esposa dele, trabalhando, o marido dela se entediava em eventos literários) de maneira que combinaram se encontrar.
Daquela vez, ela propôs um restaurante afastado da cidade, em parte por discrição (eram ambos casados), em parte por romantismo. Surpreendeu-se em vê-lo chegar bem arrumado e barbeado. Conversaram como se não tivesse se afastado mais que um final de semana. Riram, contaram histórias picantes, comeram ostras e beberam vinho branco. Por fim, ele revelou que estava morando em uma casa de praia, ali perto. Ela propôs que ele emprestasse alguns livros (momento em que ele não conteve um sorriso malicioso) e foram para lá. Era igualmente organizada e anárquica, mas, com uma decoração mais elaborada e rústica. Ele serviu um licor de pequi e ela pediu para ver a biblioteca dele, ao lado do quarto de dormir. Qual mesmo o livro que você quer emprestado?, ele perguntou. Delta de Vênus, de Anais Nin!, Respondeu ela.
E lá estavam ali de novo, entre livros e aquela eletricidade pelo ar. Ele fechou o livro. O que virá agora?, Pensou ela. Já sei, ele vai me olhar nos olhos, dizer que eu estou linda, que morre de tesão por mim, que eu pareço saída de um romance libertino do século 17, aí ele vai abaixar as alças do meu vestido e como estou sem sutiã, vai beijar meus seios, do jeito que eu gosto, mordiscando os mamilos e puxando-os, de maneira que fiquem um pouco doloridos... depois vai se abaixar, levantar a parte de baixo do meu vestido e vai ver que estou de calcinha preta de renda, que ele adora, vai abaixa-la e vai enfiar-se, boca e nariz, no meio das minhas pernas de maneira que vou senti-las bambas, e depois vai me deitar no chão suavemente, tirar a roupa (ele sabe que eu adoro vê-lo tirando a roupa lentamente), me beijar inteira, inteira, onde homem algum me beija, depois vai deixar que eu faça o mesmo nele, para, por fim, entrar em mim e me dar prazer, um prazer alucinado que eu só sinto com ele... ai meu deus!...

Tenho uma coisa para te dizer, disparou ele, os olhos faiscando: Você está linda!...




Imagem: Cena do filme "Delta de Vênus", de Zalman King.

04 janeiro 2015

Oceânico


















Cefas Carvalho

dissimulo meus temporais
no sereno dos olhos
cravejados de diamantes

pérolas extraídas a ferro e fogo
das ostras insones, bêbadas
de mar

(jogadas aos porcos
que regurgitam em minh´alma)

em meus olhos marejados
uma nau sangra
em oceânica dor

(à deriva, naufraga o amor...)


Imagem: "Barco alemão", Turner

15 dezembro 2014

Coletânea de contos eróticos potiguares “Entre dedos” se encontra à venda pelo Selo Caravela


Na quarta-feira dia 3 de dezembro, houve o lançamento do livro-coletânea de contos eróticos "Entre dedos..." no Café Salão Nalva Melo. Organizado pelo editor José Correia Torres Neto, do Selo Caravela  diversos escritores potiguares produziram  produzirem contos eróticos inéditos, sem censura alguma, para a obra. Entre eles, este blogueiro que vos escreve, e mais Eliade Pimentel, João Andrade, Cristiano Felix, o próprio José Correia Torres Neto, Dora Cruz, Kaline Sampaio, Jeanne Araújo, Aparecida Fernandes, Jania souza, Lola Santos, Maria Marcela Freire, Maria Maria Gomes, Fábio DeSilva e Sheyla Azevedo. 
 O livro, que ficou um primor em termos editorais, também tem conteúdo de primeira. Participei da obra com dois contos, “O império dos sentidos”, já postado neste blogue e “Delta de Vênus”, ainda inédito no mundo virtual e por ora só disponível na obra impressa.
E, por falar nela, José Correia comunica que o selo está vendendo os livros diretamente pela internet. Basta entrar em contato com ele, através do e-mail: jctn68@gmail.com ou  telefone: 9136-3641 para quem desejar adquirir a publicação. O livro custará R$ 40,00, será pago em mãos ou via depósito bancário e entregue via Correios.

04 dezembro 2014

O império dos sentidos

Cefas Carvalho

Era o cheiro dele. Talvez fossem os olhos negros ou a forma que coçava a barba mal feita. Não, era o cheiro mesmo. Um perfume barato, almiscarado, mas, que, na pele dele, produzia uma substância que atraia como os ratos ao som da música do flautista.
Apareceu na minha vida como uma assombração. Em um barzinho, após uma sessão de cinema de arte, desabou na minha mesa, perguntou meu nome e se podia me pagar uma bebida. Respondi que eu me chamava Ludivine e que sim, podia me pagar uma cerveja desde que a bebesse comigo. Colou a cadeira ao meu lado e em dez minutos falava de cinema francês com a mão na minha perna. Senti um frisson subindo pela minha espinha até os bicos dos seios e me dei conta que fazia tempos que não sentia nada daquele jeito. Decidi que, se ele não falasse nenhuma merda nem pedisse nada com alho ou cebola, eu iria para a cama com ele naquela noite mesmo.
Era cinéfilo, o que combinava com sua barba mal feita e seus óculos de John Lennon. Chamava-se Ernesto. Falou sobre seus projetos, o curso de cinema que fazia, os roteiros que escrevia e me convidou para assistir na sua casa um curta que havia feito. Topei na hora, já estava derretida por ele e apertando as pernas de excitação.
Morava em uma quitinete bagunçada, mal mobiliada, mas, descolada. Elegantemente me serviu vinho - ah, danado, meu ponto fraco - e mostrou no DVD o seu curta. Era a história de um jovem que saía pela cidade em busca do pai que não conhecia, todo em preto e branco, um charme. Quando o filme acabou, nossas bocas se encontraram e nos engalfinhamos no sofá. Desajeitadamente, tiramos nossas roupas e ele começou a me beijar as pontas dos dedos dos pés, lentamente, como se estivesse ministrando um ritual religioso, e foi subindo pelas minhas coxas, alternadamente e quando eu estava quase enlouquecendo ele se deteve na pérola incrustada na ostra e se demorou sorvendo até que eu gozei. Ainda tremendo, percebi-o em cima de mim e, pelo amor de deus, gozei mais uma, duas, três vezes, em diversas posições, até que ele também gozou e desfalecemos no tapete.
Horas depois, após um banho e uma xícara de café, ele me mostrou sua coleção de DVDs e separou alguns para a gente assistir. Considerei aquilo uma declaração de que ele queria me ver mais vezes. E assim aconteceu. Em uma manhã de domingo, assistimos a O último tango em Paris e depois fizemos amor de formas pouco convencionais... Dias depois ele me apresentou aos filmes libertários de Pasolini e me mostrou o que se pode fazer com mel e sorvete... Enfim, a criatividade dele, em filmes e na cama, parecia não ter limites, foram vendas, algemas, unguentos, cordas, gelo, cremes, vibradores, panos, frutas, geleias...  Ernesto me conduziu a caminhos que eu jamais havia ido (que o diabo carregue os homens conservadores e cheios de pudores) unindo como se em uma coisa só o cinema e o sexo. Às vezes saíamos da sala de cinema direto para o apartamento dele, fazer amor. Outras vezes ele colocava um filme de Bigas Luna ou David Lynch e eu sentia, de repente, um calor subir em mim e me enroscava no corpo dele até baixar sua cueca e começar um outro filme... 
Tudo isso já passou. Há quatro meses ele recebeu uma bolsa para estudar cinema em Montreal e partiu. Voltará em quase um ano. Minhas amigas reclamam que eu não saio mais com elas, que fico reclusa em casa, parecendo uma ermitã, que não me cuido mais, negligenciei cabelo, unhas. Mas, se tudo que eu quero é ficar em casa, abrir um vinho, colocar um filme no DVD - Império dos sentidos, Shortbus, Deita comigo, Crash... - molhar de saliva dois dedos, baixar a calcinha e me tocar, pensando nele, luzes, câmera, ação!...

30 setembro 2014

Como quem morre


Cefas Carvalho


Corpo a corpo: nós

Na batalha inglória (do amor)

Destilando mel e fel da flor

Da fonte onde tudo o mais jorre...



Tua língua crua em mim

Unha, pelo, dedos, pele

Tudo que mais se revele

Do nada que nos socorre



Degusto em desvario, o teu sumo

Teu vinho, teu rio, teu licor

Em oceânica, alegre dor

Ondas: ressaca, praia, porre!



Dedos, sulcos, gozos, vãos

Teu corpo inteiro em minhas mãos

Eu?... Eu faço amor

Como quem morre!... 



Imagem: O beijo, de Arte Paz















16 setembro 2014

De andorinhas

















Cefas Carvalho

(Inspirado em verso e conceito de Jeanne Araújo)


uma andorinha só
em revoada
não faz verão

melhor mal acompanhada
que sozinha
nesta estação

sou andorinha
que faz outono
inverno, primavera

sou só minha
sem nenhum dono
andorinha-fera


Imagem: Chagall ("Entre guerra e paz")

31 julho 2014

Bloody Mary


















Cefas Carvalho


Um bloody mary
dois sonhos desfeitos
três da manhã...
Você tem um cigarro?
Costuma vir sempre aqui?
Por que está sozinho?
Quatro razões para ir embora
Cinco pensamentos negativos
Seis doses a mais...
Não me paga outro drinque?
O que vai fazer mais tarde?
Na sua casa ou na minha?


Imagem: "Café", Edward Hooper

17 julho 2014

Do conhecimento terreno













 
Cefas Carvalho 



que sei eu dos horrores
do espírito?

sei do orvalho
que embaça
as janelas
as retinas

sei do mel
que escorre
dos meus olhos
nas madrugadas

não sei de mundos outros
desconheço o não-visível

sei da terra onde piso
onde semeio meu suor
colho carne e sangue

sei das tempestades
e das ruínas
sei de fendas
e dos frutos da terra
 






Imagem: "Autorretrato", de Francis Bacon